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Comunhão com o Deus Vegetal – As Portas da Percepção parte 4 de 4

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Voltamos  para  casa.  A  mesa  estava  posta.  Alguém,  que  ainda  não  estava identificado com meu ego, comeu com um apetite devorador. De longe, e sem revelar muito interesse, eu o observava.

Depois  de  comer,  entramos  no  carro  e  saímos  para  um  passeio.  Os  efeitos  da mescalina já estavam se dissipando; mas as flores dos jardins ainda vibravam no limiar do  sobrenatural,  as  pimenteiras  e  alfarrobeiras,  ao  longo  das  alamedas  laterais,  ainda pertenciam,  visivelmente,  a  um  bosque  sagrado.  O  Éden  alternava  com  Dodona[10], Yggdrasil[11], com a Rosa mística. Eis que, abruptamente, paramos em uma interseção, esperando  nossa  vez  de  cruzar  o  Sunset  Boulevard.  Diante  de  nós,  passavam  os  automóveis em uma torrente uniforme — milhares deles, todos brilhantes e polidos qual sonho de um anunciante, cada um deles mais ridículo que o precedente. Mais uma vez caí num riso convulsivo. Por fim, o Mar Vermelho do tráfego ficou para trás e passamos a percorrer novo oásis de árvores, gramados e rosas.

Em  poucos   minutos   chegamos   a   um  ponto   culminante   das  elevações  que dominam  a  cidade,  e  pudemos  observá-la  a  espalhar-se  abaixo  de  nós.  Foi  com desapontamento  que  constatei  parecer-se  ela,  no  momento,  exatamente  com  a  cidade que  eu  vira  dali  em  outras  ocasiões.  Para  mim,  a  transfiguração  era  inversamente proporcional  à  distância  —  quanto  mais  perto,  mais  sublimemente  diferentes  me pareciam  as  coisas.  Não  havia  quase  diferença  em  relação  a  esse  vasto  e  confuso panorama.

Prosseguimos  e,  enquanto  permanecemos  nas  elevações,  fomos  descortinando, uns após outros, panoramas distantes que, por essa mesma razão, não se apresentavam diferentes  dos  do  nível  normal  de  percepção,  o  qual  está  bem  abaixo  do  ponto  de transfiguração.  O  encantamento  recomeçou  quando  descemos  em  direção  a  um  bairro novo, deslizando por entre duas fileiras de casas. E, a despeito do notório mau gosto da arquitetura, houve repetição daquelas diversidades transcendentais, reflexos do paraíso entrevisto naquela manhã. Chaminés de tijolos e complicados telhados verdes brilhavam à  luz  do  sol  qual  fragmentos  da  Nova  Jerusalém.  E,  de  súbito,  vi  aquilo  mesmo  que Guardi  vira  e  (com  que  incomparável  virtuosidade!)  com  tanta  freqüência  soubera transportar  para  suas  telas  —  uma  parede  de  estuque  atravessada  por  um  risco  de sombra; nua, porém incrivelmente bela; vazia, mas prenhe de todo o significado e todo o mistério da existência. Dentro de uma fração de segundo, mais uma vez a Revelação se esvaiu. O carro prosseguira em sua marcha e o tempo havia posto a descoberto outra manifestação da eterna Peculiaridade. “Dentro da semelhança existe diferença. Mas não é  absolutamente  intenção  de  Buda  algum  que  a  diferença  seja  diversa  da  semelhança. Desejam eles que haja tanto totalidade como diferenciação.” Assim, por exemplo, esta moita de gerânios brancos e rubros é inteiramente diferente daquela parede de estuque que ficou a uns cem metros para trás. Mas o existir de ambas é idêntico, é a mesma e eterna   essência   de   sua   transitoriedade.   Uma   hora   mais   tarde,   com   mais   quinze quilômetros  de  percurso  e  a  visita  ao  maior  drugstore  do  mundo  lá  bem  para  trás, voltamos   para   casa,   já   tendo   eu   tornado   àquele   estado   reconfortante,   embora profundamente insatisfatório, conhecido como “estar em seu juízo perfeito”.

10 Dodona – templo de um famoso oráculo de Zeus no Épiro. O Zeus de Dodona era materializado por um carvalho sagrado, cujo murmúrio da folhagem era interpretado pelo sacerdote.

11 Yggdrasil – freixo   gigante   da   mitologia   escandinava,   que   simboliza   o Universo.

por Aldous Huxley

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