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O Anarquismo e o Impulso Religioso

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Herbert Read

(in The philosophy of anarchism, 1940)

Reconhecemos que tanto um sistema baseado na igualdade quanto outro baseado nas leis exigem um mecanismo capaz de determinar e aplicar os seus princípios. Não posso imaginar nenhuma sociedade que não tenha determinados métodos de arbitragem. Mas, assim como se supõe que o juiz, que julga de acordo com os princípios da igualdade, utilize a idaia universal da razão, ignorando a lei estatutária sempre que esta entra em conflito com aquelas ideias, acreditamos que o árbitro de uma comunidade anarquista usará os mesmos princípios estabelecidos pela filosofia e pelo bom senso e o fará sem qualquer impedimento provocado pelos preconceitos legais e econômicos da atual organização da sociedade.

Dir-me-ão que estou apelando para as entidades místicas e para noções idealistas que todos os bons materialistas rejeitam. Não nego que o faça. O que nego é que se possa construir uma sociedade dura- doura sem um caráter místico. Tal afirmação chocará um socialismo marxista que, apesar da advertência de Marx, geralmente é um materialista ingênuo.

Acho que Marx seria o primeiro a admitir que sua teoria não era universal. Não enfocava todos os fatos da vida, ou enfocava apenas alguns e superficialmente. Acertadamente, Marx rejeitou os métodos não-históricos dos metafísicos alemães, que tentaram fazer com que os fatos se moldassem a uma teoria preconcebida. Firmemente, ele também rejeitou o materialismo mecânico do século XVIII. Esta teoria, apesar de poder explicar a natureza existente das coisas, ignorava todo o processo de desenvolvimento histórico: o universo como crescimento orgânico. A maioria dos marxistas esquece a primeira tese sobre Feuerbach:

“O principal defeito de todo materialismo surgido até hoje, inclusive o de Feuerbach, é que objeto, realidade, sensibilidade são concebidos apenas na forma de objeto e não como atividade humana sensível, prática, não como subjetividade”.

Naturalmente, ao interpretar a história da religião, Marx a tratou como um produto social. Mas isto não é tratá-la como ilusão. A evidência histórica tende em outra direção, e nos compele a reconhecer uma necessidade social. Nunca existiu uma civilização sem uma religião correspondente e o aparecimento do racionalismo e do ceticismo é sempre um sintoma de decadência.

Há um fundo geral de razão para o qual todas as civilizações contribuem e que inclui uma atitude de afastamento de uma determinada religião da época. Mas reconhecer a evolução histórica de um fenômeno como a religião não chega a explicá-lo. Seria mais apropriado dar uma justificativa científica, mostrá-la como uma “atividade humana sensível” necessária e portanto suspeitar de toda a filosofia social que excluísse arbitrariamente a religião da organização que propõe dar à sociedade.

Tornou-se claro, depois de vinte anos de socialismo na Rússia, que, se não oferecermos à sociedade uma religião nova, ela acabará voltando para a velha. O comunismo naturalmente tem seus aspectos religiosos e, além da readmissão gradual da Igreja Ortodoxa, da deificação de Lenin (mausoléu, efígies, lendas), é uma tentativa deli- berada de criar uma válvula de escape para as emoções religiosas. Tentativas ainda mais calculistas de criar a parafernália de um novo credo foram feitas pelos nazistas na Alemanha, onde a necessidade de uma religião nunca chegou a ser admitida oficialmente. Na Itália, Mussolini quis entrar em acordo com a Igreja Católica e ainda hoje existe uma profunda e frustrante ambigüidade no pensamento de muitos comunistas italianos.

Longe de ridicularizar os aspectos irracionais do comunismo e do fascismo, devemos antes criticar esses credos políticos pela sua falta de conteúdo sensível e estético, pela pobreza do seu ritual e sobretudo pelo fato de que nenhum deles chegou a entender o papel que a poesia e a imaginação desempenham na vida da comunidade.

Pode ser que, das ruínas da nossa civilização capitalista, surja uma nova religião, assim como o cristianismo surgiu das ruínas da civilização romana. As civilizações repetem monotonamente certos padrões de pensamento no decorrer de sua história, elaboram mitos paralelos. O socialismo, tal como o concebem seus materialistas pseudo-históricos, não é uma religião e nunca o será. E, embora sob um certo ponto de vista possa se admitir que o fascismo tem mais imaginação, ele é por si só, um fenômeno tão evidente de decadência – o primeiro sinal do destino que aguarda a ordem vigente – que sua superestrutura ideológica não desperta muita atenção.

Pois uma religião jamais é uma criação sintética – não se pode selecionar lendas e santos do passado mítico e combiná-los num pro- grama político ou radical para fazer surgir a religião mais eficiente. Um profeta, tal como um poeta, nasce profeta. E, mesmo que tenhamos o profeta, ainda estamos longe de poder criar uma religião. Foram necessários cinco séculos para construir a religião cristã, tendo como base as mensagens de Cristo.

A mensagem tem de ser moldada, aumentada e, até certo ponto, distorcida antes que forme o que Jung denominou “os arquétipos do inconsciente coletivo”, aqueles fatores psicológicos complexos que dão coesão à sociedade. A religião, nos seus últimos estágios, pode se tornar o ópio do povo, mas enquanto for vital é a única força capaz de unir as pessoas dando-lhes a autoridade natural para que lutem quando seus interesses entram em conflito.

Creio que a religião é uma autoridade natural, mas ela é geral- mente vista como uma autoridade sobrenatural. Talvez seja natural em relação à morfologia da sociedade e sobrenatural em relação à morfologia do universo físico, mas em ambos os aspectos se opõe à autoridade artificial do Estado. O Estado só adquire sua autoridade total quando a religião começa a entrar em decadência. Os grandes conflitos entre a Igreja e o Estado, quando terminam com a vitória do Estado-como na Europa atual, são eventualmente fatais para a vida orgánica da sociedade. E, exatamente por não perceber essa verdade e por preferir ligar-se sempre à mão inerte do Estado, o socialismo está sendo derrotado em toda a parte. O aliado natural do socialismo é a Igreja, embora reconheçamos que era difícil perceber essa verdade, dadas as circunstâncias do século XIX. A Igreja era tão corrupta, tão dependente das classes dominantes, que apenas uns poucos puderam perceber a realidade e conceber o socialismo em termos de uma nova religião ou, simplesmente, como uma nova reforma do cristianismo.

Dadas as circunstâncias atuais, não creio que seja possível encontrar um caminho que faça da velha religião alguma coisa nova. Uma nova religião só pode surgir sobre as bases de uma nova sociedade e junto com ela. Talvez isso possa acontecer na Rússia, na Espanha ou nos Estados Unidos. Não seria possível precisar onde, porque o germe de uma nova sociedade não aparece visivelmente em nenhum lugar, ele pertence ao futuro.

Não sou pregador, não recomendo nenhuma religião e não acredito em qualquer uma delas. Apenas afirmo, baseado nos exemplos colhidos através da história das civilizações, que a religião é um elemento necessário a qualquer sociedade orgânica. Estou tão consciente do vagaroso processo de desenvolvimento intelectual que não quero procurar uma nova religião e não espero encontrar nenhuma. Faria apenas uma observação: tanto nas suas origens e desenvolvimento como no seu apogeu, a religião está associada à arte. Religião e arte são, se não formas alternativas de expressão, formas intimamente relacionadas.

Além da natureza essencialmente estética do ritual religioso e da dependência da religião à arte para a visualização de seus conceitos subjetivos, há uma identificação das mais altas formas de poesia e da expressão mística. A poesia, em seus momentos mais intensos e criativos, penetra no mesmo nível do inconsciente que o misticismo. Alguns dos grandes escritores – São Francisco, Dante, Santa Tereza, São João da Cruz, Blatce -se sobressaem igualmente como poetas e como místicos. Por esta razão, pode ocorrer que as origens de uma nova religião sejam encontradas, se não no misticismo, na arte, em vez de qualquer forma de pregação moralista.

O que tudo isto tem a ver com o anarquismo? Apenas isto: o socialismo de tradição marxista, isto é, o socialismo estatal, eliminou tão completamente as sanções religiosas e usou subterfugios tão pobres na procura de substitutos para a religião que, em contraste o anarquismo, que tem uma corrente mística, é por si próprio uma religião. E possível conceber o desenvolvimento de uma nova religião a partir do anarquismo. Durante a Guerra Civil Espanhola, muitos observadores se surpreenderam com a intensidade religiosa dos anarquistas. Naquele país de renascimento em potencial, o anarquismo inspirou não apenas heróis, mas até santos: uma nova raça de homens que devotaram suas vidas, na imaginação sensível e na prática, à criação de um novo tipo de sociedade humana.


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