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Thiago Tamosauskas
O que escrevo aqui não é apenas uma resenha, é uma confessa apologia para um livro que gostaria de ter lido mais cedo. Quem sabe com ela eu não acelere a decisão de alguém que também precise lê-lo neste momento? Mistérios Vampyricos: A arte do vampyrismo contemporâneo foi o livro de estreia de Lord A .’. publicado no agora já distante ano de 2014 pela editora Madras, um tomo que provou-se vencedor na dura prova de Saturno ao ser ainda celebrado no meio oculto e vamp quase uma década depois.
Seu autor é o amplamente conhecido como o grande promulgador nacional da Cosmovisão Vampýrica por meio de projetos como o site redevampyrica.com, o podcast Vox Vampyrica, a escola/academia Campus Strigoi e eventos grandiosos como o Fangstasy e o Carmilla, Noite de Gala Sombria. Seu modo de escrita é o de um saboroso blend entre a riqueza de um rigor acadêmico e a atmosfera envolvente de um bom contador de histórias. A sensação de ler o livro é a de estar sentado com o autor na frente de uma enorme lareira em algum castelo gótico com paredes grossas o bastante para abafar o som da trovoada que cai lá fora enquanto ele disserta com propriedade e bom humor sobre os mistérios da noite e dos séculos passados.
Ele se apresenta como Strigoi o que por si só é uma palavra muito interessante. Na mitologia romena os strigoi são os espíritos ressuscitados do túmulo que se alimentam do sangue de suas vítimas e são dotados de poderes sobrenaturais como ficar invisíveis ou transformar-se em animais. Uma palavra que pode muito bem ser traduzida como Vampiro, mas que também poderia (no entender desse resenhista) trazer o significado de Assombro, uma qualidade que no sentido de grande espanto ou admiração, tanto o autor como o livro tem para com a vida e que conseguem transferir com maestria ao leitor.
Isso não significa que ele, um Strigoi, seja um vampiro como os dos filmes e da literatura. Ele não bebe sangue, não vira morcego e não tem aversão à alho, embora pelas fotos estranhamente pareça não ter envelhecido muito nos últimas décadas. Essa é a primeira coisa que fica claro sobre a Cosmovisão Vampyrica para qual o livro é uma imensa porta que abre rangendo e nos convida a entrar. Não se comete aqui o famoso erro da Má-Fe, tão comum no meio ocultista e ausente nesta obra tanto no sentido de auto-engano como no sentido existencialista de usar subterfúgios para abrir mão da própria liberdade. Não, pelo contrário. O autor não inventa nem perpetua tradições recém criadas nem origens falaciosas. Não apresenta “textos milenares” que foram escritos anteontem nem mestres velados que sirvam de fantoche. O arquétipo do vampiro é apresentado como ele realmente é, fruto da interação cultural e de repetidas releituras e ressignificações históricas de um arquétipo que se expressa de incontáveis formas no folclore, mas artes, na religião e no imaginário como um todo.
Que arquétipo é esse? Bom, você terá que ler o livro para entender de verdade, mas para adiantar podemos dizer que se trata daquela parte da natureza humana que a civilização tenta insistentemente trancar em suas criptas: o Eu-Feral e Dionísico relacionado ao Espírito de Caçada e a Sede de “Sangue” (considerado aqui como um símbolo para a indestrutível força da vida). Citando o autor, o vampyrismo é:
“uma antropologia do imaginário em diversas expressões que pode ser usada como ferramenta ou arma para caçarmos aquilo que nos desperta a sede pela indestrutível força da vida.”
De diversas formas ele demonstra no livro como o vampiro é um contra-ataque da natureza contra o mundo moderno, seja na forma do monoteísmo inquisitorial ou da pasteurização industrial das almas. Realmente devo dizer que há algo de tão sombrio na figura do vampiro que o próprio papa negro, Anton LaVey o escolheu como vilão para projetar seus medos pessoais na Bíblia Satânica. Pudera, o diabo cristão é um anjo que caiu e perdeu as asas, mas o vampiro é um sobre-humano que venceu a morte e aprendeu a voar.
Assim, o vampiro da literatura fantástica, dos quadrinhos, das produções cinematográficas, dos seriados e dos vídeo-games são celebrados e degustados neste volume, mas nunca usados como pretextos para a loucura daquilo que o autor chama de “Realidade-Espelho”; um conceito usado para descrever o mundo daqueles nos quais reina a degeneração, o sensacionalismo, a auto-ilusão, a má-fé e portanto o ressentimento. É nesta “Realidade-Espelho” que os autênticos adeptos do vampyrismo não se veem refletidos. Nas palavras de Lord A:
“Não queiram tomar como realidade o personagem do livro do Stoker ou da cultura pop – deixem que eles sejam boas metáforas e interpretações líricas e subjetivas da condição humana, não precisam ser literais para ser legais.”
Conforme ele ensina em suas páginas, os adeptos do vampirismo tem clareza do que é ficção e do que é história. Mas não negam a atração sentida pelo folclore, arte e produtos culturais que tanto apelam e falam ao nosso subconsciente. Há um inegável fascínio por este imaginário bem como pelo lado oculto, sombrio da existência. Portanto, assim como suas contrapartes do mundo da fantasia, os vampyros de verdade também vivem no crepúsculo entre o zênite do seu Lado Diurno, filosófico e fashionista e o nadir do seu Lado Noturno onde mergulham em seu inconsciente e em sua própria espiritualidade vampírica.
Mas para isso ser feito é preciso que os vampyros (com y mesmo para os diferenciar dos vampiros da ficção) estejam metaforicamente mortos para o ideário, expectativas e normas da cultura dominante. Assim “mortos” podem ressurgir das tumbas da vida pré-moderna que sempre esteve lá. Uma vida anterior ao “progresso” e portanto atemporal e imortal capaz de colher de cada século suas melhores flores. Ao fazer isso, assumem um estilo de vida alternativo à superficialidade da cultura dominante e , é claro, se arriscam a ser considerados malditos como Drácula, estranhos Nosferatu ou infames como Elizabeth Báthory. Novamente citando o autor, o vampiro
“em razão de sua excessiva naturalidade é o modelo do “antinatural” de qualquer forma de opressão.”
Aqui cabe um parênteses importante, a Cosmovisão Vampyrica apresentada neste livro nada tem haver com certos grupos ou estilos de vida que tendem desumanização das outras pessoas chamando-as de “presas”, “vítimas”, “baterias” e que terminam apenas dando ênfase ao comportamento padrão da modernidade para o qual aparentemente se colocam como alternativa. Tal comportamento apenas leva a autosabotagem social com implicações negativas na carreira, relacionamentos e afetividade com consequências psicológicas e psicossomáticas. Quem busca uma filosofia de vida misantrópica, autodestrutiva e que justifique a própria canalhice não deve ler os livros de Lord A .’. .
Uma boa parte do livro é dedicada a um panorama histórico sobre a figura do Vampiro, começando pelos antigos cultos de fertilidade eslavos no qual xamãs aparentemente mortos para o mundo faziam suas viagens espirituais na forma de corujas, lobos e morcegos e que culminaram nas figuras dos strigois, vrykolakas, taltos do leste europeu.
Em seguida o autor pormenoriza a origem do termo Vampy, origem esta da qual nada falarei para dar ao leitor o mesmo prazer que tive ao descobrir. Em seguida Lord A .’. avança até a figura do Drácula histórico e da famosa Ordem do Dragão que serviram de inspiração para a obra prima de Bram Stoker séculos depois. Esta primeira parte encerra com um apanhado sobre as descaracterizações e apropriações da imagem do vampiro feitas pelos movimentos espiritualistas, teosóficos e espiritualistas dos séculos XIX e XX que não conseguiram se desfazer dos enganos perpetuados pelo monoteísmo nos séculos anteriores.
Na segunda parte do livro aprendemos sobre o desenvolvimento da figura do vampiro no século XX. Como um dos fantasmas de Charles Dickens, e causando o “Assombro” de sempre o autor nos guia década à década, não como um mero citador de dados, mas como um sommelier nos guiando a degustação dos bons vinhos de cada safra. Bebemos goles de Theda Bata, taças de Bela Lugosi e garrafas de Maila Nurmi e Christopher Lee. O impacto da revolução sexual dos anos 60 não fica de fora com nomes como Vampirella e Barnabas Collins, entre outros.
Nos anos 70, Lord A .’. comenta não apenas sobre às novas versões de Drácula e Carmilla e, mas também sobre algo ainda mais interessante, os primórdios da Comunidade Vampyrica, na época ainda traduzida em termos de fanzines, palestras, boletins postais e o início de um certo interesse acadêmico. Nasciam nesta década os primeiros covens como o Black Rose Coven, de Goddess Sahjaza, cuja dinastia o autor deste livro orgulhosamente participa.
As páginas prosseguem até a década seguinte quando presenciamos a formação da Vampyre Society, do Bram Stoker Awards e do Theater of the Vampires. Os vampiros pós-punk dos anos 80 chegam com Fome de Viver cinemas e o estilo darkwave tocando nas rádios. Na literatura aprendemos como Anne Rice consolidou o trabalho iniciado no final da década passada trazendo camadas filosóficas profundas ao mito do vampiro com os personagens de seus livros.
Sobre os anos 90, ele ensina como a comunidade vampírica se consolidou e estruturou o bastante para ter seu próprio código de conduta, primeiro como os 13 Commandments of Night da Sahjaza e que se derivou nas diversas versões do o chamado Black Veil. Também estava madura o bastante para sustentar eventos grandes nos maiores clubes de Nova Iorque e Los Angeles, assim como o surgimento de novos covens que formariam as Houses das décadas seguintes. Foi a época Anne Rice se popularizou e ganharam ampla divulgação graças ao filme Entrevista com Vampiro” a série Forever Knight e o jogo de RPG Vampiro, a Máscara. A versão Live Actions do jogo deu novo fôlego para uma nova geração fashionista e o surgimento dos primeiros Fangsmiths, os forjadores de presas.
Ao chegar ao século XXI o livro dá uma guinada. Em vez de falar de Crepúsculo, True Blood e Vampire Diaries e outras criações estrangeiras o autor opta por dar ênfase ao desenvolvimento da Comunidade Vampírica no Brasil. A razão é simples, Lord A.’. protagonizou ele mesmo boa parte desta história participando inicialmente de grupos internacionais e então trazendo para o nosso país desde a participação no grupo Tinta Rubra até o estabelecimento do Círculo Strigoi e as várias iniciativas da Rede Vamp. É a época da publicação do livro Voivode, de sites como Mundo Vampy, Carcasse e Redevampyrica.com, dos primeiros eventos nacionais e do início do Dia do Vampiro, promovido por Liz Vamp entre outras tantas outras empreitadas mencionadas.
Todos esses nomes citados e muitos outros são explicados e contextualizados pelo autor. O livro todo é marmorizado com referências de filmes, livros, músicos, artigos acadêmicos e autores nacionais e estrangeiros para aqueles que querem começar a construir seu próprio repertório vampírico. Mistérios Vampyricos: A arte do vampyrismo contemporâneo fornece assim não só a porta de entrada para o vampyrismo mas uma imensidão de caminhos para serem seguidos depois por aqueles se deixarem morder por este livro.
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