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1Batalha espiritual contra objetos consagrados ao Diabo
Uma campanha pela formação do preconceito
Shirlei Massapust
No século XX uma coligação de igrejas instituiu o dogma do diabo abstrato que visita a casa de quem compra mídias musicais, filmes de horror e fantasia, gibis, videogames, bonecos, RPG, etc. Entre outras bizarrices, dizem que o diabo capitalista tenta o consumidor a prestar culto às bugigangas acumuláveis e incita comportamento compulsivo. Depois traz pobreza, sede de sangue e todo tipo de desgraça. A fantástica autobiografia de Marcelo Ferreira, narra como algumas marcas seriam consagradas pela seita Filhos do Fogo para desviar usuários incautos do caminho do cristianismo:
Este mundo jaz no maligno, mas todos o acham muito sedutor, todos desejam o mundo e o que ele oferece. Há maneiras de fazer com que haja inclinação da mente humana, uma aceitação da nossa causa e das nossas coisas. Como acontece isso? Como se dá o acesso às mentes e há influência sobre elas? Vamos tomar um exemplo simples: Uma Grife! Quem poderá prever que uma roupa, uma camisa, um boné possam causar estrago? Mas certas grifes que vocês conhecem foram previamente consagradas (…) mediante preço de sangue. Isso dá autoridade para a atuação dos demônios. E o objeto, a roupa, o disco, o brinquedo agem como se fossem “Cavalos de Tróia”. (…) Qualquer coisa submetida a uma consagração fica “carregada” com uma força que não é conhecida aos olhos humanos, mas que os demônios dominam. É uma maneira sutil, pouco agressiva, de fazer alguém andar em uma estrada completamente diferente e ainda assim achar que está indo na direção certa. (…) Como diz o versículo “Aos olhos do tolo, o seu caminho é correto” (Provérbios 12:15).[1]
A propaganda de batalha espiritual distorce fatos, inventa histórias. Durante um debate ocorrido num nicho de colecionismo de bonecos a brasileira Maíra Damásio comentou um episódio de divulgação deliberada de desinformação:
Gente, eu tenho um ódio tão grande de quem usa a fé das pessoas para ter dinheiro e poder! O sangue ferve. Isso me fez lembrar de uma vez que um pastor louco desses aí estava usando foto de BJD gore, espalhando para os fiéis que eram bonecas sexuais feitas com crianças de verdade, vivas, que eram encolhidas em ruínas, os nervos modificados para elas não conseguirem se mexer. (…) Acho que estão vendo muito filme de terror. Pior é que tinha uma galera acreditando. Gente, que tecnologia é essa de fazer algo real encolher? (…) Eu expliquei das bonecas, expliquei da tecnologia, expliquei que – por mais que exista gente horrível – fazer isso seria inviável, mostrei foto do processo de criação de BJD para provar que não envolve criança alguma… O pastor deletou minha explicação e me baniu da página dele! Só serviu para me mostrar que ele inventou por querer, para causar histeria, para as pessoas terem medo do mundo e correrem para a igreja, para encher a cueca dele de dinheiro.[2]
Enquanto o possuidor de objetos proscritos não queimar tudo, ele continuará a ser arrastado para o fundo do desespero e, ao morrer, para as chamas do Inferno. A jovem brasileira Anne descreveu o seguinte incidente traumático:
Quando eu tinha cinco anos uma amiga me convidou a ir numa igreja. A mãe dela era a esposa do pastor e iria nos levar. Antes do culto teve uma palestra com um pastor de outra igreja. Ele dizia ser mensageiro de Deus e todos lhe perguntavam várias coisas. Fiquei sentada num canto até perceber que o palestrante ficava me olhando com um olhar diabólico. Ele chegou perto de mim e perguntou: “Você não quer fazer nenhuma pergunta?” Eu disse: “Não!” Ai ele disse: “Então tudo bem”. Teve a oração e ele não parava de me olhar. Quando terminou o ofício ele finalmente falou: “Cuidado com o que você ganha. Você é uma menina má e vai ganhar uma boneca diabólica. Ela vai acabar te controlando. Essa boneca será o diabo em pessoa e você não vai poder se proteger”. Saí correndo e voltei para casa sozinha. (…) Minha mãe foi na Igreja e disse que nunca mais me daria permissão para voltar porque fiquei traumatizada. Depois daquele dia eu não conseguia dormir direito, sempre tento pesadelos com bonecas. (…) No meu aniversário, em 30 de janeiro, uma amiga me deu uma boneca e tudo que aquele pastor falou me veio à cabeça. A primeira coisa que pensei em fazer com aquela boneca foi queimá-la.[3]
Quem afirma odiar bonecos por obrigação religiosa geralmente aparenta nutrir preocupações tolas. Numa comunidade do Orkut a recatada Tainá ficou enojada da maquilagem adulta duma boneca fashion. Um rapazote ficou traumatizado depois de subtrair uma boneca erótica “Pop Sucker” do quarto do irmão mais velho e encontrar esperma nos orifícios. Mah levou um susto porque um Buzz Lightyear – robô que fala quando se aperta um botão – apresentou defeito e falou sozinho.
A coleção que amedrontava Mi consistia em três bonecas Bebê Dentinho[4] que sorriam no escuro enquanto ela pernoitava no quarto de hóspedes da residência de uma tia “macumbeira” que “fazia macumba da braba mesmo”, tinha “bebido demais e incorporado espírito”. Impressionada com o ritual religioso, a criança não conseguiu dormir e projetou seu medo nas bonecas. Fleur conhecia a origem exata dos seus temores. Na primeira infância a babá lhe contava histórias apavorantes de bonecas assassinas, que arrancavam os olhos e sugavam o sangue de crianças à noite.[5]
O exemplo do filho pródigo e os jogos de representação
Na Bíblia, em Lucas 15:11-32, Jesus narra a parábola do filho pródigo que solicitou ao pai antecipação da herança, viajou e dilapidou todo o patrimônio vivendo irresponsavelmente. Caído em miséria, procurou emprego e conseguiu uma ocupação, contudo a remuneração do trabalho na suinocultura não bastava para custear sua subsistência. Então o jovem voltou para casa esperançoso de recuperar seu lugar junto à família. Ele confessou pecado e arrependimento, sendo recebido com alegria.
Disse o pai ao primogênito enciumado, que nunca recebeu uma festa como aquela apesar de sua lealdade e fidelidade: “Meu filho (…) nós tínhamos que comemorar e alegrar-nos, porque este seu irmão estava morto e voltou à vida, estava perdido e foi achado”. Desde então a exegese exagerou as virtudes do filho pródigo. Mais vale aquele que, com conhecimento de causa, renunciou à vida mundana, do que o deslumbrado que só acredita em milagres, nunca tendo conhecido o arrependimento e a misericórdia.
Em muitas denominações religiosas existe o consenso de que os melhores pastores são os filhos pródigos que retornam à casa de Deus. Quanto mais retumbante for o passado renunciado, mais qualificado estará para o serviço religioso. Por isso o pastor estadunidense Willian Schnoebelen, nascido em 24 de agosto de 1949, se apresenta como ex-jogador de RPG, ex-bruxo, ex-mórmon, ex-maçom, ex-satanista, ex-vampiro, etc.[6] Outro filho pródigo é o pastor brasileiro Marcelo Ferreira, nascido em 9 de março de 1967, mais conhecido pelo pseudônimo Daniel Mastral. Ele foi ex-judoca, ex-bruxo, ex-lobisomem, etc. Não há sociedades secretas reais ou fictícias nem nichos marginais por onde tais figuras ecléticas não afirmem haver pisado.
Um dos grandes expoentes da batalha espiritual no século XX foi o pastor estadunidense Mark I. Bubeck (1928-2017), fundador e presidente da organização International Center for Biblical Counseling, posteriormente renomeada Deeper Walk International, com sede em Sioux City, Iowa. Ele não foi um filho pródigo, mas preparou o terreno para as novas gerações.
Certa vez Mark I. Bubeck citou um memorando interno de sua ONG onde afirma que “muito envolvimento com jogos de fantasia ou de desempenho de papéis” é um forte indício de que o adolescente tem contato com rituais satânicos e atividades ocultas, porque tais jogos “servem de base para experiências espíritas sérias”.[7]
Indignado, um jogador de RPG telefonou para o programa de rádio do pastor Bob Larson[8], na esperança de fazer a audiência entender que um jogo de fantasia “não confere a ninguém certificado de bruxo”. Infelizmente, o sóbrio rapaz teve de ouvir do radialista que a Coalizão Nacional sobre Violência na Televisão alerta que mesmo o suave sistema de Dungeons & Dragons (D&D), mais antigo entre todos, “já produziu mais de cinquenta mortes de adolescentes[9]”.
Quando entrevistado por Cary Matnnsclana no documentário Devil Worship: The Rise of Satanism (1989), produzido pela Buenna Vista Filmes, o Sargento Rand Emon, lotado no departamento de polícia de Baldwin Park[10], alegou ser possível “aprender feitiços” em jogos de representação. Isto foi confirmado no próprio documentário, e também depois, por Willian Schnoebelen, que – em seu passado terrível – usou sua influência como docente para recrutar estudantes dos dois últimos anos do ensino médio. Os feiticeiros seduziriam jovens com jogos de representação onde comportamentos inofensivos e constitucionalmente protegidos gerariam “grupos satânicos” que “são portas de entrada para variedades avançadas e sangrentas de satanismo”.[11] Segundo Willian Schnoebelen, “as personagens que os disputantes assumem no jogo são um excelente treinamento para o feiticeiro noviço[12]”.
Muitos livros, documentários e outros materiais de batalha espiritual, foram traduzidos do inglês e divulgados na América Latina por denominações pentecostais. A temática em si acabou assimilada e adaptada por organizações religiosas latino-americanas, inspirando produções regionais. A variante brasileira[13] dispensou o desvio de finalidade dos itens de cultura pop por obreiros satânicos, tornando os objetos tão aprioristicamente nocivos perante a militância de direita quanto o imperialismo seria para a militância de esquerda. (Duma forma ou de outra o entretenimento é diabólico).
Na qualidade de ex-cristã, ex-satanista e ex-jogadora de RPG, eu compreendo que o problema de conjugar fantasia com magia prática é a frustração da expectativa. Querendo, nós até poderíamos utilizar manuais de magia como suplementos de jogos de representação e os feitiços de São Cipriano com certeza funcionariam bem melhor em Nárnia ou em Passárgada. Todavia, os feitiços dos jogos de RPG e dos livros de J. K. Rowling não apresentariam quaisquer resultados na vida real, mesmo sacrificando mil vidas por uma horcrux. Aliás, se funcionassem de fato nós não estaríamos por aí caçando os filhos dos outros. Os feiticeiros fariam apresentações teatrais materializando delícias e virando bichos. Nós evocaríamos chuvas de ouro sobre todos os países pobres. Fundaríamos escolas de magia maravilhosas iguais a Hogwarts. Voaríamos em vassouras ecológicas e amestraríamos as corujas mais fofinhas para trazer nossa correspondência.
Jesus jogava RPG
Na época do nascimento do cristianismo os dados de seis a vinte lados já existiam e eram conhecidos a mais de trezentos anos. Crianças brincavam com sevivon (piorra), jogos de tabuleiro e bonecos. Também gostavam de representar papéis em narrativas livres, como em teatrinhos improvisados, similares ao atual role playing game (RPG).
A estreita relação entre a prática religiosa e a atividade lúdica infantil em período anterior foi atestada pelo arqueólogo Avraham Biran, cuja equipe encontrou um dado de faiança azul dentro dum jarro contendo pertenças dum membro da classe sacerdotal, no cômodo Nº 9024 do sítio arqueológico identificado como sendo Tel Dan, em Israel.[14]
O Novo Testamento conta que certa vez Jesus parou para observar a brincadeira de representação de papéis e viu crianças atuando em simulações de ofícios religiosos. Primeiro elas falharam na tentativa de espalhar alegria tocando flauta (ηυλησαμεν) na expectativa de que alguém dançasse (ωρχησασθε). Depois passaram a entoar um canto fúnebre (εθρηνησαμεν) esperando que alguém fingisse luto (εκοψασθε) pela morte de ninguém, todavia não houve reação por parte dos ouvintes (Mateus 11:16-17).
Certo dia as crianças viram Jesus e quiseram brincar de igrejinha com ele. Jesus aproveitou a oportunidade para ensinar orações legítimas, achando a admiração dos pequenos pelo ofício religioso encantadora. (Mateus 19:13-15; Marcos 10,13-16: Lucas 18,15-17). O esforço das crianças foi citado como exemplo analógico especialmente na queixa contra a falta de tolerância religiosa dos adultos que disseram que São João Batista jejuava porque “tinha demônio” (δαιμονιον εχει). (Mateus 11:18).
Tendo Jesus malogrado na transmissão de sua mensagem, hoje em dia a batalha espiritual une forças com correntes tão contrárias quanto a teologia da prosperidade e a teologia da libertação, sobretudo sob o amparo de ideólogos políticos; havendo militância ativa contra a difusão dos jogos de representação de papéis em suas várias categorias (RPG, videojogos, MMORPG, brincadeira com bonecos, etc.).
Talvez os primeiros católicos engajados na perseguição aos bonequeiros tenham sido Heinrich Kramer e James Sprenger, decididos a queimar todos os presentes de natal juntamente com seus fabricantes. No Malleus Maleficarum (1487) a dupla sugeriu uma hipótese mirabolante. Deus seria tão ciumento dos direitos autorais sobre a criação do homem que, ao invés de punir apenas o plagiador, causa a ruína de toda a vila onde vive um artesão fazedor de bonecas. É exatamente isso que o diabólico adversário quer! A bruxa desata a rir da desgraça coletiva, sem se importar com a pequena parcela de dor que lhe cabe, e continua a fazer de tudo para deixar a divindade cada vez mais nervosa.
As imagens feitas por bruxas não possuem qualquer força natural (e nem o material de que são feitas). Mas como são construídas sob o comando do diabo podem, por assim dizer, simular a obra do Criador, provocando a Sua ira e fazendo com que Ele, a título de punição pelo seu crime, venha a lançar flagelos sobre a terra. E para ainda mais aumentar a sua culpa, as bruxas experimentam especial deleite em construir tais imagens nas estações mais solenes do ano.[15]
O posicionamento do inquisidor é tão cômico quanto trágico. Nenhum artesão fabrica brinquedos na véspera do natal na intenção de fazer mofa do cristianismo. Acontece que sempre existiu uma grande demanda por bonecas no mês de dezembro, quando os romanos trocavam presentes durante festas particulares. Este costume foi assimilado pelos cristãos e é por este motivo que presenteamos crianças no natal.
Lutero e a metáfora da marionete
Os primeiros itens seriais produzidos por grandes indústrias de brinquedos foram fabricados em Nuremberg, Augsburgo e Sonneberg. O barateamento de preços facilitou o colecionismo ao mesmo tempo em que reduziu a produção artesanal na Alemanha.
Martinho Lutero (1483-1546) teve a oportunidade de testemunhar o processo de substituição do artesanato baseado no fenótipo e padrão de vida do usuário, ao qual alguns autores chamam persona doll, por modelos utópicos de beleza e recursos os quais hoje corresponderiam aos fashion doll; assim como por bebês expressivos e outros brinquedos industriais de aspecto repetitivo mais padronizado e menos representativo.
Havia uma notória diferença entre os novos bonecos e aqueles dos primeiros anos do cristianismo. Mesmo assim Lutero não enxergou reprovabilidade naquilo que hoje escandaliza os ideólogos mais sensíveis. Ele apenas aprendeu com uma injuria.
Na época em que o futuro reformador era um simples monge agostiniano, Lutero solicitou permissão para viajar à Jerusalém, em penitência por um lapso de exercício da caridade. Seu confessor dispensou-o explicando que o castigo da penitência se aplicava apenas a quem comete pecados sérios, como roubo e homicídio, e não a pecadilhos de brinquedo, pecados de marionete (puppensünden), no sentido de faltas imaginárias.[16]
Isto fez com que o vernáculo puppen se associasse às circunstâncias de extremo desgosto na mente de Lutero. Ser um falso pecador, como um boneco é falso homem, significa que o problema que lhe traz angústia é tão medíocre sob a perspectiva de quem poderia resolvê-lo que não merece sequer ser ouvido. Lutero jamais se conformou com a negativa da permissão para realizar seu sonho de turismo na Terra Santa. Então, por retaliação, passou a usar a metáfora da atitude infantil contra a Igreja Católica:
Eu não construiria uma Igreja ou torre onde tocariam sinos para mim nem te pediria para me construir um órgão de tubos porque não posso comer nem beber essas coisas. Não posso sustentar esposa, filhos, manter uma casa ou lote de terra com isso. Você pode agradar meus olhos e ouvidos, mas o que devo dar aos meus filhos? Cadê a subsistência? É loucura! Só loucura! Os bispos e nobres que deveriam checar isso são os primeiros a enlouquecer. Um líder cego comanda o outro. Eles me lembram jovens meninas brincando com bonecas e meninos com cavalos de pau. Portanto eles não são nada além de crianças brincando de boneca e cavalinho.[17]
Semelhante discurso viria a ser apropriado pela teologia da libertação em tempo futuro. Embora o foco da crítica luterana recaísse predominantemente sobre a elite e o clero, que viviam à custa de impostos e indulgências, esquivando-se das causas sociais, a metáfora do brinquedo era de natureza eclética.
Noutro sermão, Lutero pede ao fiel protestante sabedor de que seu vizinho tem pecado que “não aja como os que desejam provar a própria bondade empinando os narizes diante dos pecadores nem faça mofa dos pecadores indo de casa em casa como crianças saindo para brincar de bonecas”.[18]
Neste caso entendemos que a crítica não recai diretamente sobre a brincadeira de jogos de representação (pela irrealidade), nem sobre o habito de ir de casa em casa para parolar, mas sim sobre os danos a terceiros causados pelo policiamento social. Contudo, o fundamentalista com tique nervoso interpreta que cada um deva ficar quieto em seu próprio lar, onde é o seu lugar, sem visitar terceiros. Deste modo não haverá frutos da interação social de ociosos, tais como brincadeira e tagarelice.
Distinção entre artesanato e feitiço pela inquisição protestante
A inquisição protestante foi possivelmente mais severa que a católica em vários sentidos, entretanto no início não havia perseguição aos bonequeiros profissionais. Nos primórdios da inquisição protestante, fazer bruxaria com bonecos e fazer bonecos eram duas coisas totalmente diferentes. O feitiço de representação mnemônica era chamado em inglês de witchcraft: Palavra que define o trabalho artesanal (craft) do bruxo ou bruxa (witch). Nos diálogos sobre demonologia do Rei James I, publicados por Robert Waldegrave, em 1597, os personagens denunciam a existência de vinte bruxas para cada bruxo. As mulheres eram mais propensas a crer no Diabo e aprender com ele muitas coisas, inclusive o método de fabricar esculturas de cera ou argila.
Girar esculturas no calor, causando o derretimento e assadura contínua – do mesmo jeito que se assa um frango no espeto, – faria com que as pessoas cujos nomes foram dados aos bonecos ficassem doentes de indigestão e piorassem até a morte.[19]
Assim se diagnosticava a depressão que, segundo os gregos, vinha dum fluido corporal chamado bílis preta (μελαγχολία). John Ashto localizou um diálogo com pertinência temática na peça teatral The Witch (1616), de Thomas Middleton, cujo enredo apresenta um casal de fazendeiros que nega comida e itens de necessidade básica à bruxa Heccat e a seu aprendiz Stadlin.
Os personagens se vingam quebrando os instrumentos de trabalho da fazenda, provocando o azedamento das bebidas fermentadas, matando as crias dos porcos, patos e gansos, enviando cobras para beber o leite das ovelhas, etc. Por último, eles preparam o feitiço de morte dos fazendeiros por representação com bonecos:
Heccat: O coração de cera está cheio de agulhas mágicas?
Stadlin: Isto está feito, Heccat.
Heccat: A imagem do agricultor e sua recatada esposa ainda jazem no fogo?
Stadlin: Ambas estão girando também.
Heccat: Bem feito. A partir de agora suas cabeças derreterão. Em três tempos a doença sugará suas vidas. Eles frequentemente me negam farinha, fermento, leite, gordura de ganso e alcatrão.[20]
Enquanto a arte pintava cenas mirabolantes de bruxas cometendo homicídios, eram elas quem morriam vitimadas pela superstição na vida real. No verão de 1612 houve uma série de denúncias contra duas famílias de feiticeiras residentes em Lancashise, na Inglaterra. Os interrogatórios feitos pelos juízes Roger Nowell e Nicholas Banister resultaram em revelações espantosas.
Elizabeth Device confessou ter assassinado três pessoas por bruxaria e, coagida, alegou ter feito uma imagem de cera. Em 20 de agosto de 1612 a ré foi condenada e enforcada juntamente com seus dois filhos, Alizon e James Device, e com os réus Anne Whittle, Anne Redfearne, Katherine Hewit, Isabel Robey, Alice Nutter, John Bulcock e Jane Bulcock. Outra ré, Margareth Pearson, foi condenada ao pelourinho. Uma agregada de outra cidade, Jennet Preston, foi julgada e condenada à forca em York. Elizabeth Sowthern, de 80 anos, morreu na prisão antes do julgamento.[21]
Xilogravura em madeira de 1612: Uma diaba ensina as feiticeiras de Lancashire a fazer bonecos de cera.
Registros atestam que um casal foi executado em St. Albans, em 1649, sob a acusação de queimar uma boneca que representava uma mulher. Uma feiticeira inglesa, executada em 1618, brigara com o cunhado que, depois, viajou. Ela foi acusada de fazer um modelo de cera do navio e do capitão, com o qual teria causado o naufrágio da embarcação e o afogamento do seu desafeto.
Os medos britânicos atravessaram o Atlântico, juntamente com os imigrantes. Nas paredes do celeiro da casa de uma das feiticeiras de Salem foram descobertos bonecos feitos de trapos e pelagem de porco, nos quais estavam enfiados alfinetes sem cabeça. Na casa de outra, dizem que havia pequenas bonecas de pano com enchimento de pelagem de bode, e esta feiticeira teria sido obrigada a admitir ter torturado uma vítima, molhando seu dedo com cuspe e acariciando uma das bonecas.[22]
Notas:
[1] MASTRAL, Eduardo Daniel. Filho do Fogo: O descortinar da alta magia. São Paulo, Editora Naós, p 234.
[2] DAMÁSIO, Maíra. Comentário postado na comunidade BJD Brasil, no Facebook, dia 20/08/2015.
[3] Relato postado por αииє ℓσкιιинα na comunidade Bonecas, objetos do mal?, no Orkut, em 04/07/2009. Coletado por mim antes do fechamento da rede social.
[4] A boneca Dentinho, de 42 cm, fabricada pela Estrela S. A., tinha mecanismo movido à pilha que tocava o som do choro de um bebê e dois dentes retráteis na arcada dentária inferior da boca banguela que moviam para cima e para baixo quando alguém manejava uma manivela escondida entre os cabelos, simulando o nascimento dos primeiros dentes de um bebê.
[5] Relatos postados na comunidade “Bonecas, objetos do mal?”, no Orkut, por Tainá em 08/02/2007 e 21/08/2007, por Luan em 22/01/2010, por Mah em 19/07/2006, por Mi em 01/10/2007 e por Fleur “Lola” em 04/01/2005, coletados por mim antes do fechamento da rede social.
[6] Atualmente Schnoebelen e sua esposa Sharon coordenam o With One Accord Ministries, em Iowa.
[7] BUBECK, Mark I. O Reavivamento Satânico. Trad. Neyd Siqueira. São Paulo, Cananéia, 1991, p 26-27.
[8] O estadunidense Bob Larson, nascido em 28 de maio de 1944, é um evangelista de rádio e televisão e pastor da Spiritual Freedom Church em Phoenix, Arizona.
[9] LARSON, Bob. Satanismo: A sedução da juventude norte-americana. Trad. Luiz Aparecido Caruso. Florida, Editora Vida, 1994, p 53.
[10] Baldwin Park é uma cidade localizada no estado americano da Califórnia, no Condado de Los Angeles.
[11] SCHNOEBELEN, Willian & Sharon. Lúcifer Destronado. Trad. Milton Azevedo Andrade. Rio de Janeiro, Danprewan, 1993, p 60.
[12] SCHNOEBELEN, Willian & Sharon Lúcifer Destronado. Trad. Milton Azevedo Andrade. Rio de Janeiro, Danprewan, 1993, p 126-127.
[13] No Brasil, na primeira década do século XXI, a mais destacada opositora dos jogos de interpretação foi Sônia Ramos, comissária da Vara da Infância e Adolescência do Fórum de Teresópolis. Desde que perdeu a enteada Fernanda Venâncio, 17 anos, encontrada morta por asfixia mecânica em 11/10/2000, ela encontrou inspiração na dor para se tornar uma proficiente ativista da batalha espiritual, leitora das obras de Bob Larson, formadora de opinião, organizadora de passeatas e abaixo-assinados para a criação de leis proibindo cenas de violência em filmes, jogos, blogs, etc., ainda que restritas ao campo da ficção, porque, segundo sua crença, tudo isto só existe para “cooptar jovens para drogas e satanismo”.
[14] BIRAN, Avraham. Biblical Dan. Jerusalem, Israel Exploration Society, 1994. p 199.
[15] KRAMER, Heinrich & SPRENGER, James. O Martelo das Feiticeiras. Trad. Paulo Froés. Rio de Janeiro, Rosa dos Tempos, 1991, p 76.
[16] WEIMARER AUSGABE (WA) TR 6, no. 6669.
[17] LUTHER, Martin. Throught the Year with Martin Luther. Massachusetts, Hendrickson Publishers, 2007, p 22, item 46.
[18] LUTHER, Martin. Festival Sermons of Martin Luther. Trad. Joel R. Baseley. Michigan, Mark V Publications, 2005, p 129.
[19] KING JAMES I. Dæmonologie in Forme of a Dialogue. London, Robert Walde-grave, 1597, p 44-46.
[20] ASHTO, John. The Devil in Britain and America. York buildings, Ward and Downey, 1896, p 176-177.
[21] HOMEM MITO & MAGIA. São Paulo, Três, 1973, Fascículo 27, p 544-545.
[22] A MAGIA DA IMITAÇÃO. Em: HOMEM, MITO & MAGIA. São Paulo, Três, 1973, p 45.
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