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Foi uma conversa interessantíssima, em lugar incomum, com um interlocutor impressionante: Sir John Eccles, neurocientista australiano detentor do prêmio Nobel de Medicina de 1963. O lugar, a ilha de Mainau, do conde Bernadotte, no Lago Constança fronteira entre Suíça, Alemanha e Áustria. O encontro reunia 22 detentores do Prêmio Nobel de Medicina com jovens cientistas atuando na Europa em 1983.
Ao redor da mesa ouvíamos este sábio referendado com as maiores láureas. Eu o havia instigado com perguntas científicas sobre a mente humana e o cérebro. Sabia de como lidava com aspectos filosóficos derivados da neurociência que ele próprio tanto contribuíra para estabelecer. Era central o interesse de Eccles pelos problemas da comunicação nos níveis altos, os da natureza do ser que tem experiência de si próprio, que detém autoconsciência.
Eccles encerrou o assunto escrevendo duas palavras em meu bloco de anotações, repto para que se perseguisse a pesquisa sobre esses dois temas: memória e consciência. e acenou com prêmios Nobel garantidos para quem elucidasse os mecanismos da memória e da consciência, tal qual ele próprio fez ao elucidar e descrever o funcionamento da sinapse.
A sinapse é uma microscópica fenda altamente especializada da comunicação entre células nervosas, que transmitem impulsos ao longo de suas fibras. Substâncias químicas neurotransmissores, deixam a membrana pré-sináptica da célula levando o impulso de energia-informação. Assim, depositadas neste espaço comum a duas células, as moléculas provocam a excitação da membrana da célula em contacto sináptico com ela.
Uma única célula nervosa pode mandar, através de sinapses, impulsos para até mais de 10 mil outras células, simultaneamente. Por exemplo, ao sair da medula espinhal o impulso para flexionar o dedo tem que chegar ao nervo que vai até o músculo que, ao se contrair, efetua a flexão do dedo. É a sinapse que conecta a célula nervosa da medula com a célula nervosa do nervo que vai até o dedo. A sinapse é uma dentre a miríade de elementos e estruturas existentes entre a consciência de querer mover o dedo e a memória de como fazê-lo, utilizando bilhões de células nervosas e trilhões de sinapses.
Quando Eccles fez as pesquisas que permitiram que entendêssemos a sinapse, ele acreditava que essa elucidação contribuísse substancialmente para a solução do problema mente-cérebro: sistemas neuronais formando e operando continuamente laços dinâmicos interagentes de imensa variabilidade e complexidade, viabilizando a consciência humana. Ele primeiramente trabalhou sob os encantos da sinapse e voltou-se, depois, para os mistérios do cérebro de ligação do sistema nervoso com a consciência.
Leitor atento: pular, da microscópica sinapse para a cosmopolita consciência com sua antológica memória, não é didático. É porém assim que pulam os impulsos bioelétricos dentro da mais extraordinária estrutura jamais conhecida: o cérebro humano. E têm sido assim há muito tempo, memória e consciência; idéias saltando entre nossos muitíssimos neurônios. Ainda que não persigamos o prêmio maior da ciência dos homens, governar a vida em nós, e cuidar das vidas que dependem de nós, é o nosso repto e é o nosso prêmio.
Escrevi outro dia que os seres vivos são como células para o nosso mundo vivo. A consciência e a memória são intangíveis realidades vivas que assombram e impelem a humanidade, e não somente os neurocientistas. Forjamos hoje a consciência planetária que vai permitir que continuemos a viver como espécie. A memória do caminho nos assegura que vamos usar nossas consciências no governo das técnicas que vão permitir nossa sobrevivência. É o verdadeiro governo oculto no mundo. Dobramos nossa vida média e multiplicamos nossa população em muitas vezes neste milênio que se encerra. A consciência e a memória, através do trabalho de sinapses interligando magnificamente as incontáveis células de nosso corpo, geraram a ciência e a tecnologia.
Estabelecemos as prioridades, a política verdadeira, com nossa memória, que aprimora e burila a nossa consciência. Hoje comunitária, societária, amanhã cosmopolita, planetária. Assim mantemos e fazemos evoluir a vida em nosso mundo, deixando para trás a inconsciência predadora, que nos permitiu ascender ao topo da cadeia alimentar. Às expensas de um saque ao futuro, temos nos permitido até agora o aniquilamento de irmãs e irmãos, a extinção de animais, plantas, cascatas e florestas.
A música do trabalho de bilhões de sinapses é o fruto que faz conhecer quando a ação completa. Que seja o corpo com suas sinapses, ligação verdadeira com consciência e memória. Afinal uma célula, uma pessoa, um país um mundo como o nosso, precisam de memória para não esquecerem suas prioridades: para a saúde, a educação, a segurança, transporte e alimentação. Para não se perderem dentro de suas tarefas de sobrevivência e não perpetuarem o esquecimento das verdadeiras prioridades.
Voltando ao encontro em Manau: ao pé do ouvido, Sir John Eccles me fez a uma pergunta prontamente respondida por ele mesmo:”Sabe você por que fui estudar cérebro? Para entender a mim mesmo!” Quando o conheci, ele já havia se tornado um sábio.
Elson de Araújo Montagno é médico neurocirurgião, doutor em Medicina pela Universidade Livre de Berlim, ex-professor visitante da Universidade de Harvard e ex-professor da faculdade de Ciências Mécias da Unicamp. Email: montagno@ultra.internetional.com.br
Realização: Núcleo de Infomática Biomédica
Copyright 1997 Universidade Estadual de Campinas
Elson de Araújo Montagno, MD, PhD
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