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Paracelso
CAPÍTULO I
(Natureza das três substâncias e influências das estações e da putrefação)
É preciso compreender agora como essas três substâncias estão unidas em um só corpo. Para isso vamos dar o seguinte exemplo:
Toda semente é tríplice, ou melhor, contém três substâncias misturadas, já que tudo o que existe na semente está junto e não dividido. Por isso a semente representa a própria junção da unidade. Assim, quando encontramos madeira, cortiça e raízes em uma noz, compreendemos que apesar dessas três coisas estarem efetivamente presentes, a realidade da semente faz com que essas três coisas apareçam unidas.
No homem acontece o mesmo: ele também é uma semente cuja cortiça está representada pelo esperma. Nunca ninguém pôde ver essa semente por causa da sua sutileza e pequenez. Mas é certo que os homens são gerados nela. Quando a geração começa, estas três coisas se entrecruzam misturando-se (per—mixta) e unindo-se cada uma delas com sua própria natureza em um só corpo e não em três.
Também o homem cresce ou se transforma em osso, carne e sangue como um ser único, dentro do qual os três componentes permanecem visíveis durante todo o tempo de sua vida (ad suum usque tempus) como uma árvore que crescesse dentro da mesma medula.
A medula é uma substância tríplice feita de uma só madeira, cujas três substâncias aparecem perfeitamente tanto na arte como na natureza, e na morte.
Saibam que o princípio dessas coisas está em sua união num só todo,
dentro do qual cada parte cumpre a sua função contribuindo assim para completar a totalidade do corpo (ad corpus complendum).
Vejamos qual é a função de cada uma dessas três substâncias.
O enxofre coordena o crescimento do corpo. Na realidade todo o corpo é enxofre de tal sutileza que constantemente está se consumindo por um fogo invisível. Existem numerosos enxofres (plura sunt); o sangue, a carne, as partes nobres (partes príncipes), a medula… etc., são chamados enxofres voláteis. Os ossos ao contrário são formados por enxofres fixos. Cada um deles é encontrado em seu estado original quando a ciência realiza sua separação.
O sal está encarregado de conseguir a aglutinação do corpo. Sem ele nada parece tangível. A dureza do diamante e do ferro, a brandura do chumbo e a suavidade do alabastro são devidas ao sal assim como todas as congelações e coagulações.
Existe um sal nos ossos, outro no sangue, outro na carne, outro no cérebro, etc., em igual número e proporção com o enxofre.
O terceiro princípio é o mercúrio, que chamamos de “licor”. Ele se encontra em todas as partes nas mesmas proporções que o enxofre e o sal.
A congelação e a propriedade compacta correspondem ao licor, o que o torna absolutamente necessário à constituição do corpo, mostrando-nos que o homem se compõe de três coisas em um só corpo.
O enxofre queima por causa da sua pureza; a firmeza do sal o transforma em álcali e a força do fogo provoca a subida do mercúrio em forma de fumaça (effumat) apesar do que nunca chega a se queimar verdadeiramente.
Da mesma maneira que uma árvore seca quando tiramos a seiva dela, assim nenhuma forma pode subsistir sem o enxofre. Na verdade, todas as dissoluções nascem das três substâncias.
Da mesma forma nenhuma aglutinação poderá ser feita na ausência do sal, pois nesse caso o tronco da árvore cairia como uma ramagem despregada de sua estaca.
Com o crescimento o corpo se incrementa em uma só direção; quer dizer, em uma só natureza como se fosse uma pereira. E como a pereira, somente produzirá uma espécie constante de peras. Claro que tudo isso deve ser admitido para as demais árvores, pois no microcosmo existem verdadeiramente tantas espécies como os frutos na natureza.
De onde se deduz que todo aquele que conheça a pera conhecerá também a árvore que a produz, assim como as três substâncias que pertencem a ela. Isso também é válido no que diz respeito às doenças.
Isto deve ficar estabelecido de tal forma que quando virem um doente possam dizer: isso é uma pera ou uma maça. E que as três substâncias lhe sejam tão familiares na doença como o são na árvore.
Essa é a razão pela qual essas três coisas produzem peras de uma só classe e não de três. Ao contrário, pelo mesmo motivo voltarão a ser três em sua “ÜLTIMA MATÉRIA”. Assim as doenças devem ser conhecidas de maneira tríplice: seu corpo sulfuroso, seu licor mercurial e pela consistência que o sal lhes proporciona.
A medicina conveniente para estas enfermidades será, segundo o que acabamos de expressar, um fogo que as consuma, isto é, o fogo da essência (ignis es sentiae), já que sem ele não existe nenhuma medicina.
A medicina é toda ela uma consumação de uma combustão, a mesma que deixa a árvore reduzida a cinzas e livre de todo enxofre. Não só pelo enxofre (in sulfure) mas também pelo licor e o sal, já que todos eles são voláteis na doença e somente fixos na aparência.
Já que falamos da natureza das coisas e das doenças, é preciso que saibam que cada fruto se designa com um só nome genérico. Assim, quando dizemos, isto é uma “pera”, ou isto é uma “maçã”, incluímos nisto todas as classes de peras ou todas as classes de maçãs. O mesmo se refere às doenças. Por isso, quando vemos um caso de lepra e dizemos isto é “lepra”, é o suficiente. Não importa sua frieza, seu calor, sua umidade ou sua secura, pois nenhuma dessas doenças têm o menor interesse em ser conhecidas, já que não nascem nem são geradas nos corpos ou nas substâncias. Assim, quando quiserem plantar uma árvore, considerem antes de tudo a sua semente e não a sua cor, sua forma nem nenhuma de suas outras propriedades. Todas elas aparecerão por si próprias, porque não são outra coisa que as últimas matérias das substâncias, carentes por isso mesmo de toda importância.
O mesmo acontece com a icterícia, que não pode ser julgada quanto à sua frieza ou umidade se somente a chamamos por seu nome. Sem dúvida, o tratamento da icterícia existe, como existe o machado que abate a árvore e o fogo que consome as substâncias voláteis.
A medicina deve se constituir da mesma forma que o fogo. E como nele, não é preciso analisar suas propriedades de frio ou calor. A grande virtude se localiza no alheamento, o que constitui a verdadeira natureza dos arcanos. Pois do mesmo modo que existem coisas ou causas que tiram a vida, existem outras que tiram as doenças.
Quando tiramos as peras da árvore a pereira fica vazia. Desta mesma forma e com iguais nomes, devemos separar e cortar as doenças, sem nos distrairmos ao redor do corpo e da substância das peras, mas indo diretamente ao peudículo que as sustenta. Com isto terão uma ideia mais exata sobre o conhecimento da medicina.
Pensem nos seguintes exemplos: quando vemos as vicissitudes e transformações do inverno e do verão em suas imediatas sucessões de frio e de calor, deveríamos pensar da mesma forma em relação ao corpo. Ninguém dirá que as vicissitudes naturais que cada estação experimenta ao suceder a precedente sejam verdadeiras doenças, pois o homem está submetido sucessivamente ao verão e ao inverno.
Durante o inverno o homem se cerca de fogo para se proteger contra o frio. Apesar disto o inverno atua sobre ele submetendo-o à sua influência sem que nenhuma coisa artificial modifique seu curso.
Outro tanto ocorre com o verão, sendo surpreendente que o médico estude o fato de modo tão pouco satisfatório e resista em aceitar e conhecer nestas coisas as influências dos movimentos celestes, como se a natureza pudesse cometer erro.
Por conseguinte, o frio do inverno e o calor do verão podem chegar a produzir enfermidades, ainda que, em si mesmos, não sejam doenças.
Também o nascimento das estrelas e a interpolação de seus dias (interpolatis diebus) suscitam o frio e o calor, e também provocam febres.
Só a causa celeste pode determinar esses movimentos. É por mera fantasia que tais médicos não levam o céu em consideração, atribuindo tudo ao microcosmo, envolvendo-se cada vez mais no erro.
Fora isso, certamente, acontece que o homem pode ser tomado de ardores criados nele mesmo, sem que nada tenha sido acrescentado, tornando-se nesse caso um sol ardente. Isso acontece sempre de um modo acidental e não desde o nascimento.
Quem consegue iludir o Sol evitará também as doenças. Quando o homem é tomado por esse calor celeste, significa que o sopro (aura) boreal foi fechado, já que, quando está aberto, a temperatura acaba voltando ao normal.
Saibam que a origem do calor do homem provém da união das coisas celestes, terrestres, aquáticas e aéreas que existem nele em uma temperatura conveniente, quer dizer, numa temperatura onde nem o calor nem o frio predominam. Apesar de ainda existir o calor interior que nasce do estômago e que dá ao corpo a sua temperatura.
Este calor do ventrículo é particularmente eficaz pois serve para cozinhar e digerir os alimentos, sendo assim semelhante ao calor exterior, que não se comporta somente desta maneira. Essa é a razão pela qual todo órgão possui um fogo perpétuo, já que todos têm um ventrículo e uma digestão. Assim, o calor ou o frio do homem acontecem conforme a violência ou a suavidade da digestão.
O calor das digestões provoca a exteriorização de diversas cores, até então latentes, assim como o florescimento do mercúrio.
Diante desse florescimento, quem ousaria dizer que essas flores saíram somente do fogo da digestão? E quem poderia afirmar que “isto” é sanguíneo?
O certo é que isto e todas as outras coisas, diferentes na idade adulta e na velhice, são produto e resultado do calor cotidiano. Sem dúvida, não faltarão os que afirmem que isto não passa de temperamentos e insistam que “a juventude é sanguínea e a idade adulta colérica, fleumática ou melancólica”. Mas os que assim dizem esqueceram-se das excelências do calor da digestão e da natureza da matéria que forma as três primeiras substâncias, já que o homem assim como a árvore têm suas próprias flores. Por isso, chamar essas flores de temperamentos é um grande erro.
O mesmo acontece com todas as coisas que crescem neste mundo, nas quais as espécies devem ser consideradas mais que os gêneros, pois todas agem especificamente (specietemus) e não de uma maneira gradual, como Platearius1 e outros botânicos provaram quando qualquer coisa estranha penetrai no ventrículo. Neste caso, se ali entra sem ter sido previamente preparada, vê-se que tanto o calor como o frio se refreiam, enquanto a coisa se encaminha espontaneamente até o arcano.
Tudo pois morre no ventrículo e por isso podemos saber de sua má qualidade e fraqueza, conforme a quantidade de coisas que deixe de atacar, desmanchar e destruir. Já os ventrículos que provocam a morte das substâncias que caem neles são sadios e por isso desprovidos de qualquer interesse médico.
Não convém então aplicar as medicinas, porque nesse momento não vão causar as transformações que levariam à putrefação.
Às vezes acontece que alguns medicamentos se misturam com coisas de natureza quente, como as especiarias, por exemplo, nas épocas de peste. Então acontece que, não entrando em putrefação, ficam inativos, já que nenhum medicamento pode curar-nos daqueles venenos que o ventrículo não consegue destruir.
Daí se deduz que a rapidez da putrefação é proporcional à rapidez da cura e que tudo que impede a putrefação se opõe igualmente à saúde.
O suor que os medicamentos imputrescíveis às vezes provocam é mau e contribui muito pouco para a sustentação da vida.
Então podemos deduzir: nada que se estabelece gradualmente ou segundo os temperamentos é de utilidade para o corpo, pois neste as doenças não são, segundo as suas raízes, quentes ou frias. E os remédios não poderão agir sobre das se não tiverem outra virtude além de suas diferenças de temperatura.
Recordem que é preciso arrancar as peras pelo talo e assim fazê-las cair da árvore.
É um erro dizer que tal coisa tem maior quantidade de frio do que outra, pois não existe mais do que um só grau na frieza. O correto seria dizer: esta erva possui meia onça de frio e outra duas onças, considerando para as duas a mesma unidade de peso.
Por isso concluímos: receitem uma dracma de frio onde a encontrem e deem de beber em caso de ardor o calor interno. E usem ervas especiais como nenúfar e macela, mas não pimenta ou misturas. Assim encontrarão, não o frio ou o calor mas os arcanos desses mesmos graus.
Aqueles que nós combatem teriam abandonado suas teses se soubessem que na realidade não existe mais do que um frio, um calor, uma umidade e uma secura. Se tivéssemos estabelecido com a devida precisão a existência de duas ou três classes de frio, de calor, de umidade ou de secura, não teríamos dúvida em aceitar de bom grado a opinião deles. Mas isso não é o caso.
Tudo o que dissemos não tem outra finalidade senão fazer conhecer o grande erro que se tem cometido até agora na observação dos graus, assim como sobre os temperamentos das coisas, que na realidade são quatro, mas fundidas em uma só.
Até agora tinham sido estabelecidos quatro humores, coisa falsa, pois só existe um licor de mercúrio no qual existem muito mais de quatro substâncias, gêneros e propriedades, das quais a única causa não é o resultado, porque nele também estão incluídas as outras duas substâncias.
Cada doença, segundo a sua composição, existe por causa dessas três coisas.
As causas do enxofre e do sal serão estudadas e expostas em capítulos sucessivos.
Voltando ao mercúrio, vemos que suas doenças se produzem quando o seu licor, verdadeiramente grande e admirável, criado por Deus acima de todas as maravilhas, eleva-se até o céu. Da mesma forma que espírito de Lúcifer excita todas as guerras internas quando se eleva ao céu por seu próprio orgulho.
Quando o mercúrio ascende sem se manter (persistit) em sua hierarquia (gradus), transforma-se no princípio da discórdia.
Outro tanto pode-se dizer sobre o enxofre e o sal. Quando o sal se sapara e se apresenta deste modo, aparece como uma coisa que nos devora. Com o seu orgulho (fastus) estará onde possa manifestar sua corrosão, provocando as úlceras, o câncer e a gangrena.
CAPÍTULO II
(Sobre as transformações das substâncias e da necessidade da obediência aos desígnios de Deus. Sobre a múmia. Sobre a divisão da medicina. Sobre a morte)
Os arcanos não são antiguidades nem foram criados há muito tempo; pelo contrário, foram concebidos recentemente.
Antigamente, as coisas eram citadas em razão da substância e da forma, tal qual existem no mundo, o que hoje é de nenhuma valia. Para a sua utilização é preciso que essas substâncias se dissolvam, se renovem e se libertem de todas as suas antigas propriedades, como são o frio e o calor.
Assim, vemos que somente abandonando a sua frieza, o solatrum1 poderá ser utilizado como medicina, da mesma forma que os anacárdios2, que só podem ser usados como remédios quando libertos do calor.
Somente quando as antigas naturezas morrem ou se rebaixam (deponantur) ao ponto de chegar até a um novo nascimento podem adquirir o caráter de verdadeiras medicinas. A separação do bem e do mal está precisamente nesta anulação.
A medicina contemporânea é para nós como um arcano puro e absoluto, desprovida de todo temperamento e de todas as outras coisas desse tipo.
Então, por que os observadores equivocados opinam que nós, que podemos realizar o primeiro grau, não podemos igualmente alcançar o terceiro e o quarto?
A causa seria que o estômago não suportaria as coisas dos graus superiores, quer dizer, não conseguiria a putrefação devido a sua própria fraqueza, significando assim que a sua qualidade e eficácia seriam proporcionais à sua frieza e que sua dosagem poderia ser proporcionalmente diminuída.
Do que se deduz o seguinte: se o sal tivesse permanecido quieto em sua residência normal, o homem jamais teria tido úlceras no corpo.
Quando o enxofre se enche de ambição, o corpo se desmancha como a neve ao Sol.
Quando a sutileza de mercúrio é tanta que chega a separar-se e acender- se, indo além dos seus graus normais, pode provocar uma morte imprevista e repentina.
Por isso a razão e a natureza devem conservar-se sem orgulho, cumprindo sua função dentro de suas próprias hierarquias.
Cada cabeça deve ter um sentido próprio e diferente das outras, e deve poder romper seus limites quando uma força determinada a obrigue. De todo modo convém saber que é sempre funesto contrariar os princípios do corpo.
Como nada deve ser eterno para as criaturas carnais, é necessário que possam separar-se e isolar-se por diversas operações em suas distintas maneiras, qualidade e virtudes.
A saúde, assim como a firmeza do melhor do reinos, pode enfraquecer- se. Por isso devemos saber que todas as coisas podem alcançar igualmente a bondade a perfeição.
A natureza deu as mesmas propriedades e virtudes ao ouro e à prata. Deve-se simplesmente à avareza humana o fato de o primeiro ser considerado mais valioso do que a segunda. Além disso, nem o escarbucle (rubi) é melhor do que a pedra-pome, nem o cipreste melhor do que o pinho, pois isto seria repudiado pela luz da natureza. Somente a fantasia dos homens é capaz de interpretar estas coisas de maneira diferente do modo como a sabedoria da natureza humana ordenou.
Quando a morte percebe que o reino do nosso corpo está próximo de sua dissolução, invade-o, assim como o fazem os exércitos estrangeiros com uma nação derrotada.
A morte se aproxima justamente quando as três substâncias rompem a sua união e concórdia. Então, com toda sua habilidade, começa a atacá-la durante todas as horas do dia, até dominá-las e triunfar sucessivamente sobre cada uma delas. Depois que a morte ocupou tudo não há nada que possa expulsá- la. Mas se entrou ou dominou apenas numa parte, então a medicina pode cooperar e auxiliar a natureza restituindo a sua integridade. A soda cura o que o sal corroeu; o açafrão restabelece e restaura o que o enxofre dissolveu e o ouro devolve a consistência àquilo que o mercúrio tomou demasiado sutil, vindo tudo isso em ajuda da natureza.
Assim como nenhum reino pode ser invadido e conquistado sem que sejam provocados nele danos e prejuízos irreparáveis, também a carne que foi atacada e corroída pelo sal só pode ser restaurada imperfeitamente depois de ferida uma vez e não pode mais apresentar-se tão bem quanto antes. Isso é extensivo a todas as coisas.
É preciso cuidar muito bem do corpo e procurar mantê-lo sempre íntegro, pois, caso contrário, até mesmo a aspereza do ar pode ofendê-lo ou corrompê-lo. Foi para isso e por isso que Deus criou uma medicina desde o começo do mundo até hoje e ainda nos dará uma outra que sirva até a consumação dos séculos. Ela será igual em força, virtude e poder àquela conferida aos apóstolos para a cura das doenças, cuja eficácia emana da vontade divina.
Os médicos receberam assim o mesmo mandato dos apóstolos. Os que vivem sob esta ordem deverão necessariamente atuar de acordo com ela, aprendendo e conhecendo o verdadeiro e autêntico (genuinum) fundamento de todas as coisas.
Acontece que muitos desses médicos preferem conservar-se infiéis (adulteri), cometendo uma série de transgressões a esse mandato ou sendo indiferentes. Eles constituem o que Cristo chamou de “nação depravada e adúltera”, pois mesmo vendo os sinais não querem agir de acordo.
Nenhum sinal maior do que o de Jonas dentro da baleia será dado a esses médicos. Isto quer dizer que terão de buscar por si mesmos a medicina sobre a face da terra, assim como os judeus deverão esperar a sua ressurreição no ventre da baleia.
Por outro lado, esta arte é tão complexa (multiplex) e as três substâncias tão certas, que tanto o enxofre como o sal e o mercúrio podem surgir nas quatro gerações que se encontram repartidas na natureza das quatro matérias ou elementos.
Todas as coisas nascem dos quatro elementos: da terra saem as ervas, a madeira e seus derivados; da água, os metais, as pedras e os minerais em geral; do ar, o orvalho e a terebiana ou maná; e do fogo, o trovão, o relâmpago, o raio, a neve e a chuva.
Deixemos esta parte para a meteorologia, constituída pela luz da natureza, e continuemos nosso assunto.
Quando o microcosmo (o corpo humano) desaparece e se reintegra na terra, ela o reverte com o seu admirável poder gerando novamente os frutos correspondentes às sementes que com ele foram semeadas. Esta operação deve ser perfeitamente conhecida pelo médico.
Assim nasce o segundo elemento, a água, por meio da qual a espagírica ou yatro-química constrói o rubi, já que ela é à matriz dos minerais. Esta operação produz o terceiro elemento, isto é, o fogo. Este gera o granizo e o quarto elemento aéreo que se destila a si mesmo como em um vaso de vidro fechado (in concluso vitro) dando lugar ao orvalho pela ascensão do seu espírito. Muitos tentaram descrever esta geração, mas é preciso convir que perderam todas as esperanças de realizá-lo, o que não é para se lamentar, porque não é prudente deixar um porco solto no jardim.
Ainda existe outra transmutação: aquela que deu liberalmente todos os gêneros sulfurosos, mercuriais e salinos, tal como convém lhes mostrar neste mundo microcósmico.
É verdade que muito se tem feito para o encontro da saúde do homem. Uns falaram da água da vida, outros da pedra filosofal, dos arcanos, do bálsamo, do ouro potável e de muitas outras coisas. Todos tiveram razão porque de fato todas elas existem no mundo exterior e outras semelhantes no mundo interior.
Nada é tão negro que não tenha algo de brancura, assim como tudo o que é branco também tem alguma sombra. Esta ideia se aplica a todas as cores.
Assim vemos que o sal (que é branco) contém todas as cores. Que o enxofre arde porque possui todos os azeites e que o mercúrio flui porque encerra todos os humores. E assim todas as outras coisas que atribuiremos à filosofia.
Fica então estabelecido que o homem é o seu próprio médico, pois por menos que ele ajude, (opitulatur) a natureza transformará sua anatomia em um jardim, com a melhor assistência imaginável.
Se estudamos se analisamos bem as causas de todas as coisas veremos que a nossa natureza é o melhor médico porque possui em si mesmo tudo o que precisamos. Consideremos rapidamente as feridas: elas são apenas perdas de carne, e a sua cura deve vir da própria carne interior, sem nenhum acréscimo exterior. Desta forma, a cura das feridas não é mais que uma proteção (defensio) para evitar que a natureza seja impedida por algum obstáculo externo, podendo agir livre de inconveniências. Com isso a ferida se regenera, conforme ensina a cirurgia dos mestres mais hábeis.
O que cura verdadeiramente as feridas é a múmia: a própria essência do
homem3. O mástique (resina da aroeira), as substâncias gomosas (gummata), e o litargírio não têm a menor influência na geração da carne, atuando unicamente no sentido de proteger a natureza para que nada possa perturbá-la em seu trabalho regenerativo.
Os gregos também conheceram um filtro preparado com sangue, mas não lhe deram esse nome, como o dos corpos embalsamados, segundo Heródoto e Plutarco. Tal termo também é desconhecido na língua copta, mas existe em árabe se referindo corretamente às múmias egípcias.
A mesma regra vale para as doenças internas. Assim, se a natureza se defende, poderá curá-las sozinha. A natureza possui uma função exata para as suas curas, que o médico ignora, tornando-o assim um mero protetor ou defensor da natureza.6
Existem tantas propriedades interiores na natureza como manifestações exteriores na ciência. Estas últimas são deduzidas das primeiras e são frutos do estudo, com o qual chegamos a fazer as mesmas coisas que a nossa natureza realiza em nós.
Esta questão sobre a potência da medicina deve ser compreendida de duas maneiras: a que se refere ao grande mundo (macrocosmo), e a do homem
(microcosmo). Uma é composta de métodos e procedimentos defensivos (in defensivis) e outra de ações curativas (in curativis).
Quando por exemplo defendemos a natureza, nos servimos de sua própria ciência para a cura. Ao contrário, fora esta ação defensiva, empregamos a nossa ciência atuando como verdadeiros médicos curadores (curatores).7
Sobre isto diremos que muitos médicos acabam desviando sua atenção por causa da rotina, o que nos permite dividi-los em duas classes: os que dão (addicunt) a sua ciência pessoal à natureza, empregando apenas processos defensivos ativos (e que frequentemente acabam não se entendendo entre si) e os que somente se servem da ciência da natureza, que são os verdadeiros curadores.
Quando alguém fica ferido pode se tratar, segundo isso, de duas maneiras (mais acima falamos do método defensivo). O método curativo é feito quando a ferida está inchada (ventricosum), colocando-se nela (indautur) os remédios que fazem crescer a carne, com o que a ferida se recheia elevando o seu nível (insurgit), e digerindo os medicamentos em seu interior. Assim a carne se regenera, tendo a ferida se comportado como um verdadeiro ventrículo.
Podemos ver, segundo este princípio, que no médico e em todas as doenças existe uma ciência, e na natureza do microcosmo uma outra.8
Isto quer dizer que entre o homem e as coisas externas há sempre um certo acordo ou semelhança fazendo com que concordem e se ajudem mutuamente (afficiunt ac admittunt). E somente quando o homem percebe, admite, e conhece a natureza das coisas, chega a possuir verdadeiramente o conhecimento da anatomia. Pois, sendo o limbo a totalidade do mundo (universus mundus) e estando o homem formado nele, pode-se estabelecer que tudo deve concordar com o que é semelhante.
Se o homem não tivesse sido feito dentro do orbe e de todas as suas partes, o pequeno mundo do microcosmo não existiria e nem seria capaz de receber tudo o que o grande mundo produz. Daí concluímos o seguinte: tudo que o homem come ou consome é na verdade uma parte de si mesmo, e que, tendo nascido do macrocosmo, sendo de um certo modo semelhante a ele, também faz parte do grande mundo. Não é certo que o homem tenha sido feito do nada. Pelo contrário, foi fabricado (fabrefactus) do grande mundo, e por esta razão também se acha nele. Assim, existindo entre ambos um nexo (nexus) de dependência tal como o de um filho para o pai, é natural que ninguém possa socorrer mais rapidamente o corpo humano do que aquele que é como o seu próprio pai.
Essa ajuda ou assistência faz com que cada membro externo seja a melhor medicina para o seu correlativo órgão interno, e assim sucessivamente uns para os outros na mesma ordem. Pois não há dúvida de que todas as
proporções humanas, divisões, partes e órgãos estão no grande mundo assim como o homem em sua totalidade.
O homem come e consome tudo isto, tanto nos remédios como nos alimentos, que só se diferenciam entre si pelo corpo médio, isto é, pela figura e pela forma. De acordo com a ciência o corpo físico só possui uma forma, uma imagem e um corpo médio. Deste modo o corpo do homem absorve (assumit) o corpo do mundo da mesma forma que um filho recebe o sangue do pai. Eles não são mais do que duas almas com um mesmo corpo e um mesmo sangue. Deduzimos então que o céu, a terra, o ar e a água estão, segundo a ciência, no corpo do homem, pois ele constitui por si mesmo um verdadeiro mundo.
Por isso o Saturno e o Júpiter do microcosmo atraem (asciscit) o Saturno e o Júpiter celestes.
Essa conjunção entre os dois céus faz com que também existam afinidades entre os elementos da terra. Assim, a erva-cidreira da terra se relaciona com a erva-cidreira do microcosmo, e o goivo do microcosmo assume (assumit) pela mesma razão o goivo da terra.
A caquimia da água adota a caquimia do microcosmo, assim como o talco,o orvalho e a terebiana de um e outro elemento.
Tudo isso pode ser explicado levando-se em conta que tanto o céu como a terra, o ar e a água, não são quatro coisas, nem três, nem ao menos duas, mas uma única, na qual as quatro se conjugam (conjugantur) podendo se dividir e separar-se.
A adaptação desses conhecimentos à conveniência da medicina nos ensina qüe quando administramos os medicamentos devemos dar com eles o número total, quer dizer, que contenham todas as virtudes do céu, da terra, do ar e da água.
Nós vemos isto muito bem quando qualquer doença penetra no corpo. Todos os seus órgãos, absolutamente todos, lutam contra o corpo doente defendendo por sua vez o todo e as partes, já que a enfermidade leva em si a morte de todos os órgãos. A natureza pressente que deve empregar toda a sua força e todos os seus recursos contra a doença.
Por isso é muito importante criar uma medicina que contenha o firmamento universal, tanto o da esfera superior como o da inferior. E é também por isso que a natureza pode resistir à morte com tanta intensidade, chamando em seu auxílio o céu, a terra e todas as suas virtudes e potências.
Acontece o mesmo quando a alma, ao chamar por Deus com todas as forças do seu coração, consegue lutar, resistir e chegar a vencer o diabo.
Assim também a natureza reúne e emprega todos os meios criados por
Deus para expulsar a morte, ainda que ela nos faça estremecer de pavor pela amargura e crueldade do seu terrível olhar, mesmo sem vê-la ou tocá-la realmente com nossas mãos. Mas a natureza, que pode vê-la, tocá-la e reconhecê-la sempre, atrai todas as potências terrestres e celestes para poder resistir ao seu formidável impulso.
Saibam que a morte é verdadeiramente horrível, cruel e áspera. E lembrem-se de que ela chegou a aterrorizar até mesmo aquele que a criou, quando Cristo estremeceu de espanto no monte das Oliveiras, suando sangue e pedindo ao seu Pai celestial que a afastasse dele. O que tem de estranho que até a natureza trema diante dela?
Por isso, à medida que seja maior o conhecimento sobre a morte, maior deve ser também a prudência e o cuidado na pesquisa que o homem verdadeiramente sábio (vir sapiens) empreenda contra ela.
CAPÍTULO III
(Dissertação sobre os medicamentos e sobre a morte)
A grande farmacopeia (magnum compositum), isto é, a verdadeira medicina tem sua origem nas virtudes de todos os elementos do céu e da terra. O médico deve aprender dela a fazer suas receitas com simplicidade, não só quanto ao número e quantidade dos medicamentos, mas também em sua composição, cuja ordenada reunião formará todo o homem exterior. Assim ele reunirá as potências de todos os remédios, medicamentos e arcanos, podendo empregar suas forças na luta contra as doenças que o atormentam. Com respeito aos arcanos das doenças destinadas a acontecer no futuro, sua conduta se reduzirá a ações de uns e outros entre si, como um descanso, à espera da hora marcada para elas chegarem.
O mesmo que com a madeira que o artesão tem em suas mãos — a qual pode ser esculpida em centenas de formas — acontece com as doenças, cujo número pode ser igualmente elevado, embora atuem e se produzam num mesmo corpo.
Do mesmo jeito como as imagens de madeira queimam e se consomem no fogo, a medicina da grande composição ou farmacopeia se limpa no fogo, que assim separa nela as coisas puras das impuras. Por isso as grandes receitas devem ser muito bem conhecidas. E quanto às medicinas particulares ou locais, convém que sejam administradas segundo a ordem prescrita (legitimo ordine), apesar do que nem sempre estão isentas de perigo.
Já vimos que no “grande composto” se acha o mundo inteiro, quer dizer, o céu, as virtudes da terra e o homem microcósmico, contidos em uma gota. O homem se encontra, pois, encerrado na farmacopeia com todos seus membros, articulações, natureza, propriedades e essências, boas e sadias, más e enfermas. Por isso, quando absorve algo dessa grande composição, absorve a si mesmo no
limbo de onde foi criado e então o corpo médio o une, restituindo-lhe o que falta.
Essa composição ultrapassa todas as demais medicinas, do mesmo modo que o Sol supera todos os outros astros.
Com efeito, em que se diferencia o Sol da Lua ou o dia da noite? Diremos que unicamente na luz. O mesmo que o céu da terra e, nela, as diversas flores, raízes, pedras preciosas e pérolas.
O médico deve conhecer os medicamentos com tal exatidão que possa chegar a separar neles as trevas da luz e o dia da noite, e uma coisa em cada dia, assim como Deus Pai.
O que temos em nossas mãos é tão parecido com o que o próprio Deus possui, que devemos colocar nisso toda a ciência a fim de que cheguemos a separar e a distinguir o preto do branco, o claro do obscuro e a medicina do barro em que habitualmente está escondida, como foi criada por Deus.
O que diremos agora sobre as operações? Afirmamos que Deus não quer que se realizem como se fosse cortar árvores a golpes de machado, exigindo que tais trabalhos sejam, de acordo com os princípios da medicina, com a aplicação de toda sua eficácia, virtude e trabalho, para curar (sanavit) estas doenças como Ele dispôs sobre a terra. E antes que a menor palavra saia de sua boca, serão curados (convalerant) todos os enfermos.
Muitas outras coisas ainda deveríamos considerar se não fosse a ignorância dos médicos e tão violenta a vaidade com a qual se empenham em aparecer como sábios, mostrando apenas algumas migalhas de ciência. Assim mesmo devemos levar em conta os defeitos dos doentes e finalmente outra série dessas coisas que somente Deus conhece e que não devemos investigar.
De acordo com o poder e a virtude da ação da medicina, condensação das virtudes de todas as potências celestes e terrestres, compreenderemos por que o inverno não pode absorver o verão e vice-versa, e que por isso mesmo não devemos tentar dispersar o elemento da água pelo do fogo, nem o frio úmido pelo calor seco. Os elementos não são doenças propriamente ditas, mas indicadores delas, do mesmo modo que os ramos indicam a árvore, sem serem eles mesmos a árvore.
Os temperamentos foram impressos em nós de tal modo que nenhum deles muda ou se deixa suplantar por outro, como também acontece entre o céu e a terra, e finalmente no homem.
O que vai além desse estado já não deve ser considerado como um temperamento, mas como um verdadeiro acidente. Em sucessivos capítulos especiais veremos como tudo isso está ordenado e disposto.
Tendo falado até aqui sobre a saúde e as doenças do homem baseados em sua teoria e sua física geral, convém que falemos alguma coisa sobre a morte, seus aspectos e sua oportunidade.
Todas as coisas têm um tempo prefixado, quer dizer, uma duração que será consumida infalivelmente seja no bem ou no mal.
Os santos, por exemplo, têm um prazo determinado em suas vidas, no fim do qual devem abandonar a terra e encerrar suas existências. Os malvados (improbis) têm seu tempo. E todas as coisas terminam no momento exato que Deus fixou para elas.
Nem o santo mais piedoso poderia ultrapassar esse prazo, por mais útil ou saudável que fosse a sua existência.
Quando o momento da morte se aproxima nada pode subsistir (nihil superest, nihil spectatur) e quando ouvimos as palavras “levanta-te e anda” (surge et abi), o fim do tempo chegou.
Entretanto a morte se mantém (adsidet) a nosso lado, esperando pacientemente que nossas guerras internas lhe ofereçam uma oportunidade para colocar-se diante de nós e possuir-nos, pois ela ignora a hora em que deve entrar em nosso corpo e matá-lo. O medo de que este exato momento lhe escape a faz manter-se vigilante e cuidadosa do instante certo em que deve aparecer, mas apesar de tudo nunca poderá desobedecer os desígnios e as ordens que Nosso Senhor lhe dita do céu.
Só quando ignora a hora e o minuto do nosso fim — c precisamente porque os desconhece — deixa-se ser vencida pela medicina, apesar do que sempre procura aproximar-se o máximo possível, acreditando que cada momento pode ser o seu. Por isso e ainda que se engane constantemente, sempre volta com suas agressões e assaltos.
Todas essas coisas da vida, tão belas, boas, agradáveis e às vezes tão cheias de encanto especial, são como um tesouro de ouro e pedras preciosas escondido numa cesta que um ladrão estivesse disposto a roubar. Em verdade nada disso nos é permitido evitar, e nem a utilidade, o dano, a probidade ou a malícia poderão impedir ou deter a hora do “levanta-te e anda”, pois nada no mundo pode opor-se aos desígnios divinos.
Nossa vida é um tesouro em cuja proteção nos falta a mais elementar segurança. E mesmo quando o protegemos com todo cuidado vemos como ele é roubado diante dos nossos próprios olhos a despeito de toda vigilância. Nenhum doente encontrará proteção mais eficaz do que o refúgio em Deus, implorando pela sua melhor ajuda. Quando somente roga e pede ao médico os auxílios de sua arte, a morte sempre acaba levando-os.
Um rei que durante uma batalha se protege com todos os seus exércitos, com fossas e trincheiras por todas as partes, rodeado por sua infantaria e cavalaria, não está em segurança? E, mesmo assim, com uma defesa perfeita, como é possível que uma bala ainda o atinja?
Na verdade muitas são as maneiras pelas quais podemos perder a vida. Por isso, bem-aventurados aqueles que a morte surpreende com os corações bem dispostos como no caso de São João Batista, os profetas e os apóstolos.
É preciso que estejamos sempre atentos pois certamente ela nos levará ao juízo onde prestaremos conta do uso do nosso tempo, até o menor dos instantes, como um verdadeiro arauto do tribunal de Deus.
No momento dessa convocação é que a alma se separa definitivamente do corpo e o juízo de Deus se abre, no dia e na hora determinados. Digo que esse dia será de grande miséria, em que o céu e a terra se levantarão (attolentur) tremendo, e quando as trombetas acordarão (suscitabunt) todos os que devem ser chamados, vivos e defuntos.
Quando a morte nos ressuscitar devolverá tudo o que nos levou (abstulit). E assim, ao lado do nosso anjo1 esperaremos a decisão deste tribunal cujas celas de prisão é a vida na terra.
Todos que estão na terra morreram de fato em pecado. Por isso ficamos detidos nesta prisão até que chegue a hora do juízo, esperando como verdadeiros cativos.
Logo que percebemos o chamado da morte o espírito se eleva até ao Senhor, enquanto que o corpo fica sozinho em sua prisão terrestre. Todos ficam em seu próprio meio (in sua sede) até a hora em que devam se reunir novamente. Neste instante as três substâncias — enxofre, mercúrio e sal — voltarão à sua essência e ao seu sangue.
O que acontecerá diante do Criador de almas e de corpos, escondido da vista dos homens até esse momento?
Nesta hora não existirá nenhuma doença, nenhum médico, nem doentes, e será na verdade o fim de todas as coisas.
Enquanto esperamos esse acontecimento devemos manter-nos vigilantes e estudiosos das ciências para sermos capazes de encontrar uma razão digna e um motivo de verdade para a nossa vocação.
CAPITULO IV
(Onde fala sobre o mercúrio)
Apesar de termos falado sobre a morte no capítulo anterior, o nosso trabalho ainda não começou. A pausa que fazemos agora tem como motivo a meditação, para que assim a nossa exposição fique mais clara.
Vamos rever de um modo melhor e geral tudo o que diz respeito às três substâncias, e começaremos pelo mercúrio.
Ele está no homem sob a forma de licor e em numerosos aspectos, expressão de suas múltiplas naturezas.
Os métodos para conseguir sua separação são três: a destilação, a sublimação e a precipitação. Em cada um desses modos existem diversas espécies que não vamos enumerar agora separadamente. Basta que falemos sobre as mais importantes. Diremos assim que a essas três maneiras de separação correspondem outras três semelhantes no corpo, que é a operação da natureza.
Antes de mais nada é conveniente averiguar o que é que obriga o mercúrio a esses três modos de separação, já que ele não se produz por si mesmo, mas por meio de alguma coisa exterior que o faz ascender, separando-o dos outros princípios.
Acontece a mesma coisa com Lúcifer, cujo orgulho não é um resultado de sua natureza, mas recebe-o de fora. Por isso pode se elevar sobre tudo.
O estímulo do mercúrio também vem de fora dele (o que devem compreender com muita precisão), devendo ao calor, ainda que acidental, a virtude digestiva que determina a sua ascensão. O calor eleva o mercúrio sobre si, fora de si e o excita (agitat) como a madeira abrasada e queimada pelo intenso calor do Sol.
Também pode ascender estimulado por calores estranhos e passageiros que conseguem expulsá-lo de três maneiras, conforme os princípios da ciência mestra que é a arte da mecânica. Ê preciso considerar ainda uma outra espécie de calor: aquele que vem (emergit) do movimento do corpo. E por mais fraco e irregular que seja também é capaz de abrasar o mercúrio obrigando-o a elevar- se.
Além desses ainda existe o calor provocado pela energia. Por exemplo:
quando aparece uma estrela cadente sabemos que ela anuncia mortes repentinas e doenças mercuriais durante esse tempo e ano.
Três calores estranhos podem determinar a ascensão do mercúrio e consequentemente a precipitação do seu orgulho nas doenças e na morte. E o médico deve conhecê-las muito bem para saber quando o calor vem dos astros e quando vem dos exercícios ou experiências (calor exercitii). Só assim poderá proteger os seus doentes, prescrevendo para cada um os regimes adequados.
Explicaremos as três maneiras como se realiza a combustão do mercúrio, tanto nos meios úmidos como nos meios secos ou de pouca pressão.
Sabe-se que o mercúrio se encontra em todos os órgãos do corpo e em tantos espaços como órgãos, cada um dos quais tem a sua própria função: razão, visão, audição e etc., do que resultam as diversas doenças.
Por isso, quando o doente perde a razão, quando se lhe abrem as veias, os ligamentos, ou quando fica com a língua seca, sempre sente inicialmente o calor.
O corpo abrasado em todas as suas partes começa a arder e a se encher de um fogo como se existisse nele o mercúrio.
O calor da saciedade chega a tornar-se tão sutil que consegue se igualar com o do espírito do vinho. Neste caso chega a entrar no cérebro, permitindo que o mercúrio se extravie dos seus caminhos naturais quando o calor se faz suficientemente forte. Tudo que ele atinja nesse momento ficará ferido ou doente.
O mesmo acontece com a combustão do mercúrio do coração.
Nas compleições sadias isto também pode acontecer como consequência de exercícios cotidianos, ou imoderados, e mesmo pela influência de uma estrela semelhante. Nestes casos todo o corpo se transforma e os membros se enchem de calor. O mercúrio ascende e se exterioriza (sursum deorsum) destilando-se como se o corpo fosse um pelicano1 e alcançando sua verdadeira malignidade (nequitia) ao atingir o mais alto grau. Só então, maduro e sutilizado ao extremo, seja espontaneamente, por sublimação, destilação ou precipitação, consegue alcançar sua essência suprema. Aí então é expulso do seu lugar normal, sobrevindo rapidamente a doença do corpo e a morte.
Antes disso e durante um certo tempo, ele ascende, circula e se prepara no espaço que fica livre. Logo em seguida, ao atingir o máximo estágio, acaba sendo expulso e caindo até ao ponto mais baixo.
O mesmo acontece quando uma estrela aprisiona e queima sua parte correspondente. E não se detém até alcançar sua máxima sutileza, provocando com isso diversas doenças.
A inquietação do mercúrio ao exaltar-se (agitur) pelo calor exterior não é mais que a expressão do movimento de expulsão ou repulsa que causa a aparição das doenças.
As três maneiras como o mercúrio manifesta a sua capacidade para gerar doenças são estas: destilação, precipitação e sublimação.
A destilação leva à morte repentina em todos os seus aspectos; a precipitação provoca a gota nos pés (podagra), nas mãos (chiragra) e nas articulações (arthetica); a sublimação causa o delírio e a loucura (mania).
A cada um desses meios e espécies consagraremos outros tantos livros nos quais explicaremos tudo com mais detalhes.
As substâncias que alcançam sua última matéria, ultrapassando e superando os graus normais são muito numerosas. Essa diversidade se refere às substâncias mercuriais, às funções das partes, às naturezas, aos modos e às propriedades, sendo as doenças mais extraordinárias quanto maior for o número de coincidências entre estes elementos diferentes.
Com esta preparação o mercúrio torna-se tão sutil e tão poderoso em sua natureza interior que ninguém pode resisti-lo, nem mesmo as outras duas substâncias, repelidas pela força e intensidade do seu calor.
Comportando-se assim ele penetra nas carnes e nos ossos, escapando e suando não só pelos poros mas por todos os pontos fracos através dos quais abre diversos caminhos. Assim nascem as fístulas, pústulas, doença francesa (morbus gallicus), a lepra e outras semelhantes cujos modos e mecanismos de produção explicaremos em outros capítulos especiais.
Devemos saber que esta ascensão do mercúrio não só provoca calor, mas também pode causar frio, terror e estremecimentos (rigorem horrorenque suscitavit) todas as vezes que chegue em seu paroxismo.2 Acontece que sempre quando esse veneno ataca a natureza ela é tomada de repulsa e espanto, vindo como consequência o tremor do corpo, amedrontado pelo frio e calor que o ameaçam simultaneamente (concurrunt).
Seu mecanismo é então um mecanismo de obturação e flutuação de vapores; o mesmo que faz a tampa de um recipiente fechado subir sozinha sob os impulsos dos vapores de um líquido fervendo em seu interior.
Por isso o estremecimento, matéria e natureza do frio, afasta-se e se deixa dominar na medida em que o calor aumenta.
Deste modo terminamos o nosso estudo sobre as maravilhosas naturezas do mercúrio. A preocupação de ser breve fez com que explicássemos apenas o fundamental. Mas em outros volumes do nosso tratado voltaremos ao assunto com a devida e necessária amplitude.
CAPITULO V
(Sobre o sal)
Terminada a dissertação sobre o mercúrio vamos dispensar neste capítulo a mesma atenção ao sal que é outra das três substâncias.
Saibam que o sal alcança em sua soberba quatro modos de transformação: a resolução, a calcinação, a reverberação e a alcalinização.
Essa diversidade de naturezas explica as distintas espécies de sal e de suas preparações. Muitos sais estão calcinados, outros reverberados, outros alcalinizados e outros em resolução, mas todos se comportam dentro do homem da mesma maneira que em seu exterior.
Primeiro devemos saber por que o sal se dissolve (infringitur) e por que chega até às combinações do estágio supremo, onde normalmente não deveria chegar. As causas disso são três.
A primeira é a imoderação no comer, que perturba a digestão tornando as partes muito lascivas, a carne demasiadamente lúbrica, que se torna delicada, branda, medulosa e o sangue excessivamente impetuoso (luxurians).
Quando todos esses estados acontecem o sal não pode manter-se na essência e integridade em que habitualmentc deve permanecer. Do mesmo modo como os frutos que crescem em campos abandonados amadurecem e apodrecem com maior facilidade quando cai sobre eles uma chuva abundante.
Isso quer dizer que o excesso e a abundância (luxus) excitam a exaltação do sal, tão mais rápida e intensa quanto a luxúria ou o coito provocados por irritações pruriginosas, por transformações intensas ou por alterações do sangue.
Como consequência de toda esta agitação, o corpo gera um espírito frio que se manifesta em forma de sopro (flatus), o que converte a natureza do sal dando-lhe outra muito mais poderosa. Igualmente quando o esperma retido é desviado para fora de seus condutos naturais, a natureza do sal se rompe, provocando uma grande necessidade de água, que é atraída abundantemente, levando assim o sal a uma outra natureza.
Acontece o mesmo quando o astro incide (incidens) nas partes do sal:
elas ficam secas como se expostas ao vento e derretidas como gelo ao sol, já que os sais estão no corpo como o granizo no campo depois da tempestade.
A natureza do granizo é de tal forma que o permite ficar no mesmo estado durante algum tempo, mesmo que não possa resistir muito, pois finalmente acaba rompendo-se, desfazendo-se e desintegrando-se.
Com o sal também acontece assim. Ele se altera facilmente pela abundância de carne, pelo excesso de gordura e pela pletora de sangue, assim como pelo endurecimento da natureza no coito e sob a influência dos astros. Nessas condições acontece que alguns sais se dissolvam de tal modo que chegam a derreter como se fossem neve. A natureza do calor interno atua tendendo a expulsar o sal dissolvido para fora do corpo, fazendo o mesmo com os sais calcinados e reverberados. Esta é a razão pela qual o suor sempre é salgado.
O suor não passa de sal dissolvido, conforme acabamos de dizer. De onde se deduz que existe um suor do sangue, outro da carne, outro dos ossos e da medula, etc., confirmando o fato das diversas naturezas do sal.
Assim se produzem as manchas da pele (serpingines), os impetigos (impetigines), os pruridos (pruritus), as rachaduras (scabies) e outras tantas lesões desse gênero que explicaremos detalhadamente nos nossos livros de cirurgia.
Quando os sais se calcinam perdem seu líquido e quando essa calcinação já foi produzida em sua essência, quer dizer que a mesma aconteceu por si (per se ipsum) anteriormente na natureza.
Quando o sal perde espontaneamente a água, ou é substituído seu temperamento úmido, ele se calcina da mesma forma que o alúmem, o vitríolo e outros preparados semelhantes.
Iniciada a calcinação a umidade escapa (secedit) transformada em suor, com o que a pele se irrita, gretando e enchendo-se de úlceras. Quando se mantém em sua umidade normal, o sal procura sair corroendo a pele precisamente no lugar sob o qual está escondido. Sobre isso encontraremos novas referências em nossa cirurgia.
O sal reverberado apresenta-se em forma de líquido úmido cuja anatomia se produz por destilação de cima para baixo.1 Assim nenhum calor nem superabundância estranha pode permanecer em sua substância, tal como a água não se mistura com óleo.
Entretanto os espíritos vão e vêm de cima para baixo ao redor desse sal calcinado até que produzem uma mucilagem ou viscosidade muito ácida. Neste momento entra novamente em ação o calor interno, expulsando do corpo essa substância através de chagas e fístulas externas.
Observem assim que o sal caminha em sua natureza até o que ele mesmo é, nascendo desta operação diversas e numerosas doenças que nos livros de cirurgia chamo de “feridas de ferrugem”, já que cada ferrugem deve ser expelida pelos poros, de dentro para fora, consumindo-se ao ar livre.
Sabemos pois que nenhuma úlcera ou enfermidade exterior pode existir sem que se produza o sal, que juntamente com o ar atua na pele atraindo tudo para fora. Segundo o comportamento do sal, surgem úlceras secas, úmidas, com corrimento, saniosas, purulentas, etc., todas aparecendo diversamente, em parte por erosão do corpo médio, em parte devido a alimentos e outras coisas semelhantes.
Desre modo o sal fabrica suas feridas, sejam ambulantes, passageiras (peregrina), corrosivas, cancerizantes, profundas, pútridas, secas etc., ou outras não cancerosas como a calvície (alopecia), pústulas e cicatrizes, os tumores do ânus (condylomata), o mormo,2 a lepra e outras desta espécie.
Conforme o gênero do sal será a classe da dor e do sofrimento, assim como a influência ou movimento determinados pela estrela que se exalte, segundo cada uma dessas circunstâncias.
É importante saber que todas as classes das lesões citadas correspondem à constituição das naturezas do sal e ele, que deu forma a todas elas conforme mostra a luz da natureza, condiciona igualmente as doenças segundo os indivíduos, fazendo que em uns sejam agudas, em outros crônicas, passageiras nestes e mortais naqueles.
Mais adiante explicaremos estas diferenças em outros capítulos particulares.
CAPITULO VI
(Sobre o enxofre)
A mesma coisa acontece com o enxofre, que também é separado pelos quatro elementos.
Assim, quando o elemento líquido entra nele, o enxofre fica úmido, incha, se liquefaz ou sofre alguma transformação semelhante. Quando o elemento do ar o invade, então ele seca completamente, ou quase, pois tanto a umidade como a secura estão presentes nos elementos da água e do ar. Com isso o enxofre pode adotar qualquer destas duas naturezas de exaltação.
Com o fogo e com a terra acontece o mesmo. Quando domina a terra, o enxofre se esfria permanecendo neste estado. Ou se esquenta pelas circunstâncias contrárias, isto é, quando o fogo e o firmamento mostram seu maior poder.
Quer dizer que os quatro elementos são os artesãos e artífices que efetuam as transmutações do enxofre, tirando-o de sua função habitual, fazendo- o provocar uma série de doenças em seus mais diversos gêneros ou espécies. Segundo a natureza da matéria do enxofre eles se comportam de modos diferentes, atacando-o em seu corpo e em seus órgãos.
Quando o enxofre se esfria, a terra torna-o fixo ou volátil, conforme as quatro formas em que o frio aparece: congelação, resolução, coagulação ou dissolução. O enxofre sai assim (emergit) desses quatro elementos reunidos no elemento da terra. Pois saibam que tanto a água como o fogo, a terra e o ar, geram cada um uma parte do frio e que somente por razões filosóficas o frio foi considerado como próprio e exclusivo do elemento terra.
Na realidade só existe um frio ou uma frieza, apesar do que o seu peso pode variar, parecendo às vezes que existem muitos frios, ou melhor, que as coisas podem ter diversas quantidades de frios ainda que seja sempre o mesmo (oequabile). Quanto à substância, temos que dividi-la em duas: a dureza e a umidade.
A dureza é dupla e pode se manifestar sob a forma de congelação ou de coagulação. A dureza congelada vem do frio ígneo (ex frigore igneo), assim como a água gelada, a neve, o granizo etc. O enxofre pode experimentar uma congelação que proceda do elemento do fogo, acompanhado de diversas doenças Semelhantes de certo modo à neve, à geada (pruina) ou ao granizo, cuja origem é justamente análoga. Uma parte dele é gerada nos astros e nós a chamamos de fogo do frio, já que o fogo verdadeiro está no firmamento.
A dureza coagulada é uma frieza que vem da água e ainda que sendo distinta pode alcançar o mesmo nível do fogo que acabamos de nos referir. A coagulação produzida pelo frio é diferente da congelação em que permanece fixa, pois a congelação é volátil, ou melhor, a primeira tem um caráter definitivo e estável, enquanto a segunda tende constantemente a voltar ao seu estado primitivo como ocorre com a água gelada.
Tudo que vem do frio do elemento da água se coagula em frio (frigium coagulatum) como os corais, alúmens, entálias1, vitríolos e outros aos quais todas as doenças geradas pelo frio coagulado são semelhantes, ou melhor, pelo frio da água.
O frio do ar é diferente porque não é congelação nem coagulação, mas simplesmente um vento que como o boreal ou o zéfiro 2, que levam com eles e em si mesmos (per se et ex se), um frio e o calor. Por isso sempre existe uma parte de frio no ar e no vento.
No corpo existem friezas do vento e da terra, sem substância visível ou tangível, acompanhando diversos gêneros e espécies de doenças.
A terra, considerada simplesmente como terra, produz também uma série de enfermidades particulares, assim como algumas ervas frias: a beladona (solatrum), a rosa, a alface, a papoula etc. As doenças são como essas ervas, distintas e separadas entre si em seus diversos gêneros e espécies.
Deste modo devemos conhecer a maneira de procurar o elemento da terra no homem e nos outros elementos, segundo a análise (discrimen) que nos referimos.
Com o calor acontece o mesmo, devendo ser procurado também nos demais elementos.
Por isso todas as doenças do enxofre terão a natureza de algum deles (elementos). Porque quando o enxofre atua em sua função própria (in sui officio) e acende o elemento do fogo que está no firmamento fulgurante, incendeia-se na estrela do verão3. O enxofre arde como uma árvore consumida pela queda de um raio celeste. Ação invisível do firmamento que também pode acontecer no nosso corpo, pois como o firmamento incendeia o enxofre da árvore, também pode
incendiar o do homem. Quando isso acontece, atingindo qualquer órgão do corpo, começa o desenvolvimento do seu poder.
Fora este, existe também na água um outro fogo que pode queimar o enxofre do mesmo jeito que o fogo do céu.
O sílex e a calcedônia o possuem e podem deixá-lo escapar (edant), da mesma forma que esse elemento interno que não podemos ver e que é o verdadeiro artesão (fabricator) de todos os elementos.
É indiscutível que existe na terra um elemento do fogo capaz de queimar o enxofre, pois conhecemos o poder que desenvolvem as ervas do tipo da urtiga e da flâmula4 quando colocadas em contato com o nosso corpo.
Esta e outras gerações semelhantes são produzidas no homem, resultando de cada uma delas diversas doenças externas e internas, bem diferentes das moléstias mercuriais, salinas e outras parecidas, que serão explicadas em outro livro.
Existem com efeito a doença da flâmula, da pimenta, e a doença aromal.5 Como dissemos com respeito ao frio, também existe no ar um elemento
quente do fogo que gera doenças ígneas próprias dele segundo a natureza do euro e do austro.6 Em todas elas percebemos que a coagulação no fogo do firmamento, na terra e na água só se realiza espontaneamente de acordo com três modos precisos: o da terra, cujo produto são as ervas; o da água, parecidos aos minerais incandescentes, e o do céu, que causa as impressões.7
O elemento da água também possui sua coagulação no frio, onde se desenvolve como nitratos e outros sais nítricos. Fora isto, existe também uma umidade que vem de cada um dos quatro elementos. Elas não se opõem todas juntas mais do que um só grau e uma só causa às suas doenças, ainda que continuem conservando os quatro gêneros e espécies correspondentes ao ar, à água, à terra e ao fogo.
Essa mesma quádrupla razão existe para a secura. Seus quatro gêneros também emanam dos elementos, existindo assim securas vindas do fogo, do ar, da água e da terra, causando outras tantas doenças que começam nestes graus e a eles pertencem.
A prática dessas doenças será exposta e explicada nesta ordem exata, ainda que teoricamente não se sucedam correlativamente assim.
Por isso nos limitamos a expor os fundamentos e generalidades de um modo conciso, deixando para o Livro dos Temperamentos e dos Graus o estudo mais profundo disso e de outras coisas semelhantes que na verdade se relacionam mais com a filosofia.
Existem doenças que às vezes se produzem independentemente dos elementos, quando, por exemplo, uma umidade qualquer acende o sal calcinado:
seu enxofre se incendeia da mesma forma como já descrevemos acima.
£ conveniente que saibamos conhecer e distinguir todas as coisas pelos seus sinais particulares, porque quem ignorar suas diferenças será incapaz de identificar os sinais provenientes dos transtornos internos (bella intestina).
Prestem bastante atenção nos nossos livros e não sigam com excessiva fidelidade as suas divisões. Quando virem que num título vamos nos referir a três causas ou motivos, devem saber que isso não é mais que um modo de dizer, ou uma forma de querer classificar os detalhes (de accidentibus), ou mesmo o fim (de fine), pois na realidade as coisas que devem ser apreendidas são diversas e em número muito maior.
Os acidentes têm em si não só a sua plenitude mas os elementos e uma grande quantidade de sintomas externos. Assim, se a doença deve receber um nome, nada melhor do que usar o da coisa que a gera. Essa é a razão pela qual conservamos e observamos a mesma ordem em cada capítulo do nosso tratado.
Nestes livros gerais permanecerão a teoria e a física das doenças, deixando sua prática para outros específicos que iremos expondo sucessivamente.
CAPÍTULO VII
(Sobre o gérmen do esperma, as causas específicas e a predisposição como causa de doença)
Temos que dizer, em continuação e além de todas essas coisas, que ainda existe um outro gênero de doenças das quais escolhemos duas para falar neste capítulo. Umas vêm da semente do esperma (ex semine spermatis) e outras da forma específica. Todas elas devem ser consideradas com a máxima atenção a fim de não confundi-las com as outras classes de doenças.
Já sabem que as três primeiras substâncias se encontram em todas as coisas. Mas nelas também existe um determinado acidente particular que nada tem a ver com as referidas substâncias, que inibe o suor, dá a sensação de queimação e outros males parecidos.
Essas coisas é que determinam as chamadas doenças específicas, que não vêm das causas explicadas antes, mas que estão de um certo modo inatas em nós, fazendo parte da própria natureza individual de tal modo que um tem propensão para suar, um outro não, aquele é de um jeito e este de outro.
A propósito do esperma diremos que ele provoca uma grande quantidade de doenças até agora atribuídas a outras causas por ignorância. Na realidade, a cânfora, o espermacete (spermati)1 e outras substâncias desse tipo são as que produzem as doenças da bexiga e dos rins. Ainda que o tártaro seja a causa da pedra e esta seja a matéria dessas doenças, é preciso saber que o tártaro não se transforma e não se aglomera2 espontaneamente em pedra, mas necessita da
intervenção desta outra natureza para que o congele com o seu frio ou o coagule com seu calor sudorífico (diaphoretica).
Este calor e este frio não devem ser considerados como os outros que estudamos até agora, pois em verdade a semente do esperma possui uma anatomia e uma física particulares. Por isso este capítulo já é praticamente um capítulo especial pois seu conteúdo deve ser separado de todas as outras doenças.
Nada que seja congênito pode ser arrancado de sua raiz inata, na qual se abrigam a forma específica e a semente do esperma, ou melhor, a sua natureza, explicando assim que o gérmen se sustente sempre em sua própria raiz.
Quando nasce algum cego, por exemplo, não se diz que o seu mal é congênito, pois ainda que não possua o dom da visão, a vista está nele, mas não no lugar adequado ou certo. Esta é a causa de sua cegueira; por isso quando se diz que é cego e que nasceu cego, não se diz que possui a vista dentro de si. Este é também o caso daquele que tem quatro dedos em uma mão e seis na outra: o número de dedos é exato mas eles estão somente em lugar errado.
Nenhum médico experiente (peritus) deve dizer: “este cego é incurável”. Porque a natureza é extremamente hábil, bastando apenas que a vista exista para ser restabelecida em seu devido lugar, o que não acontece no caso dos dedos, cujo exemplo acabamos de dar.
A diferença está em que os dedos são substância do corpo, enquanto que o sentido da visão é como um sopro (ventus) desprovido de base material. Por isso pode-se levá-lo de um lugar paia o outro, enquanto o mesmo não acontece com as partes do corpo que nasçam em lugar errado (in transposito corpore).
Esta afirmação não é válida para as coisas apresentadas neste capítulo que tenham natureza e propriedade congênita, como é a dureza para o ferro, a brancura para o gesso, que devem ser considerados tal como se apresentam.
Ninguém pode impedir que a neve caia. Mas pode evitar que essa neve cause danos ao homem.
Já que o esperma é o limbo e que está nos quatro elementos, é preciso saber que possui forças semelhantes que recebem o nome de impressões, como na verdade lhes corresponde.
Observem o erro cometido pelos astrônomos quando dizem que a impressão é de natureza celeste. Isto é completamente falso, pois o céu não imprime nada, porque a nossa figura existe em nós mesmos pela vontade e a mão de Deus.
Tudo o que somos ou desejamos ser, seremos sem a ajuda de nenhum intermediário, com todos os nossos membros, mas reproduzindo a obra e a
imagem que a mão de Deus gravou (simulacrum). Sejam quais forem as condições, propriedades ou costumes que cheguemos a ter, devemos saber que todas nos foram dadas e inspiradas (inspiratus) com a vida, cujo sopro as semeou e as injetou em nós.
As doenças que nos afligem vêm todas (emergunt), conforme explicamos, do conjunto das três primeiras substâncias, às quais são acrescidas em seu interior de uma coisa determinada e especial, verdadeiramente impressa, como se fosse o fogo na madeira ou na palha, ou o açafrão na água.
Essa impressão, da qual não podemos nos livrar, constitui as doenças exteriores originadas pelo limbo. Gravada no esperma e nas formas específicas, ela nos empurra (pellimur) verdadeiramente, sem que cm nenhum caso possamos expulsá-la por nossa própria vontade.
Ao contrário, não tem fundamento tudo o que se diz sobre a inclinação ou predisposição. Aqueles que afirmam que por esta razão o homem pode possuir uma inclinação para Marte, Saturno ou a Lua, ou que por tais motivos está predestinado a ser um ladrão, cometem um grave erro e uma velhacaria.
Podemos dizer com absoluta precisão que Marte é que combate de maneira mais parecida com o homem, pois o homem é mais poderoso do que Marte e todos os planetas juntos.
Quem estuda o céu e o homem com verdadeira seriedade e honestidade científica, sabe que nada disso é possível, e que, ao contrário, a imagem do homem é tão nobre e se encontra tão perto de Deus, que está mesmo pintada no céu com todas as suas ações e inclinações, boas ou más. Não se diz que isto seja a inclinação, pois ainda que os partidários desta ideia queiram atenuar o seu erro dizendo que a inclinação não é necessária (nort necessitant) o artifício não passa de uma tentativa de mascarar a sua ignorância.
O céu tem duas divisões para o homem: uma delas o criará e o desenhará por si mesma, de onde se deduz que é falso dizer: “aquele homem é saturnino ou lunático’’ etc. Isto nos faria supor que alguém que estivesse pintado ou modelado pudesse levar a cabo determinadas ações ou decisões pelo simples poder do quadro ou da estátua que o reproduz.
A outra divisão do homem no céu está ocupada pelas coisas ou fatos em estado prévio ou potencial (proeludium). Quer dizer que as obras a serem cumpridas por todos os homens no futuro de suas vidas, assim como suas atitudes e costumes, já estão nele de uma ou de outra maneira. Grande bobagem será confundir estes “prelúdios” ou estados prévios com a inclinação, pois na verdade nenhum deles pode obrigar o homem a fazer alguma coisa.
Os prelúdios ou estados prévios não têm outro valor que o de profetizar
(vaticinia) as coisas futuras, sem que nada tenham o ver com a inclinação, a impressão, a constelação, e outras coisas semelhantes que não passam de um barro viscoso (limus) que os astrônomos têm diante dos seus olhos. Isto não impede que eles fiquem murmurando (ingunfur). E quando apontamos seus erros, próprios das artes supersticiosas que devem ceder lugar à verdadeira ciência, se acovardam dizendo que não existe outra ciência mais verdadeira que a nigromancia.
Observem então que a natureza depende destas duas coisas: gérmen e especificidade, cuja compreensão teórica fica perfeitamente estabelecida. Acrescentaremos ainda que os corpos podem se produzir desta maneira, mesmo na ausência das substâncias, e que pela mesma razão não é possível alterar as raízes das doenças específicas, ainda que possam ser suprimidos com relativa facilidade os acidentes que elas provocam.
Isto acontece com frequência: ao mesmo tempo em que o purgante específico atua no estômago e nos intestinos, também se encontra no sangue a lepra específica. Isto nos leva a dizer, segundo a arte, que se este ou aquele doente tivesse em seu estômago a colonquíntida, o turbito ou a escamoneia, e alguém dissesse: “este possui o escamônico específico, o coloquíntico ou agárico”, conforme o que lhe foi dado, ou ainda que “possui a flâmula ou a água específica”, seguramente possuiria também a lepra ou o carbúnculo (morphea) inatos.
Um mecanismo semelhante explica também a gordura (pinguedo)
específica, que às vezes é produzida sem nenhuma relação com a quantidade ou quantidade dos alimentos.3 O mesmo como em certos casos de magreza específica (specifica macredo) que persistem apesar de uma nutrição abundante.
Alguns médicos, em vez de colocar estas coisas na ciência específica, ficaram divagando como astrônomos ignorantes, dizendo que: “isto é melancolia”, “aquilo é por causa de Saturno”, ou, “tal natureza corresponde a alguma coisa herdada dos pais” e etc… Pois o homem não toma nada dos seus ascendentes, mas do limbo, já que é a mão de Deus e não a de seu pai, nem tal planeta ou constelação foi que o formou. E somente a mão d’Ele pode ter disposto que alguém fosse gordo ou magro.
É conveniente que conheçam perfeitamente, e à primeira vista, essas doenças para poder diferenciá-las das demais, pois é lamentável mas estas coisas são frequentemente mal estudadas, como teremos oportunidades de mostrar mais à frente nos capítulos onde trataremos da patologia específica e do gérmen do esperma.
CAPITULO VIII
(Sobre o sopro divino e o corpo espiritual)
Além, c fora as três substâncias, existe no homem um corpo invisível que não vem do limbo e por isso escapa à influência do médico. Estamos nos referindo ao sopro (inflatus) divino, que como toda inspiração (inspiratus) ou expiração (halitus), é invisível para os nossos olhos e impalpável para os nossos dedos.
Quero esforçar-me para empregar neste assunto uma linguagem compreensível para qualquer médico, dentro daquilo que a filosofia ensina sobre o homem.
As sagradas escrituras dizem que no dia do juízo final ressuscitaremos dentre os mortos para prestar conta dos nossos pecados. Sobre isto digo que o corpo que pecou não é nada e nem representa nada1,e por isso é justamente ele que deve ressuscitar.
Não é possível darmos o motivo de nossas doenças, da nossa saúde nem de outras coisas semelhantes se não conhecemos antes as que vêm do coração e que interessam ao homem, cujo corpo não é somente do limbo, mas também um fruto do espírito de Deus.
Por isso devemos ver na carne o nosso Deus Salvador, e sendo ela também o limbo ao mesmo tempo, culpá-la por nossas doenças. Quem pode ignorar todas as coisas que Deus disse e que se cumprirão no dia da glorificação, quando todos os corpos voltarão a recuperar seus” estados anteriores?
Em verdade está escrito que ressuscitaremos na carne, na única carne que existe, tomada do limbo que é o único que pode ser objeto de doenças mesmo que sempre existam dois corpos em nós.
No que se refere ao corpo, existe uma natureza excitante além da fome e da sede, assim como além das coisas naturais que ultrapassam os limites do justo. Pois se a carne que vem do limbo é verdadeiramente a natural, é lógico que conserve assim a sua medida e a sua justiça, e tudo que fique fora dela proceda do mal e não da natureza. Já que tudo que o corpo recebe (ministratur) retira-se logo pelas saídas naturais ou fica nos lugares que lhes correspondem
para cumprir as suas operações e transformações próprias. Deste modo todo alimento que comemos movidos pela necessidade natural acaba descendo para a barriga e saindo em seguida pelo assento2;conforme foi estabelecido. Com isto o gérmen da natureza3 volta à terra para engendrar novos frutos em sua matriz.
Tudo o que fica fora disto vem do mal. De qualquer maneira não quero aparecer como anticristão, fazendo oposição a São Paulo quando disse que todas estas coisas devem ser deixadas ao arbítrio das mulheres 4. Isto nos foi ensinado por ele sem a pretensão de ser uma verdade justa e pura. Mas para evitar que algumas mulheres caiam no vício do adultério, no qual podem incorrer quando seus corações são levados para o mal.
Tal conduta não tem outra finalidade que distraí-las de semelhante fatalidade, evitando assim males piores. O que, supostamente, também é válido para os homens.
O dano espiritual não pode ser buscado na natureza, pois vem de outro homem do limbo. Mas convém que os médicos examinem isto com o maior cuidado para que aprendam a conhecer os dois corpos, isto é, os dois homens que existem em cada corpo, opondo-se assim aos astrônomos que resolvem tudo submetendo os corpos a juízo dos astros.
Digo ainda que este corpo espiritual criado pela palavra de Deus e não pelos astros foi feito assim para que pudesse ser submetido a todas as provas e tentações e em seguida escolher o seu caminho, seja para o sim ou para o não, para o bem ou para o mal, como uma prova do amor e da confiança que possa depositar em Deus.
Apesar de tudo o homem ainda conserva dentro do seu corpo atual alguma coisa daquele corpo integral e perfeito para o bem e o mal que Adão e Eva tiveram no paraíso antes de comerem o fruto proibido.
Sem dúvida nós hoje comemos muito mais do que a nossa natureza pede, e bebemos além da nossa sede, pois Deus, cm sua infinita bondade, constantemente coloca diante dos nossos olhos e ao alcance das mãos tudo o que pode nos apetecer: vinhos excelentes, alimentos escolhidos, fortuna brilhante e formosas mulheres. Apesar disto devemos nos lembrar de que essas coisas não passam de outras tantas provas para revelar o quanto somos fortes e resistentes para respeitar os limites da natureza.
Na verdade — e aqui é bem apropriada a observação de São Paulo — existe entre estes dois corpos (o que vem do corpo divino e o que vem do limbo) uma associação de certo modo parecida com aquela que acontece nos casamentos, já que a sua violação conduz a uma espécie de depravação e adultério, e a uma perda de toda ponderação e medida.
Pois é próprio desse corpo que temos acima dos sentidos (insensile)
cumprir a promessa de não excitar, estimular (agere) ou agravar o corpo natural além dos seus limites, o que se constitui num grande dever e autêntico juramento diante de Deus, cuja violação significa um verdadeiro adultério.
Depois de tudo o que foi dito aqui permitam que eu termine este discurso, dando por encerrada a teoria universal, a origem da física e da cirurgia, e o estudo das causas de todas as doenças.
Os capítulos seguintes trarão maiores explicações, evidências, mais inteligência e maior clareza. E já que a inteligência requer uma filosofia especial para todas as coisas que explicamos e propusemos, acabarei exortando-os para que, pela vontade de Deus que tantas vezes nos ajudou, conheçamos a medicina e se cumpra assim tudo o que a Sua sabedoria ordenou.
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