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Sagrado Feminino

Ishtar, a Senhora Estrela da Manhã

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Texto de G. B. Marian. Traduzido por Caio Ferreira Peres.

Ela se rebelou para ajudar a humanidade antes de Prometeu. Ela morreu e ressuscitou dos mortos antes de Jesus. E Ela inventou o “apocalipse zumbi” antes de George Romero.

Quase todas as culturas veem Vênus—o “Lúcifer” ou Estrela da Manhã—como uma força agressiva e contrária. Isso porque geralmente é a primeira estrela vista ao pôr do sol e a última estrela vista ao amanhecer. Com base nesse fenômeno, as pessoas imaginavam que Vênus era um “rebelde” que desafiava o Sol, recusando-se a desaparecer quando seu superior se levantava e, em seguida, apressando-se a subir quando o Sol se punha. Mesmo antes de os cristãos medievais incorporarem Lúcifer ao mito do diabo, a maioria dos seres teológicos associados a Vênus era percebida como desordeiros cósmicos.

Ishtar, a deusa acadiana de Vênus, não é exceção. Ela roubou os mes sagrados, os poderes da civilização, de Seu tio Ea e os deu ao povo de Uruk. Ela insistiu em visitar Sua irmã mortal Ereshkigal, a Rainha do Submundo, e conquistou a morte no processo (com alguma ajuda de Ea). Quando soube que Seu marido Tamuz não havia sofrido nada por Ela enquanto Ela estava morta, Ela matou Ele e chutou Ele direto para o inferno. Quando o “herói” Gilgamesh se recusou a se casar com Ela, ela enviou o apocalíptico Touro do Céu atrás dele. E quando Seu pai Anu se recusou a Lhe dar o Touro, Ela ameaçou ressuscitar todos os mortos da Terra e enviá-los para se banquetearem com os vivos. Também se diz que Ela tinha um desejo sexual insaciável, exaurindo todos os Seus vários amantes até a morte.

Se você acha que isso soa mal, Gilgamesh era um rei que tiranizava seu povo, invadindo suas casas e estuprando todas as mulheres. Ele só parou quando os deuses criaram Enkidu para desafiá-lo, dando-lhe algo mais para fazer com seu tempo. Gilgamesh então ficou tão obcecado em descobrir o segredo da imortalidade que abandonou seu povo e o deixou à própria sorte. (Que idiota!) Por isso, sempre me pareceu estranho que ele seja retratado como o “herói” nessa história (apesar de ser um tirano e um estuprador), enquanto Ishtar é enquadrada como a “vilã” (apesar Dela ser divina e transcender toda a compreensão humana). A maior ameaça que Ishtar representa para esse megalomaníaco não é à sua vida, mas ao seu ego.

(Se Ishtar aparecesse e dissesse que queria se casar comigo, eu diria: “Tudo bem”. É melhor ser atacado em êxtase pela boca adorável e ensanguentada de Ishtar do que morrer pelas mãos de qualquer homem mortal!) – Épico de Gilgamesh, Tábua VI

Ishtar aparece na arte babilônica como uma amazona durona montada em um maldito leão, preparando-se para dar uma surra em alguns filhos da puta. Os reis assírios oravam para que ela se juntasse a eles no campo de batalha como uma Valquíria e massacrasse seus inimigos como gado. (E, se acreditarmos nos registros, Ela atendia às suas preces…brutalmente). Como uma deusa guerreira, Ishtar era muito popular entre os hicsos, que a chamavam de Astarte e a associavam à sua divindade principal, Ba’al Hadad. Quando os hicsos governaram o Egito durante o Segundo Período Intermediário, eles levaram a adoração de Ishtar para a Terra dos Faraós. E como os egípcios identificaram Ba’al Hadad com Set, eles também passaram a ver Ishtar/Astarte como um dos interesses românticos de Set.

Há um texto egípcio fragmentário de Edfu no qual Yamm, um monstro marinho, exige a mão de Ishtar em casamento. Por um momento, parece que o monstro reivindicará sua noiva, mas Set intercede e, embora o resto da história seja incerto, há um conto ugarítico semelhante em que Ba’al Hadad resgata Astarte de Yamm. Como o nome de Hadad é substituído pelo de Set nos textos de Edfu, a versão egípcia provavelmente termina com Set destruindo Yamm e casando-se com Ishtar. Considerando Sua indisciplina e Suas frustrações compartilhadas com deuses da fertilidade que morrem e ressurgem (como Osíris e Tamuz), você não acha que Set e Ishtar formam um casal perfeito?

Ishtar é frequentemente difamada por ser tão “promíscua”. Isso se deve a um completo mal-entendido sobre hierogamia ou hieros gamos, o conceito de “casamento sagrado”. Trata-se de um rito religioso no qual as pessoas têm relações sexuais, sendo que pelo menos um dos participantes é “possuído” por uma divindade. Esses procedimentos serviam a um duplo propósito no mundo antigo. O objetivo prático era canalizar a fertilidade de um deus e/ou deusa para as plantações, o gado e as pessoas de uma comunidade. O propósito espiritual era atingir um nível mais elevado de consciência. Sob as circunstâncias corretas (todas as quais exigem CONSENTIMENTO), um orgasmo realmente bom pode “explodir sua mente” e fazer você se sentir em sintonia com o resto do cosmos. Faz todo o sentido o fato de as pessoas considerarem esse momento extático de entrega como extremamente mágico. Desse ponto de vista, o sexo pode ser muito mais do que apenas um ato animal “sujo”; pode ser uma experiência religiosa divina que se realiza por si mesma e é incrivelmente humilde.

O clero das religiões antigas que praticavam a hierogamia é frequentemente descrito como “prostitutas de culto” por estudiosos bíblicos. Isso é especialmente verdadeiro quando se trata das qadishtu ou mulheres sagradas de Ishtar. De fato, o sexo desempenhava um papel nas crenças das qadishtu, e elas eram ostensivamente pagas pelos leigos por seus serviços clericais. Mas, do meu ponto de vista, provavelmente nem sempre houve uma relação direta entre essas duas coisas.

Em primeiro lugar, não está claro se as mulheres sagradas de Ishtar realmente praticavam hierogamia com todos que entravam em seus templos ou se apenas uma sacerdotisa realizava o rito com um rei durante o festival anual de primavera de Akitu. Para ser sincero, tenho minhas dúvidas de que mesmo o último caso tenha sido sempre verdadeiro. Muitos exemplos contemporâneos de hierogamia (como o Grande Rito na Wicca) são frequentemente realizados de forma simbólica (por exemplo, colocar um athame em um cálice, em vez de realmente copular). É perfeitamente possível que a hierogamia também não tenha sido sempre praticada de forma tão literal nos tempos pré-cristãos.

Em segundo lugar, é errado presumir que todos os serviços que as qadishtu prestavam à sua sociedade eram de natureza sexual. De fato, é muito provável que a maior parte do que eles faziam não tinha nada a ver com sexo. As evidências disponíveis parecem sugerir que elas eram mais parecidas com freiras do que com ninfas, cuidando dos doentes e dos órfãos, mantendo a castidade e vivendo suas vidas cotidianas em oração silenciosa e contemplativa. Portanto, o fato de Heródoto e os patriarcas bíblicos definirem as qadishtu em termos de sexo diz infinitamente mais sobre eles e suas pequenas mentes sujas do que sobre as mulheres sagradas de Ishtar.

O dragão Mušḫuššu do Portão de Ishtar

Outro ataque a Ishtar é a falsa alegação de que Ela é a suposta “origem pagã” da Páscoa. Essa história remonta a Alexander Hislop, que publicou um panfleto chamado The Two Babylons em 1853. Hislop alegou que Ishtar era originalmente uma rainha mortal da Babilônia chamada Semiramis, que sozinha inventou todo o politeísmo. Ela então passou a ser adorada como Ishtar—que muitos cristãos afirmam ser pronunciada como “Páscoa” por algum motivo—e criou para si mesma o feriado que hoje conhecemos por esse nome.

Hislop estava parcialmente correto; a Páscoa, de fato, tem origens politeístas. Mas seu nome é, na verdade, derivado de Eostre, uma deusa da fertilidade teutônica que não tem nenhuma relação histórica com Ishtar. As imagens de coelhos e ovos são tiradas de um mito no qual Eostre transformou um pássaro em um coelho que podia botar ovos (o coelhinho da Páscoa). Esses símbolos não aparecem em nenhum lugar da iconografia de Ishtar, que tem muito mais a ver com touros, dragões, leões e corujas. Mesmo assim, os evangélicos continuam a repetir a besteira de Hislop a todo momento, criticando a Páscoa como um rito “satânico” para Ishtar.

O Relêvo de Burney, representando uma figura feminina desconhecida que poderia ser Ishtar ou Ereshkigal (mas que provavelmente não é Lilith)

Uma coisa que realmente me incomoda é quando as pessoas confundem Ishtar com a súcuba Lilith. Na década de 1970, muitos escritores pagãos divulgaram uma alegação de que Lilith não se originou como a “primeira esposa de Adão”, mas como uma “serva” de Ishtar que servia à deusa levando homens ao Seu templo para adoração. Outra alegação afirma que Lilith é realmente uma deusa em seu próprio direito; ela foi demonizada mais tarde, ou assim diz a história, quando o patriarcado bíblico substituiu as religiões das deusas de antigamente. E algumas pessoas parecem pensar que Ishtar e Lilith são na verdade a mesma pessoa no final das contas.

Não há evidências que sustentem nenhuma dessas teorias. Mesmo nas culturas politeístas pré-bíblicas, Lilith era uma entidade qliphótica que comia crianças recém-nascidas e sugava a semente dos homens à noite. Ela nunca foi adorada, mas apenas afastada com feitiços apotropaicos. Isso era tão verdadeiro quando a Epopeia de Gilgamesh estava sendo escrita quanto quando o Antigo Testamento estava sendo escrito. Posso aceitar a ideia de as pessoas acreditarem que Lilith é uma deusa hoje em dia, se é realmente assim que elas se sentem; mas elas devem admitir que essa é uma nova crença no grande esquema das coisas, e não uma crença antiga. Elas também devem evitar confundir Ishtar com Lilith, porque as duas são figuras muito diferentes, de fato. No mínimo, a primeira é minha Mãe Espiritual, e a segunda não.

Conheci Ishtar no condado de McClennan, Texas, no outono de 1999. Eu estava prestes a completar 17 anos e estava caminhando com Set há pouco mais de dois anos. Não sei explicar o que me levou a Ishtar tão repentinamente naquela tarde nublada; o melhor que posso dizer é que Set me “trocou” com Ela, e eu caminhei com Ela no ano seguinte. Depois disso, Eles me trocaram de volta e estou com Set desde então. Nunca entendi muito bem por que isso aconteceu até cerca de uma década depois, quando conheci a mulher que se tornou minha esposa. Nós nos conhecemos em um fórum de discussão pagão, e a única razão pela qual o fizemos foi porque eu queria conhecer outras pessoas que soubessem sobre Set, e ela queria conhecer outras pessoas que soubessem sobre Ishtar. Considerando isso, sempre sentimos que Set e Ishtar são pessoalmente responsáveis por microgerenciar as coisas apenas para que nós dois nos encontrássemos. E aquele hiato que tive com Ishtar foi a deusa me avaliando como um possível par para um de seus qadishtu contemporâneos. (Estou muito feliz por ter passado no teste!)

Link para o original: https://desertofset.com/2020/07/02/ishtar/


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