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PSICO

A Sombra na vida cotidiana

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CONNIE ZWEIG e JEREMIAH ABRAMS

Em 1886, mais de uma década antes de Freud sondar as profundezas da escuridão humana, Robert Louis Stevenson teve um sonho altamente revelador: um homem, perseguido por um crime, engolia um certo pó e passava por uma drástica mudança de caráter, tão drástica que ele se tornava irreconhecível. O amável e laborioso cientista Dr, Jekyll transformava-se no violento e implacável Mr. Hyde, cuja maldade ia assumindo proporções cada vez maiores à medida que o sonho se desenrolava.

Stevenson desenvolveu o sonho no seu famoso romance The Strange Case of Dr. Jekyll and Mr. Hyde [O estranho caso de Dr. Jekyll e Mr. Hyde]. Seu tema integrou-se de tal modo na cultura popular que pensamos nele quando ouvimos alguém dizer, “Eu não era eu mesmo”, ou “Ele parecia possuído por um demônio”, ou “Ela virou uma megera”. Como diz o analista junguiano John Sanford, quando uma história como essa nos toca tão a fundo e nos soa tão verdadeira, é porque ela contém uma qualidade arquetípica — ela fala a um ponto em nós que é universal.

Cada um de nós contém um Dr. Jekyll e um Mr. Hyde: uma persona agradável para o uso cotidiano e um eu oculto e noturna) que permanece amordaçado a maior parte do tempo. Emoções e comportamentos negativos — raiva, inveja, vergonha, falsidade, ressentimento, lascívia, cobiça, tendências suicidas e homicidas — ficam escondidos logo abaixo da superfície, mascarados pelo nosso eu mais apropriado às conveniências. Em seu conjunto, são conhecidos na psicologia como a sombra pessoal, que continua a ser um território indomado e inexplorado para a maioria de nós.

A apresentação da sombra

A sombra pessoal desenvolve-se naturalmente em todas as crianças. A medida que nos identificamos com as características ideais de personalidade (tais como polidez e generosidade) que são encorajadas pelo nosso ambiente, vamos formando aquilo que W. Brugh Joy chama o “eu das decisões de Ano Novo”. Ao mesmo tempo, vamos enterrando na sombra aquelas qualidades que não são adequadas à nossa autoimagem, como a rudeza e o egoísmo. O ego e a sombra, portanto, desenvolvem-se aos pares, criando-se mutuamente a partir da mesma experiência de vida.

Carl Jung viu em si mesmo a inseparabilidade do ego e da sombra, num sonho que descreve em sua autobiografia Memories, Dreams, Reflections [Memórias, Sonhos, Reflexões]: Era noite, em algum lugar desconhecido, e eu avançava com muita dificuldade contra uma forte tempestade. Havia um denso nevoeiro. Eu segurava e protegia com as mãos uma pequena luz que ameaçava extinguir-se a qualquer momento. Eu sentia que precisava mantê-la acesa, pois tudo dependia disso.

De súbito, tive a sensação de que estava sendo seguido. Olhei para trás e percebi uma gigantesca forma escura seguindo meus passos. Mas no mesmo instante tive consciência, apesar do meu terror, de que eu precisava atravessar a noite e o vento com a minha pequena luz, sem levar em conta perigo algum.

Ao acordar, percebi de imediato que havia sonhado com a minha própria sombra, projetada no nevoeiro pela pequena luz que eu carregava. Entendi que essa pequena luz era a minha consciência, a única luz que possuo. Embora infinitamente pequena e frágil em comparação com os poderes das trevas, ela ainda é uma luz, a minha única luz.

Muitas forças estão em jogo na formação da nossa sombra e, em última análise, determinam o que pode e o que não pode ser expresso. Pais, irmãos, professores, clérigos e amigos criam um ambiente complexo no qual aprendemos aquilo que representa comportamento gentil, conveniente e moral, e aquilo que é mesquinho, vergonhoso e pecaminoso.

A sombra age como um sistema imunológico psíquico, definindo o que é eu e o que é não-eu. Pessoas diferentes, em diferentes famílias e culturas, consideram de modos diversos aquilo que pertence ao ego e aquilo que pertence à sombra. Por exemplo, alguns permitem a expressão da raiva ou da agressividade; a maioria, não. Alguns permitem a sexualidade, a vulnerabilidade ou as emoções fortes; muitos, não. Alguns permitem a ambição financeira, a expressão artística ou o desenvolvimento intelectual; outros, não.

Todos os sentimentos e capacidades que são rejeitados pelo ego e na sombra contribuem para o poder oculto do lado escuro da natureza humana. No entanto, nem todos eles são aquilo que se considera traços negativos. De acordo com a analista junguiana Liliane FreyRohn, esse escuro tesouro inclui a nossa porção infantil, nossos apegos emocionais e sintomas neuróticos bem como nossos talentos e dons não-desenvolvidos. A sombra, diz ela, “mantém contato com as profundezas perdidas da alma, com a vida e a vitalidade — o superior, o universalmente humano, sim, mesmo o criativo podem ser percebidos ali”.

A rejeição da sombra

Não podemos olhar diretamente para esse domínio oculto, A sombra é, por natureza, difícil de ser apreendida. Ela é perigosa, desordenada e eternamente oculta, como se a luz da consciência pudesse roubar-lhe a vida.

O analista junguiano James Hillman, autor de diversas obras, diz: “O inconsciente não pode ser consciente; a Lua tem seu lado escuro, o Sol se põe e não pode iluminar o mundo todo ao mesmo tempo, e mesmo Deus tem duas mãos. A atenção e o foco exigem que algumas coisas fiquem fora do campo visual, permaneçam no escuro. Não se pode olhar em duas direções ao mesmo tempo.”

Por essa razão, em geral vemos a sombra indiretamente, nos traços e ações desagradáveis das outras pessoas, lá fora, onde é mais seguro observá-la. Quando reagimos de modo intenso a uma qualidade qualquer {preguiça, estupidez, sensualidade, espiritualidade, etc.) de uma pessoa ou grupo, e nos enchemos de grande aversão ou admiração — essa reação talvez seja a nossa sombra se revelando. Nós nos projetamos ao atribuir essa qualidade à outra pessoa, num esforço inconsciente de bani-la de nós mesmos, de evitar vê-la dentro de nós.

A analista junguiana Marie-Louise von Franz sugere que essa projeção é como disparar uma flecha mágica. Se o destinatário tem um “ponto fraco” onde receber a projeção, então ela se mantém, Se projetamos nossa raiva sobre um companheiro insatisfeito, ou nosso poder de sedução sobre um atraente estranho, ou nossos atributos espirituais sobre um guru, então atingimos o alvo e a projeção se mantém. Daí em diante, emissor e receptor estarão unidos numa misteriosa aliança, como apaixonar-se ou encontrar o herói (ou vilão) perfeito.

A sombra pessoal contém, portanto, todos os tipos de potencialidades nãodesenvolvidas e não-expressas. Ela é aquela parte do inconsciente que complementa o ego e representa as características que a personalidade consciente recusa-se a admitir e, portanto, negligencia, esquece e enterra… até redescobri-las em confrontos desagradáveis com os outros.

O encontro com a sombra

Embora não possamos fitá-la diretamente, a sombra surge na vida diária. Por exemplo, nós a encontramos em tiradas humorísticas (tais como piadas sujas ou brincadeiras tolas) que expressam nossas emoções ocultas, inferiores ou temidas. Analisando de perto aquilo que achamos engraçado (como alguém escorregando numa casca de banana ou se referindo a uma parte “proibida” do corpo), descobrimos que nossa sombra está ativa. John Sanford diz que é possível que as pessoas destituídas de senso de humor tenham uma sombra muito reprimida.

A psicanalista inglesa Molly Tuby sugere seis outras maneiras pelas quais, mesmo sem saber, encontramos a nossa sombra no dia-a-dia:

  • Em geral, é a sombra que ri das piadas.
  • Nos nossos sentimentos exagerados em relação aos outros (“Eu simplesmente não acredito que ele tenha feito isso!”, “Não consigo entender como ela é capaz de usar uma roupa dessas!”)
  • Na opinião negativo que recebemos daqueles que nos servem de espelhos (“Já é a terceira vez que você chega tarde sem me avisar.”)
  • Nas interações em que continuamente exercemos o mesmo efeito perturbador sobre diversas pessoas diferentes (“Eu e o Sam achamos que você não está sendo honesto com a gente.”)
  • Nos nossos atos impulsivos e não-intencionais (“Puxa, desculpe, eu não quis dizer isso!”)
  • Nas situações em que somos humilhados (“Estou tão envergonhada com o jeito que ele me trata.”)
  • Na nossa raiva exagerada em relação aos erros alheios (“Ela simplesmente não consegue fazer seu trabalho em tempo!”, “Cara, mas ele perdeu totalmente o controle do peso!”)
  • Em momentos como esses, quando somos dominados por fortes sentimentos de vergonha ou de raiva, ou quando descobrimos que nosso comportamento é inaceitável, é a sombra que está irrompendo de um modo inesperado.

E em geral ela retrocede com igual velocidade; pois encontrar a sombra pode ser uma experiência assustadora e chocante para a nossa autoimagem, Por essa razão, podemos mudar rapidamente para a negação, deixando de prestar atenção a fantasias homicidas, a pensamentos suicidas ou a embaraçosos sentimentos de inveja, que revelariam um pouco da nossa própria escuridão. O falecido psiquiatra R. D. Laing descreve de modo poético o reflexo de negação da nossa mente: O alcance do que pensamos e fazemos é limitado pelo que deixamos de notar. E por deixarmos de notar que deixamos de notar pouco podemos fazer para mudar, até que notemos como o deixar de notar forma nossos pensamentos e ações.

Se a negação permanecer, então, como diz Laing, talvez nem sequer notemos que deixamos de notar. Por exemplo, é comum encontrarmos a sombra na meia-idade, quando nossas mais profundas necessidades e valores tendem a mudar de direção, talvez até fazendo um giro de 180 graus, Isso exige a quebra de velhos hábitos e o cultivo de talentos adormecidos. Se não pararmos para ouvir atentamente o chamado e continuarmos a nos mover na mesma direção anterior, permaneceremos inconscientes daquilo que a meia-idade tem a nos ensinar.

A depressão também pode representar uma confrontação paralisante com o lado escuro, um equivalente moderno da “noite escura da alma” do místico. Nossa exigência interior para que desçamos ao mundo subterrâneo pode ser suplantada por considerações de ordem externa (como a necessidade de trabalhar por longas horas), pela interferência dos outros ou por drogas antidepressivas que amortecem a nossa sensação de desespero. Nesse caso, deixamos de apreender o propósito da nossa melancolia.

Encontrar a sombra pede uma desaceleração do ritmo da vida, pede que ouçamos as indicações do nosso corpo e nos concedamos tempo para estar a sós, a fim de podermos digerir as mensagens misteriosas do mundo oculto.


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