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Conspiração em plena luz do dia (Despertar dos Mágicos)

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Excerto de o Despertar dos Mágicos de Louis Pauwels e Jacques Bergier

Griffin, o homem invisível de Wells, dizia: “Os homens, mesmo cultos, não se apercebem dos poderes ocultos nos livros de ciência. Nesses volumes há maravilhas, milagres.”

Compreendem-no agora, e mais os homens da rua do que os letrados, sempre em atraso de uma revolução. Há milagres,
há maravilhas e há terrores. Os poderes da ciência, depois de Wells, alastraram para além do planeta e ameaçam-lhe a vida. Uma nova geração de sábios surgiu. São pessoas que têm a consciência de ser, não investigadores desinteressados e puros espectadores, mas, segundo a bela expressão de Teilhard de Chardin, “obreiros da Terra”, solidários com o destino da humanidade e, em grande parte, responsáveis por esse destino.

Joliot-Curie lança garrafas de gasolina contra os tanques alemães durante os combates pela libertação de Paris. Norbert Wiener, o cibernético, intima violentamente os políticos: “Nós demos-vos um reservatório infinito de poder, e vós haveis feito Bergen-Belsen e Hiroshima!”.

São sábios de um estilo novo, cuja aventura está ligada à aventura do mundo[1]. São os herdeiros directos dos investigadores da primeira quarta parte do nosso século: os Curie, Langevin, Perrin, Planck, Einstein, etc. Não se disse com a necessária insistência que durante esses anos a chama do génio atingiu altitudes jamais alcançadas depois do milagre grego. Mesmo estes travaram lutas contra a inércia do espírito humano. E foram violentos nessas batalhas. “A verdade jamais triunfa, mas os seus adversários acabam por morrer”, dizia Planck. E Einstein: “Não acredito na educação. O teu único modelo deves ser tu próprio, mesmo que esse modelo seja assustador”. Mas não eram conflitos ao nível da terra, da história, da acção imediata. Eles sentiam-se responsáveis unicamente perante a Verdade. No entanto, a política reuniu-os. O filho de Planck foi assassinado pela Gestapo, Einstein exilado. A geração actual sente que, por todos os lados, em todos os sentidos, o sábio está ligado ao mundo. Ele retém a quase totalidade do saber útil. Ele reterá, em breve, a quase totalidade do poder. É a personagem-chave da aventura em que a humanidade está empenhada. Cercado pelas políticas, acossado pela polícia e pelos serviços de informação, vigiado pelos militares, tem idênticas probabilidades de obter, no final da sua carreira, tanto o Prémio Nobel como o pelotão de execução. Ao mesmo tempo, os seus trabalhos levam-no a avaliar o ridículo dos particularismos, elevam-no a um nível de consciência planetária, senão cósmica. Entre o seu poder e os poderes há um mal-entendido. Entre o que ele próprio arrisca e os riscos a que submete o mundo, só um incrível cobarde poderia hesitar. Kourchatov quebra a ordem de silêncio e revela o que sabe aos físicos ingleses de Harwell. Pontecorvo foge para a Rússia, para aí prosseguir a sua obra. Oppenheimer entra em conflito com o seu governo. Os atomistas americanos tomam partido contra o exército e publicam o seu extraordinário Boletim: a capa reproduz um relógio cujos ponteiros caminham para a meia-noite cada vez que uma experiência ou uma descoberta temíveis caem nas mãos dos militares.

“Eis o meu vaticínio para o futuro, escreve o biólogo inglês J. B. S. Haldane: aquilo que não foi será. E ninguém está protegido!

A matéria liberta a sua energia e o caminho dos planetas abre-se. Semelhantes acontecimentos parecem sem paralelo na história. “Vivemos um momento em que a história retém o fôlego, em que o presente se desliga do passado assim como o icebergue quebra os laços que o prendiam às falésias de gelo e desliza sobre o oceano sem limites”.[2]

Se o presente se desliga do passado, trata-se de uma rotura, não com todos os passados, não com os passados que atingiram a maturidade, mas com o passado recém-nascido, quer dizer, com aquilo a que chamamos “a civilização moderna”. Esta civilização saída da efervescência das ideias na Europa Ocidental do século xvIII, que desabrochou no século xIx, que espalhou os seus frutos pelo mundo inteiro durante a primeira metade do século xx, está prestes a deixar-nos. Sentimo-lo a cada instante. Estamos na época da rotura. Ora nos apresentamos como modernos atrasados, ora como contemporâneos do futuro. A nossa consciência e a nossa inteligência dizem-nos que são coisas completamente diferentes.

As ideias sobre as quais a civilização moderna assentou estão gastas. Neste período de rotura, ou antes de transmutação, não nos devemos admirar muito se o papel da ciência e a missão do sábio sofrerem profundas alterações. Quais serão essas alterações? Uma visão oriunda de um passado longínquo pode permitir-nos esclarecer o futuro. Ou, mais precisamente, pode refrescar-nos a vista para a pesquisa de um novo ponto de partida.

Num dia de 1622, os parisienses descobriram sobre as paredes da sua cidade certos cartazes assim redigidos:

“Nós, delegados da agremiação principal dos Irmãos da Rosa-Cruz, fazemos uma estada visível e invisível nesta cidade, pela graça do Altíssimo, em direcção ao qual se dirige o coração dos Justos, a fim de libertar os homens, nossos semelhantes, do erro mortal.”

O assunto foi considerado por muitos como uma brincadeira, mas, segundo o recorda Serge Hutin: “Atribuía-se aos Irmãos Rosa-Cruz os seguintes segredos: a transformação dos metais, o prolongamento da vida, o conhecimento do que se passa em locais afastados, a aplicação da ciência oculta para a descoberta dos objectos mais escondidos. Suprimi o termo “oculto”: encontrais-vos perante os poderes que a ciência moderna possui ou para os quais se encaminha. Segundo a lenda há muito conhecida nessa época, a sociedade dos Rosa-Cruz afirmava que o poder do homem sobre a natureza e sobre si próprio se tornaria infinito, que a imortalidade e o controlo de todas as forças naturais estavam ao seu alcance e que ele poderia tomar conhecimento de tudo o que se passa no Universo. Nada há de absurdo nisto e os progressos da ciência justificaram em parte tais sonhos. De forma que o apelo de 1622, em linguagem moderna, poderia ser colocado sobre as paredes de Paris ou aparecer num jornal diário, caso vários sábios se reunissem em congresso para informar os homens dos perigos que correm e da necessidade de empregar as suas actividades em novas perspectivas sociais e morais. Uma patética declaração de Einstein, um discurso de Oppenheimer, um edital do Boletim dos atomistas americanos produzem exactamente o mesmo efeito do manifesto Rosa-Cruz. Vejamos mesmo um recente texto russo. A respeito da conferência sobre os radioisótopos, realizada em Paris em 1957, o escritor soviético Vladimir Orlov escrevia: “os actuais alquimistas devem recordar-se dos estatutos dos seus predecessores da Idade Média, estatutos conservados numa biblioteca parisiense, e que proclamavam que não se podem consagrar a alquimia senão os homens “de coração puro e intenções elevadas”.

A ideia de uma sociedade internacional e secreta, reunindo homens intelectualmente muito avançados, transformados espiritualmente pela intensidade do seu saber, desejosos de proteger as suas descobertas científicas contra os poderes organizados, a curiosidade e a avidez dos outros homens, resetvando-se o direito de utilizar as suas descobertas no momento oportuno, ou de as sepultar durante vários anos, ou de apenas pôr em circulação uma ínfima parte – tal ideia é simultaneamente muito antiga e ultramoderna. Era inconcebível no século xIx ou mesmo apenas há vinte e cinco anos. Mas hoje é concebível. Num determinado plano, ouso afirmar que essa sociedade existe neste momento. Certos hóspedes de Princeton (recordo especialmente um sábio viajante oriental,) puderam ter consciência disso. Se nada prova que a sociedade secreta Rosa-Cruz existiu no século xvII, tudo nos leva a pensar que uma sociedade dessa natureza se constitui actualmente, pela força das circunstâncias, e que ela se inscreve logicamente no futuro. E ainda teremos de falar a respeito da noção de sociedade secreta. Essa mesma noção, tão longínqua, é esclarecida pelo presente.

Voltemos aos Rosa-Cruz. Segundo nos diz o historiador Serge Hutin, “eles constituem a colectividade dos seres elevados ao estado superior à humanidade vulgar, possuindo desta forma os mesmos carácteres interiores que lhes permitem reconhecer-se entre si”.

Pelo menos quanto a nós, esta definição tem o mérito de pôr de lado o estilo ocultista. É que nós temos, em relação
ao “estado superior”, uma ideia clara, quase científica, actual, optimista.

As nossas pesquisas chegaram a um ponto em que se prevê a possibilidade de transformações artificiais que aperfeiçoarão os seres vivos e o próprio homem. “A radioactividade pode criar monstros, mas também nos dará génios”, declara um biólogo inglês. O términus da investigação alquímica, que é a transformação do próprio operador, talvez seja o términus da investigação científica actual. Veremos mais adiante que, em certa medida, isso já se deu com alguns sábios contemporâneos.

Os estudos mais avançados de psicologia parecem provar a existência de um estado diferente dos estados de sono e de vigília, de um estado de consciência superior no qual o homem possuiria faculdades intelectuais duas vezes superiores. À psicologia das profundezas, que devemos à psicanálise, acrescentamos hoje uma psicologia das altitudes que nos coloca na direcção de uma superintelectualidade possível. O génio não seria mais que uma das etapas do percurso que o homem pode percorrer dentro de si próprio, para alcançar a utilização das suas faculdades totais. Numa vida intelectual normal, não utilizamos a décima parte das nossas possibilidades de atenção, prospecção, memória, intuição ou coordenação. Pode ser que estejamos prestes a descobrir, ou redescobrir, as chaves que nos permitirão abrir dentro de nós as portas para além das quais nos espera uma imensidade de conhecimentos. A ideia de uma próxima transformação da humanidade, neste plano, não faz parte do sonho ocultista, mas da realidade. Voltaremos demoradamente ao assunto mais adiante. Provavelmente, já existem mutantes entre nós, ou; pelo menos, homens que já deram alguns passos sobre a estrada que, um dia ou outro, todos nós percorreremos.

Segundo a tradição[3], não sendo a expressão “génio” suficiente para exprimir todos os possíveis estados superiores do cérebro humano, os Rosa-Cruz pertenciam a espíritos de outra categoria, que se reuniam por cooptação. Digamos antes que a lenda dos Rosa-Cruz serviu de suporte a uma realidade: a sociedade secreta permanente dos homens superiormente esclarecidos – uma conspiração feita à luz do dia.

A sociedade Rosa-Cruz ter-se-ia formado naturalmente, através de homens que tinham atingido um estado de consciência elevado, em busca de correspondentes, de outros homens, seus semelhantes pelo nascimento, com os quais o diálogo fosse possível. Vemos assim Einstein ser compreendido apenas por cinco ou seis homens no mundo, e existirem só algumas centenas de matemáticos e físicos susceptíveis de reflectir proveitosamente a respeito de uma nova revisão da lei de paridade.

Para os Rosa-Cruz não há outro estudo além do da natureza, mas este estudo só é realmente esclarecedor para espíritos de uma categoria diferente do espírito vulgar.

Aplicando um espírito da categoria diferente ao estudo da natureza, alcança-se a totalidade dos conhecimentos e a sabedoria. Esta ideia nova, dinâmica, seduziu Descartes e Newton. Ao falar-se de ambos, os Rosa-Cruz foram mais de uma vez evocados. Quer dizer que eles eram filiados? Esta pergunta não faz sentido. Não é uma sociedade organizada que concebemos, mas os necessários contactos entre espíritos de outra categoria, e uma linguagem comum, não secreta, mas simplesmente ininteligível para os homens em determinada época.

Se alguns dos profundos conhecimentos sobre a matéria e a energia, sobre as leis que regem o Universo, foram elaborados por civilizações actualmente desaparecidas, e se se conservaram, através dos séculos, fragmentos desses conhecimentos (do que aliás não estamos certos), não pode ter sido senão por espíritos superiores e numa linguagem forçosamente incompreensível para o vulgo. Mas caso não queiramos aceitar esta hipótese, podemos pelo menos imaginar, no decorrer dos tempos, uma sucessão de espíritos fora do comum, comunicando entre si. Tais espíritos sabem evidentemente que não têm o menor interesse em fazer estendal do seu poder. Se Cristóvão Colombo fosse um espírito fora do comum, teria mantido secreta a sua descoberta. Obrigados a uma espécie de clandestinidade, esses homens só com os seus semelhantes podem manter contactos satisfatórios. Basta pensar na conversa dos médicos em redor do leito de um enfermo no hospital, conversa em voz alta e da qual no entanto o paciente nada entende para compreender o que pretendemos dizer sem baralhar ideias no obscuridade do ocultismo, da iniciação, etc. É bem visível que espíritos desta natureza, empenhados em passar desapercebidos simplesmente para não sofrerem entraves, teriam mais que fazer do que brincar entre si aos conspiradores. Se eles formam uma sociedade é pela força das circunstâncias. Se têm uma linguagem especial, é porque as noções gerais que essa linguagem exprime são inacessíveis ao espírito humano vulgar. É exclusivamente neste sentido que nós aceitamos uma ideia de sociedade secreta. As outras sociedades secretas, ligadas entre si, que são inúmeras e mais ou menos poderosas e pitorescas, para nós não passam de imitações, de brincadeiras de crianças que pretendem copiar os adultos.

Enquanto os homens alimentarem o sonho de obter seja o que for a troco de coisa alguma, dinheiro sem trabalhar, conhecimentos sem estudos, poder sem sabedoria, virtude sem ascese as sociedades supostamente secretas e iniciáticas prosperarão, com as suas hierarquias imitativas e o seu rosnar que imita linguagem secreta, quer dizer, técnica.

Escolhemos o exemplo dos Rosa-Cruz de 1622 porque, segundo a tradição, o autêntico Rosa-Cruz não se fundamenta
em qualquer iniciação misteriosa, mas num estudo profundo e coerente do Liber Nlundi, do livro do Universo e da natureza. A tradição Rosa-Cruz é portanto a mesma que a da ciência contemporânea. Começamos agora a compreender que um estudo profundo e coerente deste livro da natureza exige mais qualquer coisa do que simples espírito de observação, ou aquilo a que ultimamente chamámos científico, e mesmo qualquer coisa mais do que aquilo a que chamamos inteligência. No ponto em que as nossas investigações estão, seria necessário que o espírito se vencesse a si próprio, que a inteligência se transcendesse. O humano, demasiado humano, não basta. Talvez seja a esta mesma constatação, feita nos séculos passados por homens superiores, que devemos, senão a realidade, pelo menos a lenda Rosa-Cruz. O moderno atrasado é racionalista. O contemporâneo do futuro sente-se religioso. Modernismo a mais afasta-nos do passado. Um pouco de futurismo aproxima-nos dele.

“Entre os jovens atomistas, escreve Robert Jungkl, há os que julgam os seus trabalhos como uma espécie de concurso intelectual que não contém significado profundo nem obrigações, mas outros descobrem na investigação uma experiência
religiosa.”

Os nossos Rosa-Cruz de 1622 faziam uma “estada invisível” em Paris. O que nos espanta é o facto de que, apesar do actual regime de polícia e de espionagem, os grandes investigadores consigam comunicar entre si destruindo as pistas que poderiam conduzir os governos até aos seus trabalhos. O destino do mundo poderia ser debatido por dez sábios, e em voz alta, diante de Khruchtchov e Eisenhower, sem que estes senhores compreendessem uma única palavra. Uma sociedade internacional de investigadores que não interviesse nos assuntos dos homens teria todas as probabilidades de passar desapercebida, da mesma forma que passaria desapercebida uma sociedade que limitasse as suas intervenções a casos muito especiais. Os seus próprios meios de comunicação poderiam não ser captados. A T.S.F. poderia muito bem ter sido descoberta no século xvII e os aparelhos de galena, tão simples, poderiam ter servido para os “iniciados”. Da mesma forma, as modernas pesquisas a respeito dos meios parapsicológicos obtiveram como resultado aplicações em telecomunicações. O engenheiro americano Victor Enderby escreveu recentemente que, se se obtiveram resultados nesse domínio, foram mantidos secretos, por livre vontade dos inventores.

O que também nos impressiona é que a tradição Rosa-Cruz alude a aparelhos ou máquinas que a ciência oficial da época não pode fabricar: lâmpadas perpétuas, registadores de sons e de imagens, etc. A lenda descreve aparelhos encontrados no túmulo do simbólico “Christian Rosen Kreutz”, que poderiam ser do ano de 1958, mas não de 1622. É que a doutrina Rosa-Cruz baseia-se no domínio do Universo pela ciência e pela técnica, mas de forma alguma pela iniciação ou pela mística.

Do mesmo modo, podemos conceber na nossa época uma sociedade que manteria uma tecnologia secreta. As perseguições políticas, as dificuldades sociais, o desenvolvimento do senso moral e da consciência de uma aterradora responsabilidade forçarão cada vez mais os sábios a refugiar-se na clandestinidade. Ora não será esta clandestinidade que retardará as pesquisas. Não é possível acreditar que os foguetões e as enormes máquinas para destruir o átomo serão de futuro os únicos instrumentos do investigador. As verdadeiras grandes descobertas sempre foram feitas com materiais simples, um equipamento sucinto. É possível que existam no mundo, neste momento, certos locais onde a densidade intelectual é particularmente grande e onde essa nova clandestinidade se afirma. Entramos numa época que se assemelha, sob certos aspectos, ao princípio do século xvii e talvez esteja em preparação um novo manifesto de 1622. Talvez até já tenha aparecido. Mas nós não nos apercebemos disso.

O que nos afasta desses pensamentos, é que as épocas antigas se exprimem sempre em fórmulas religiosas. Portanto, apenas lhes dedicamos uma atenção literária, ou “espiritual”. É por isso que somos modernos. É por isso que não somos contemporâneos do futuro.

O que finalmente nos impressiona é a afirmação reiterada dos Rosa-Cruz e dos alquimistas, segundo a qual o objectivo da ciência das transmutações é a transmutação do próprio espírito. Não se trata nem de magia, nem de recompensa vinda do céu mas de uma descoberta das realidades que obriga o espírito do observador a tomar outra posição. Se pensarmos na evolução extremamente rápida do estado de espírito dos maiores atomistas, começaremos a compreender o que os Rosa-Cruz queriam dizer. Estamos numa época em que a ciência, no seu termo máximo, atinge o universo espiritual e transforma o espírito do próprio observador, situando-o num nível diferente do da inteligência científica, tornada insuficiente. Aquilo que acontece aos nossos atomistas é comparável à experiência descrita pelos textos alquímicos e pela tradição Rosa-Cruz. A linguagem espiritual não é uma balbuciação que precede a linguagem científica, mas principalmente a superação desta. Aquilo que se passa no nosso presente pode ter-se passado em tempos idos, noutro plano do conhecimento, de forma que a lenda Rosa-Cruz e a realidade de hoje se esclarecem mutuamente. É preciso ver as coisas antigas com olhos actuais, o que nos ajudará a compreender o futuro.

Já não estamos na época em que o progresso se identifica exclusivamente com o avanço científico e técnico. Surge outra probabilidade, aquela que se encontra nos Superiores Desconhecidos dos séculos passados quando eles mostram que a observação do Liber Mundi desemboca “noutra coisa”. Um físico eminente, Heisenberg, declara actualmente: “O espaço em que se desenvolve o ser espiritual do homem tem outras dimensões além daquela em que se desenvolveu durante os últimos séculos”.

Wells morreu desanimado. Esse espírito poderoso vivera com fé no progresso. Ora Wells, no fim da vida, viu esse progresso tomar aspectos assustadores. Já não tinha confiança. A ciência arriscava-se a destruir o mundo, pois acabavam de ser inventados os mais extraordinários processos de aniquilamento.

“O homem, disse em 1946 o velho Wells desesperado, chegou ao termo das suas possibilidades”. Foi nesse momento que o ancião que fora um génio da antecipação deixou de ser um contemporâneo do futuro. Nós começamos a perceber que o homem apenas atingiu o términus de uma das suas possibilidades. Outras possibilidades surgem. Outros caminhos se abrem, que o fluxo e refluxo do oceano dos séculos encobrem e descobrem alternadamente. Wolfgang Pauli, matemático e físico mundialmente conhecido, professava outrora o cientismo na mais perfeita tradição do século xIx. Em 1932, no congresso de Copenhaga, pelo seu frio cepticismo e pela sua ânsia de poder, surgiu como o Mefistófeles de Fausto. Em 1955, esse espírito penetrante alargara tão amplamente as suas perspectivas que se transformou no eloquente defensor de uma via de salvação interior, desprezada durante muito tempo. Esta evolução é típica. É a da maior parte dos grandes atomistas. Não é um regresso ao moralismo ou a uma vaga religiosidade. Trata-se, pelo contrário, de um progresso no equipamento do espírito de observação, de uma nova reflexão sobre a natureza do conhecimento. “Em face da divisão das actividades do espírito humano em diferentes domínios, estritamente mantida desde o século xvII, diz Wolfgang Pauli, imagino um objectivo que seria a conciliação dos contrários, uma síntese que abarcasse a inteligência racional e a experiência mística da unidade. Este fim é o único que se adapta ao mito, expresso ou não, da nossa época”.

1 “O investigador foi obrigado a reconhecer que, à semelhança de qualquer ser humano, tanto é espectador como actor no grande drama da existência.” Bohr.

2 Arthur Clarke: Les Enfants d’Icare (Gallimard)

3 Ver a terceira parte do presente trabalho: “O homem, esse infinito.”

Existiu, na segunda metade do século xIx, no despontar dos tempos modernos, uma pleiade de pensadores violentamente reaccionários. Eles viam um logro na mística do progresso social, no progresso científico e técnico uma corrida para o abismo. Foi Philippe Lavastine, moderna encarnação do herói do Chefd’Oeuvre inconnu, de Balzaç e discípulo de Gurdjieff, que mos fez conhecer. Nessa época em que eu lia René Guénon, mestre do antiprogressismo, e convivia com Lanza del Vasto, que regressara das Índias, não estava longe de aderir às opiniões desses pensadores contra-a-corrente. Havia muito pouco tempo que a guerra terminara. Einstein acabava de mandar o seu famoso telegrama:

“O nosso mundo está na iminência de uma crise de que ainda se não aperceberam aqueles que têm o poder de tomar as grandes decisões para o bem ou para o mal. O poder extraído do átomo alterou tudo, excepto o nosso hábito de pensar, e encaminhamo-nos para uma catástrofe sem precedentes. Nós, cientistas, que libertámos esse imenso poder, possuímos a esmagadora responsabilidade, nesta luta mundial de vida ou de morte, de forçar a sua utilização em benefício da humanidade e não da sua destruição. A federação dos sábios americanos adere a este meu apelo. Pedimos que apoiem os nossos esforços para levar a América a compreender que o destino da humanidade se decide hoje, agora, neste preciso minuto. Necessitamos imediatamente de duzentos mil dólares para uma campanha nacional destinada a dar a conhecer aos homens que é essencial uma nova forma de pensar, se a humanidade quer sobreviver e atingir níveis mais altos. Este apelo só vos é dirigido após longa meditação sobre a imensa crise que enfrentamos. Peço-vos com urgência um cheque
imediato que me deve ser enviado a mim, presidente da Comissão de Desespero dos Sábios do Átomo, Princeton, New Jersey. Reclamamos o vosso auxílio neste instante fatal como prova de que nós, os homens de ciência, não estamos sós.”

Tal catástrofe, pensava eu (e duzentos mil dólares nada alterarão), há muito que os meus mestres a tinham previsto. Deus oferecera ao homem o obstáculo da matéria e, como dizia Blanc de Saint-Bonnet, “o homem é filho do obstáculo”. Mas os modernos, libertos dos princípios, pretenderam fazer desaparecer os obstáculos. A matéria, que constituía um obstáculo, foi vencida. O caminho para o nada está aberto. Há dois mil anos, Orígenes escrevia que “a matéria é o absorvente da iniquidade”. De futuro, a iniquidade não mais será absorvida: antes se derramará em vagas destruidoras. Essa Comissão do Desespero não a conseguirá fazer desaparecer.

Os antigos eram sem dúvida tão maus como nós, mas sabiam-no. Essa sabedoria levava-os a criar obstáculos. Surge uma bula do Papa condenando o emprego da tripeça, destinada a tornar mais sólido o arco: esta máquina, aliada aos poderes normais do archeiro, tornaria o combate desumano. A bula é discutida durante duzentos anos. Rolando de Roncevaux, ferido de morte pelas fundas moiras, exclama: “Maldito seja o cobarde que inventou armas capazes de matar à distância!” Mais recentemente, em 1775, um engenheiro francês, Du Perron, apresentou ao jovem Luís XVI um “órgão militar” que, accionado por uma manivela, lançava simultaneamente vinte e quatro balas. Um memorial acompanhava este instrumento, embrião das modernas metralhadoras. A máquina pareceu tão mortífera ao rei e aos ministros Malesherbes e Turgot que foi recusada e o seu inventor considerado um inimigo da humanidade.

Ao pretendermos emancipar tudo, emancipámos igualmente a guerra. Sendo outrora motivo de sacrifício e de salvação para alguns, transformou-se depois na condenação para todos.

Tais eram pouco mais ou menos os meus pensamentos por volta de 1946, e sonhava publicar uma antologia dos “pensadores reaccionários” cujas vozes foram abafadas, no seu tempo, pelo coro dos progressistas românticos. Esses escritores intratáveis, esses profetas do Apocalipse, que gritavam no deserto, chamavam-se Blanc de Saint-Bonnet, Emile Montagut, Albert Sorel, Donoso Cortês, etc. Foi num estado de espírito muito semelhante aos destes antepassados que elaborei um panfleto intitulado Le Temps des Assassins, no qual colaboraram especialmente Aldous Huxley e Albert Camus. A imprensa americana deu publicidade a esse panfleto em que sábios, militares e políticos eram muito maltratados, e no qual se pedia um processo de Nuremberga para todos os técnicos da destruição.

Creio que hoje as coisas não são tão simples e que é preciso ver com olhos diferentes, e mais de cima, a história irreversível. No entanto, em 1946, no inquietante após-guerra, essa corrente de pensamento provocava um sulco resplandecente no oceano de angústias em que se afundavam os intelectuais que não queriam ser “nem vítimas nem carrascos”. E é verdade que, depois do telegrama de Einstein, as coisas pioraram. “O que está dentro das pastas dos sábios é pavoroso”, diz Khruchtchov em 1960. Mas os espíritos acabaram por se aborrecer e, após inúmeros e inúteis protestos, dedicaram-se a outros motivos de reflexão. Aguardando, como o condenado à morte na sua cela, que seja ou não perdoado. Todavia, de hoje em diante, haverá em todas as consciências um fundo de revolta contra a ciência capaz de destruir o mundo, uma dúvida quanto à possibilidade salvadora do progresso técnico: “Acabarão por fazer com que tudo vá pelos ares”. Depois das furiosas críticas de Aldous Huxley em Contraponto e O Admirável Mundo Novo, o optimismo científico desapareceu. Em 1951, o químico americano Anthony Standen publicava um livro intitulado: A Ciência é uma vaca Sagrada, no qual protestava contra a admiração excessiva pela ciência. Em Outubro de 1953, um célebre professor de direito de Atenas, M.O.J. Despotopoulos, dirigia um manifesto à U.N.E.S.C.O. pedindo que interceptasse o desenvolvimento científico, ou então que o mantivesse secreto. A investigação, propunha ele, seria dali em diante confiada a um conselho de sábios mundialmente escolhidos e portanto com o direito de manter o silêncio. Esta ideia, por utópica que seja, não deixa de ter interesse. Ela esboça uma possibilidade do futuro e, como mais adiante veremos, refere-se a um dos grandes temas das civilizações passadas. Numa carta que em 1955 nos dirigiu, Despotopoulos explicáva com maior precisão a sua ideia:

“A ciência da natureza é sem dúvida um dos empreendimentos mais dignos da história humana. Mas a partir do momento em que desencadeia forças capazes de destruir a humanidade inteira, deixa de ser aquilo que era sob o ponto de vista moral. A diferença entre ciência pura e as suas aplicações técnicas tornou-se praticamente impossível. Não se poderia portanto falar da ciência como de um valor em si. Ou antes, em certos sectores, e são os mais importantes, é actualmente um valor negativo, na medida em que escapa ao controlo da consciência para espalhar os seus perigos segundo o capricho e ânsia de poder dos responsáveis políticos. A idolatria do progresso e da liberdade em matéria de pesquisa científica é completamente perniciosa. A nossa proposta é esta: codificação das conquistas da ciência da natureza realizadas até agora e proibição total ou parcial do seu progresso futuro por meio de um conselho supremo mundial de sábios. Tal medida é, sem dúvida alguma, tragicamente cruel, por o seu objectivo ir de encontro a um dos mais nobres impulsos da humanidade, e ninguém pode ignorar as dificuldades inerentes a tal medida. Mas não há outra suficientemente eficaz. As objecções fáceis: regresso à Idade Média, à barbárie, etc., não contém qualquer argumento importante. Não se trata de fazer retroceder a inteligência, mas sim de a defender. Não se trata de restrições em benefício de uma classe social: mas sim da protecção de toda a humanidade. Tal é o problema. O resto não passa de divisão e dispersão da actividade, dedicando-se a problemas menores”.

Estas ideias tiveram um favorável acolhimento na imprensa inglesa e alemã, e foram amplamente comentadas no boletim dos sábios atomistas de Londres. Elas não se afastam muito de certas propostas formuladas nas conferências mundiais consagradas ao desarmamento.

Talvez seja lícito pensar que noutras civilizações não houve ausência de ciência, mas sim dissimulação da ciência. Tal parece ser a origem da maravilhosa lenda dos Nove Desconhecidos.

A tradição dos Nove Desconhecidos remonta à época do imperador Asoka, que governou as Índias a partir do ano 273 a.C. Era neto do Chandragunta, primeiro unificador da Índia. Cheio de ambição como o seu antepassado, cuja tarefa quis completar, empreendeu a conquista de Kalinga, que se estendia desde a actual Calcutá até Madras. Os “kalinganeses” resistiram e perderam cem mil homens na batalha. O espectáculo dessa multidão massacrada transtornou Asoka. Ficou, para todo o sempre, com horror à guerra. Renunciou a prosseguir na integração dos países insubmissos, declarando que a verdadeira conquista consiste em captar a estima dos homens pela lei do dever e da piedade, pois a Majestade Sagrada deseja que todos os seres animados usufruam de segurança, liberdade, paz e felicidade.

Convertido ao budismo e devido à sua maneira de agir, Asoka espalhou esta religião através das Índias e do seu império, que ia até à Malásia, Ceilão e Indonésia. Depois o budismo chegou ao Nepal, Tibete, China e Mongólia. No entanto, Asoka respeitava todas as seitas religiosas. Aconselhava os homens a serem vegetarianos, aboliu o álcool e o sacrifício de animais. H. G. Wells, no seu sumário da história universal, escreve: “Entre as dezenas de milhares de nomes de monarcas que se amontoam nos pilares da história, o de Asoka brilha quase isolado, como uma estrela”.

Diz-se que, consciente dos horrores da guerra, o imperador Asoka quis proibir para sempre aos homens que utilizassem a inteligência de uma forma prejudicial. Sob o seu reinado, a ciência da natureza passou a ser secreta, tanto passada como futura. As pesquisas, indo da estrutura da matéria às técnicas de psicologia colectiva, esconder-se-ão, dali em diante e durante vinte e dois séculos, atrás do rosto místico de um povo que o mundo julga apenas preocupado com o êxtase e o sobrenatural. Asoka fundou a mais poderosa sociedade secreta do Universo: a dos Nove Desconhecidos.

Continua a dizer-se que os grandes responsáveis pelo actual destino da Índia – e sábios como Bose e Ram acreditam na existência dos Nove Desconhecidos – deles recebiam conselhos e mensagens. Com alguma imaginação, é possível avaliar-se a importância dos segredos que poderiam guardar nove homens beneficiando directamente das experiências, dos trabalhos, dos documentos acumulados durante mais de duas dezenas de séculos. Quais os objectivos que esses homens têm em vista? Não deixar cair em mãos profanas os meios de destruição. Prosseguir as investigações benéficas para a humanidade. Esses homens seriam renovados por cooptação a fim de defender os segredos técnicos de um passado longínquo.

São raras as manifestações exteriores dos Nove Desconhecidos. Uma delas está ligada ao prodigioso destino de um dos homens mais misteriosos do Ocidente: o papa Silvestre II, conhecido sob o nome de Gerbert d’Aurillac. Nascido em Auvergne no ano 920, falecido em 1003, Gerbert foi monge beneditino, professor da universidade de Reims, arcebispo de Ravena e papa por mercê do imperador Otão III. Teria passado algum tempo em Espanha, depois, uma misteriosa viagem tê-lo-ia levado até às Índias, onde captara diversos conhecimentos que causaram assombro no seu séquito. Também possuía, no seu palácio, uma cabeça de bronze que respondia SIM ou NÃO às perguntas que ele lhe fazia sobre a política e a situação geral da cristandade. Na opinião de Silvestre II (volume CXXXIX da Patrologia Latina, de Migne), esse processo era muito simples e correspondia ao cálculo feito com dois números. Tratar-se-ia de um autómato análogo às nossas modernas máquinas binárias. Essa cabeça “mágica” foi destruída quando da sua morte, e os conhecimentos trazidos por ele cuidadosamente escondidos. A biblioteca do Vaticano proporcionaria sem dúvida algumas surpresas ao investigador autorizado. O número de Outubro de 1954 de Computers and Automation, revista de cibernética, declara: “Temos de imaginar um homem de um saber extraordinário, de uma destreza e de uma habilidade mecânica fora do comum. Essa cabeça falante teria sido feita “sob determinada conjunção das estrelas que se dá exactamente no momento em que todos os planetas estão prestes a iniciar o seu percurso”. Não se tratava nem de passado, nem de presente, nem de futuro, pois aparentemente essa invenção ultrapassava de longe a importância da sua rival: o perverso “espelho sobre a parede” da rainha, precursor dos nossos modernos cérebros automáticos. Houve quem dissesse, evidentemente, que Gerbert apenas foi capaz de construir semelhante máquina porque mantinha relações com o Diabo e lhe jurara eterna fidelidade”.

Teriam outros europeus estado em contacto com essa sociedade dos Nove Desconhecidos? Foi preciso esperar pelo século xIx para que reaparecesse este mistério, através dos livros do escritor francês Jacolliot.

Jacolliot era cônsul de França em Calcutá na época de Napoleão III. Escreveu uma obra de antecipação considerável, comparável, se não superior, à de Jules Verne. Deixou, além disso, várias obras consagradas aos grandes segredos da humanidade. Essa obra extraordinária foi roubada pela maior parte dos ocultistas, profetas e taumaturgos. Completamente esquecida em França, é célebre na Rússia.

Jacolliot é formal: a sociedade dos Nove Desconhecidos é uma realidade. E o mais estranho é que cita a este respeito técnicas absolutamente inimagináveis em 1860, como seja, por exemplo, a libertação da energia, a esterilização por meio de radiações e a guerra psicológica.

Yersin, um dos mais próximos colaboradores de Pasteur e de Roux, teria sido informado de segredos biológicos por ocasião da sua viagem a Madras, em 1890, e, segundo as indicações que lhe teriam sido dadas, preparou o soro contra a peste e a cólera.

A primeira divulgação da história dos Nove Desconhecidos deu-se em 1927, com a publicação do livro de Talbot Mundy, que pertenceu, durante vinte e cinco anos, à polícia inglesa das Índias. Esse livro está a meio caminho entre o romance e a investigação. Os Nove Desconhecidos utilizariam uma linguagem sintética. Cada um deles estaria de posse de um livro constantemente renovado e contendo o relatório pormenorizado de uma ciência.

O primeiro destes livros seria consagrado às técnicas da propaganda e da guerra psicológica. “De todas as ciências, diz Mundy, a mais perigosa seria a do controlo do pensamento dos povos, pois permitiria governar o mundo inteiro”. É de notar que a Semântica Geral, de Korjybski, apenas data de 1937 e que foi necessário aguardar a experiência da última guerra mundial para que principiassem a cristalizar-se no Ocidente as técnicas da psicologia da linguagem, quer dizer, da propaganda. O primeiro colégio de semântica americano só foi criado em 1950. Em França, apenas conhecemos A Violação das Multidões, de Serge Tchokhotine, cuja influência nos meios intelectuais e políticos foi importante, apesar de só ao de leve tocar no assunto.

O segundo livro seria consagrado à psicologia. Falaria especialmente na maneira de matar um homem ao tocar-lhe, provocando a morte pela inversão do influxo nervoso. Diz-se que o judo deriva de certos trechos dessa obra.

O terceiro estudaria a microbiologia e especialmente os colóides de protecção.

O quarto trataria da transmutação dos metais. Diz uma lenda que nas épocas de fnme, os templos e os organismos religiosos de protecção recebem de uma fonte secreta enormes quantidades de ouro muito fino.

O quinto incluía o estudo de todos os meios de comunicação, terrenos e extraterrenos.

O sexto continha os segredos da gravitação.

O sétimo seria a mais vasta cosmogonia concebida pela nossa humanidade.

O oitavo trataria da luz.

O nono seria consagrado à sociologia, indicaria as leis da evolução das sociedades e permitiria a previsão da queda.

À lenda dos Nove Desconhecidos está ligado o mistério das águas do Ganges. Multidões de peregrinos, portadores das mais pavorosas e diversas doenças, ali se banham sem prejuízo para os de boa saúde. As águas sagradas tudo purificam. Pretenderam atribuir essa estranha propriedade do rio à formação de bacteriófagos. Mas por que motivo não se formariam eles igualmente no Bramaputra, no Amazonas ou no Sena? A hipótese de uma esterilização por meio de radiações aparece na obra de Jacolliot, cem anos antes de se saber possível um tal fenómeno. Essas radiações, segundo Jacolliot, seriam originárias de um templo secreto cavado sob o leito do Ganges.

Afastados das agitações religiosas, sociais e políticas, resoluta e perfeitamente dissimulados, os Nove Desconhecidos encarnam a imagem da ciência calma, da ciência com consciência. Senhora dos destinos da humanidade, mas abstendo-se de utilizar o seu próprio poder, essa sociedade secreta é a mais bela homenagem possível à liberdade em plena elevação. Vigilantes no âmago da sua glória escondida, esses nove homens vêem fazer-se, desfazer-se e tornar a fazer-se as civilizações, menos indiferentes que tolerantes, prontos a auxiliar, mas sempre sob essa imposição de silêncio que é a base da grandeza humana.

Mito ou realidade? Mito soberbo em todo o caso, vindo das profundezas dos séculos – e ressaca do futuro.

Nós não somos nem materialistas, nem espiritualistas: aliás, tais distinções já não têm, para nós, o menor sentido. Apenas procuramos a realidade sem nos deixarmos dominar pelo reflexo condicionado do homem moderno (a nossos olhos retardatários), que se desvia assim que essa realidade se reveste de uma forma fantástica. Tornámo-nos novamente bárbaros, a fim de vencer esse reflexo, exactamente como tiveram de o fazer os pintores para destruir a barreira das convenções colocada entre os olhos e os objectos. Também como eles, optámos por métodos balbuciantes, selvagens, por vezes infantis. Colocámo-nos perante os elementos e os métodos do conhecimento como Cézanne em frente da maçã. Van Gogh em frente do campo de trigo. Recusá-mo-nos a pôr de parte factos, aspectos da realidade, sob o pretexto de que não são “convenientes”, de que ultrapassam as fronteiras impostas pelas teorias habituais. Gauguin não põe de parte um cavalo vermelho, Manet uma mulher nua entre os convivas do Déjeuner sur L’herbe, Max Ernst, Picabia, Dali, as figuras saídas do sonho e o mundo vivente na imensidade da consciência[1]. A nossa forma de agir e de ver provocará revolta, desprezo, sarcasmos. Seremos recusados no Salão. Aquilo que finalmente aceitaram nos pintores, nos poetas, nos cineastas, nos decoradores, etc., ainda não há preparação para ser aceite no nosso domínio. A ciência, a psicologia, a sociologia são florestas de tabos. Mal é expulsa, a ideia do sagrado volta a galope, sob vários disfarces. Que diabo! A ciência não é uma vaca sagrada: podemos empurrá-la, desimpedir o caminho.

Voltemos ao nosso assunto. Nesta parte do nosso trabalho, intitulada O Futuro Anterior, o nosso raciocínio é o seguinte:

– Poderia dar-se o caso de que aquilo a que chamamos esoterismo, alicerce das sociedades secretas e das religiões, seja o resíduo, dificilmente compreensível e manejável, de um conhecimento muito antigo de natureza técnica, adaptável simultaneamente a matéria e ao espírito. É o que mais adiante desenvolveremos.

– “segredos” não seriam fábulas, histórias ou divertimentos, mas receitas técnicas exactas, chaves para libertar os poderes contidos no homem e nas coisas.

– A ciência não é a técnica. Contrariamente ao que se pode supor, a técnica, em bastantes casos, não segue a ciência, precede-a. A técnica executa. A ciência demonstra que é impossível executar. Depois as barreiras das impossibilidades desmoronam-se. Evidentemente que não pretendemos dar a entender, bem longe disso, que a ciência é vã. Ver-se-á a importância que damos à ciência e com que olhos maravilhados a vemos mudar de rosto. Pensamos simplesmente que no longínquo passado algumas técnicas podem ter precedido a aparição da ciência.

– Pode acontecer que técnicas passadas tenham dado aos homens poderes demasiado temíveis para ser divulgados.

– A necessidade de segredo poderia ter dois motivos:

a) A prudência. “Aquele que sabe não fala”. Não deixar cair as chaves em más mãos.

b) O facto de que a possessão e manejo de tais técnicas e conhecimentos exige do homem outras estruturas mentais além das do estado de vigília normal, uma situação da inteligência e da linguagem sobre outro plano – de tal forma que nada é comunicável na condição do homem vulgar. O segredo não é um resultado da vontade daquele que o guarda, é o resultado da sua própria natureza.

– Verificamos a existência de um fenómeno idêntico no nosso mundo actual. Um desenvolvimento constantemente acelerado das técnicas incita aqueles que sabem ao desejo, depois à necessidade de segredo. O perigo extremo leva à discrição extrema. À medida que o conhecimento se desenvolve e atinge determinado nível, tende a ocultar-se. Formam-se corporações de sábios e de técnicos. A linguagem da sabedoria e do poder torna-se incomunicável. O problema das diferenças nas estruturas mentais é posto com clareza, no plano de investigação físico-matemática. Ao fim e ao cabo, aqueles que possuem, como Einstein dizia, “o poder de tomar as grandes decisões, para o bem e para o mal”, formam uma verdadeira criptocracia. O futuro imediato assemelha-se às descrições tradicionais.

– A nossa visão do conhecimento passado não está de acordo com o esquema “espiritualista”. A nossa visão do presente e do futuro imediato introduz magia onde apenas se queria pôr o racional. Para nós, trata-se simplesmente de procurar correspondências esclarecedoras. Estas podem permitir-nos situar a aventura humana na totalidade dos tempos. Tudo o que nos pode servir de ponte é útil.

No fundo, tanto nesta parte do livro como noutras, a nossa opinião é a seguinte:

O homem tem, provavelmente, a possibilidade de estar em comunicação com a totalidade do Universo. É conhecido o paradoxo do viajante de Langevin. Andrómeda está a três milhões, de anos-luz da Terra. Mas o viajante, deslocando-se a uma velocidade pouco mais ou menos igual à da luz, apenas envelheceria alguns anos. Segundo a teoria unitária de Jean Charon, por exemplo, não seria inadmissível que a Terra, durante essa viagem, também não envelhecesse mais do que isso. O homem estaria portanto em contacto com o todo da criação, estando o espaço e o tempo a jogar um jogo diferente do jogo aparente. Por outro lado, a investigação físico-matemática, no ponto em que Einstein a deixou, é uma tentativa da inteligência humana para descobrir a lei que, possivelmente, regula o conjunto das forças universais (gravitação, electromagnetismo, luz, energia nuclear). Uma tentativa de visão unitária, visto todo o esforço do espírito ser para se situar num ponto em que a continuidade fosse visível. E de onde viria esse desejo do espírito se este não pressentisse que esse ponto existe e que lhe é possível situar-se dessa maneira? “Não me procurarias se não me tivesses já encontrado”.

Noutro plano, mas dentro deste mesmo movimento, aquilo que procuramos é uma visão contínua da aventura da inteligência humana, do conhecimento humano. Eis a razão por que passamos com a maior velocidade da magia para a técnica, dos Rose-Crozx para Princeton, dos Maia para o homem das próximas mutações, do selo de Salomão para a tabela periódica dos elementos, das civilizações extintas para as civilizações a surgir, de Fulcanelli para Oppenheimer, do feiticeiro para a máquina electrónica analógica, etc. Com a maior velocidade, ou antes a uma velocidade tal que o espaço e o tempo provoquem a destruição da sua carapaça e que a visão do contínuo surja. Há o viajar em sonho e o viajar realmente. Nós preferimos a viagem real. Neste sentido é que o presente livro não é produto de imaginação. Nós construímos aparelhos (isto é, correspondências demonstráveis, comparações válidas, equivalências incontestáveis). Aparelhos que funcionam, foguetões que partem. E, por vezes, em certos momentos, pareceu-nos que o nosso espírito atingia o ponto em que a totalidade do esforço humano é visível. As civilizações, os períodos do conhecimento e da organização humana são como outros tantos rochedos no meio do oceano. Quando se contempla uma civilização, um período do conhecimento, apenas se vê o choque do oceano contra esse rochedo, o quebrar da.onda, a espuma borbulhante. O que procurámos foi o local de onde se pudesse contemplar o oceano inteiro, na sua calma e poderosa continuidade, na sua harmoniosa unidade.

Voltemos agora às reflexões sobre a técnica, a ciência e a magia. Elas irão determinar com exactidão a nossa tese sobre a ideia de sociedade secreta (ou antes de “conspiração às claras”) e servir-nos de preparação para próximos estudos, um sobre alquimia, outro sobre as civilizações desaparecidas.

Quando um jovem engenheiro entra para a indústria, depressa distingue dois universos diferentes. Há o do laboratório, com as leis definidas das experiências que se podem reproduzir, com uma imagem compreensível do mundo. E há o Universo real, no qual as leis nem sempre são aplicadas, onde os fenómenos são por vezes imprevistos, onde o impossível se realiza. Se tem um temperamento forte, o engenheiro em questão reage pela cólera, a paixão, o desejo de “violar essa maldita matéria”. Os que adoptam esta atitude vivem existências trágicas. Veja-se Edison, Tesla, Armstrong. Um demónio os arrasta. Werner von Braun experimenta os seus foguetões sobre os londrinos, massacra milhares deles e é finalmente preso pela Gestapo por ter declarado: “No fim de contas, estou-me nas tintas para a vitória da Alemanha, o que eu quero é a conquista da Lua![2]” Disse-se que a grande tragédia actual é a política. Essa ideia já caducou. A tragédia é o laboratório. É a esses “mágicos” que se deve o progresso técnico. Na nossa opinião, a técnica não é de forma alguma a aplicação prática da ciência. Muito pelo contrário, ela desenvolve-se contra a ciência. O eminente matemático e astrónomo Simon Newcomb demonstra que aquilo que é mais pesado do que o ar não teria possibilidades de voar. Dois mecânicos de bicicletas provar-lhe-ão o contrário. Rutheford, Millikan [3], provam que jamais será possível explorar as reservas de energia do núcleo atómico. A bomba de Hiroshima explode. A ciência ensina que uma massa de ar homogénea não se pode dividir em ar quente e ar frio. Hilsch demonstra que basta fazer circular essa massa através de um tubo apropriado z. A ciência coloca barreiras de impossibilidades. O engenheiro, da mesma forma que o mágico sob o olhar do explorador cartesiano, transpõe as barreiras por meio de um fenómeno análogo ao que os físicos chamam o “efeito de túnel”. Uma conspiração mágica o atrai. Pretende ver para além do muro, ir até Marte, activar a pólvora, fazer ouro. Não procura o lucro, nem a glória. Pretende apanhar o Universo em flagrante delito de mistério. No sentido apresentado por Jung, é um arquétipo. Pelos milagres que tenta realizar, pela fatalidade que sobre ele pesa e pelo doloroso fim que a maior parte das vezes o espera, é o filho do herói dos Sagas e das tragédias gregas.

Como o mágico, guarda o segredo e, também como ele, obedece a essa lei de similitude que Frazer4 sublinhou no seu estudo sobre a magia. No início, a invenção é uma imitação do fenómeno natural. A máquina voadora assemelha-se ao pássaro, o autómato ao homem. Ora a semelhança com o objecto, o ser ou o fenómeno de que ele pretende captar os poderes é quase sempre inútil, mesmo nociva para o bom funcionamento do aparelho inventado. Mas, como o mágico, o inventor encontra na similitude um poder, uma volúpia que o empurra para a frente.

A passagem da imitação mágica para a tecnologia científica poderia ser, em muitos casos, relatada com facilidade. Exemplo:

Na origem, o endurecimento superficial do aço foi obtido, no Próximo-Oriente, mergulhando uma lâmina em brasa no corpo de um prisioneiro. Este é um típico processo mágico: trata-se de transferir para a lâmina as qualidades guerreiras do adversário. Esta prática foi divulgada no Ocidente pelos Cruzados, que tinham verificado que de facto o aço de Damasco era mais rijo do que o aço da Europa. Fizeram-se experiências: mergulhou-se o aço em água sobre a qual flutuavam peles de animais. Obteve-se o mesmo resultado. No século xIx, descobriu-se que esses resultados eram devidos ao azote orgânico. No século xx, quando foi aperfeiçoada a liquefação dos gases, aperfeiçoou-se o processo mergulhando o aço em azote líquido a baixa temperatura. Sob esta forma, a “nitruração” faz parte da nossa tecnologia.

Poder-se-ia verificar outro elo entre magia e técnica estudando os “encantamentos” que os antigos alquimistas pronunciavam durante os seus trabalhos. Provavelmente, tratava-se de medir o tempo na obscuridade do laboratório. Os fotógrafos servem-se muitas vezes de verdadeiras canções infantis que recitam enquanto procedem à revelação, e nós ouvimos uma dessas canções no alto da Jungfrau, enquanto se revelava uma placa impressionada pelos raios cósmicos.

Finalmente, existe outro elo, mais forte e curioso, entre magia e técnica: é a simultaneidade na aparição das invenções. A maior parte dos países registam o dia, e mesmo a hora em que uma patente é depositada. Ora, foi várias vezes constatado que inventores que se não conheciam e trabalhavam a grandes distâncias uns dos outros depositavam patentes idênticas e no mesmo instante. Este fenómeno não poderia ser explicado pela vaga ideia de que “as invenções estão no ar” ou que “a invenção aparece assim que se torna necessária”. Se existe ali percepção extra-sensorial, circulação das inteligências debruçadas sobre a mesma investigação, então o facto merecia um profundo estudo estatístico. Talvez esse estudo nos tornasse compreensível este outro facto: que as técnicas mágicas se reconhecem, idênticas, na maior parte das antigas civilizações, através de montanhas e oceanos. . .

*

Vivemos convencidos de que a invenção técnica é um fenómeno contemporâneo. É porque nunca nos demos ao trabalho de consultar os velhos documentos. Não existe um único serviço de investigação científica que vise o passado. Os livros antigos, se são lidos, são-no apenas por raros eruditos de formação puramente literária ou histórica. Portanto aquilo que eles contêm de ciência e de técnica escapa à atenção. Será o desinteresse pelo passado devido a estarmos demasiado ocupados na preparação do futuro? Não é certo. A inteligência francesa parece atrasada segundo os esquemas do século xIx. Os escritores de vanguarda estão sem apetite para a ciência, e uma sociologia que data da máquina a vapor, um humanismo revolucionário nascido com a espingarda Chassepot continuam a mobilizar a atenção. Não se imagina até que ponto a França se condensou em redor do ano de 1880. Estará a indústria mais alerta? Realizou-se em 1955 a primeira conferência atómica mundial, em Genebra. René Alleau foi encarregado da difusão em França dos documentos relativos às aplicações pacíficas da energia nuclear. Os dezasseis volumes que contêm os resultados experimentais obtidos pelos sábios de todos os países constituem a mais importante publicação da história das ciências e das técnicas. Cinco mil indústrias que se hão-de interessar na energia nuclear com maior ou menor brevidade receberam uma carta anunciando essa publicação. Houve vinte e cinco respostas.

Será sem dúvida necessário esperar que as novas gerações alcancem cargos de responsabilidade para que a inteligência francesa recupere uma verdadeira agilidade. É para essas gerações que escrevemos este livro. Se estivéssemos verdadeiramente atraídos pelo futuro, está-lo-íamos também pelo passado, buscaríamos riquezas nos dois sentidos do tempo, com o mesmo apetite.

Nada sabemos ou quase nada do passado. Há tesouros que dormem nas bibliotecas. Preferimos imaginar, nós que afirmamos “amar o homem”, uma história do conhecimento descontínua, e centenas de milhares de anos de ignorância a precederem alguns lustros de saber. A ideia de que tivesse surgido, de súbito, um “século da luz,” ideia que admitimos com uma desconcertante ingenuidade, mergulhou na sombra todas as restantes épocas. Um olhar novo sobre os livros antigos modificaria tudo. Ficaríamos transtornados pelas riquezas que contêm. E teríamos de chegar à conclusão, de acordo com o que dizia Atterbury, contemporâneo de Newton, “que há mais obras antigas perdidas do que conservadas”.

Foi esse olhar novo que o nosso amigo René Alleau, simultaneamente técnico e historiador, pretendeu lançar. Imaginou um sistema e obteve alguns resultados. Até à data, parece não ter obtido qualquer espécie de incitamento para prosseguir na tarefa que ultrapassa as possibilidades de um homem só. Em Dezembro de 1955, perante os engenheiros da Mecânica Automóvel, reunidos sob a presidência de Jean-Henri Labourdette, ele pronunciava, a meu pedido, uma conferência cujo essencial era o seguinte:

“Que resta dos milhares de manuscritos da biblioteca de Alexandria fundada por Ptolemeu Soter, desses manuscritos insubstituíveis e para sempre perdidos, referentes à ciência antiga? Onde estão as cinzas das 200000 obras da biblioteca de Pérgamo? Que foi feito das colecções de Pisístrato em Atenas, e da biblioteca do Templo de Jerusalém, e da do santuário de Phtah em Mênfis? Que tesouros continham os milhares de livros que foram queimados no ano 213 antes de Cristo por ordem do imperador Cheu-Hoang-Ti, com um fim unicamente político? Nestas condições, encontramo-nos perante as obras antigas como perante as ruínas de um templo imenso de que apenas restam algumas pedras. Mas o exame atento desses fragmentos e dessas inscrições permite-nos entrever verdades profundas demais para se atribuírem apenas à intuição dos antigos.

“Em primeiro lugar, ao contrário do que se supõe, os métodos do racionalismo não foram inventados por Descartes. Consultemos os textos: “Aquele que procura a verdade, escreve Descartes, deve tanto quanto possível duvidar de tudo.” É uma frase muito conhecida, e a ideia parece bastante recente. No entanto, se lermos o segundo livro da Metafísica de Aristóteles veremos: “Aquele que procura instruir-se deve em primeiro lugar duvidar, pois a dúvida do espírito conduz a descobrir a verdade”. Aliás, pode constatar-se que Descartes foi buscar a Aristóteles não apenas nesta frase capital, mas também a maior parte das suas famosas regras espirituais, que têm como base o método experimental. Em todo o caso isto prova que Descartes tinha lido Aristóteles, do que se abstêm inúmeras vezes os modernos cartesianos. Estes também poderiam constatar que houve alguém que disse: “Se me engano, chego à conclusão que existo, pois aquele que não existe não se pode enganar, e, precisamente porque me engano, sinto que existo”. Infelizmente, não foi Descartes, mas santo Agostinho.

“Quanto ao cepticismo necessário ao observador, não se pode na verdade levá-lo muito mais longe que Demócrito, o qual só considerava válida a experiência a que pessoalmente assistira e cujos resultados autenticara com o seu próprio selo.

“Isto parece-me muito diferente da ingenuidade de que os Antigos são acusados. Sem dúvida, direis vós, os filósofos da Antiguidade eram dotados de um génio superior no domínio do conhecimento, mas enfim, no plano científico, que sabiam eles realmente?

Ao contrário também do que se pode ler nas actuais obras de divulgação, as teorias atómicas não foram encontradas nem desenvolvidas por Demócrito, Leucipo e Epicuro. De facto, Sextus Empiricus diz-nos que o próprio Demócrito as recebera e obtivera por intermédio de Moschus o Fenício, o qual parece ter afirmado que o átomo era divisível, ponto capital que convém notar.

“Reparai que a teoria mais antiga é também mais exacta do que as de Demócrito e dos atomistas gregos em relação à indivisibilidade dos átomos. Neste caso determinado, parece tratar-se mais de um obscurecimento dos conhecimentos arcaicos, tornados incompreensíveis, do que de descobertas originais. Enfim, no plano cosmológico, e apesar da ausência de telescópios, com espanto verificamos serem muitas vezes os conhecimentos astronómicos tanto mais exactos quanto mais antigos.

No que respeita, por exemplo, à via Láctea, segundo Tales e Anaxímenes, seria constituída por estrelas, formando cada uma delas um mundo com sol e planetas, e esses mundos estavam situados num espaço imenso. Pode verificar-se em Lucrécio a percepção da uniformidade da queda dos corpos no vácuo e a concepção de um espaço infinito ocupado por uma infinidade de mundos. Pitágoras, antes de Newton, criou a lei inversa do quadrado das distâncias. Plutarco, depois de explicar a lei da gravidade, procura a origem da mesma numa atracção recíproca entre todos os corpos e diz que é essa a razão por que a Terra atrai todos os corpos terrestres da mesma maneira que o Sol e a Lua atraem para o seu centro todas as partes que lhes pertencem e as retêm na sua esfera particular.

“Galileu e Newton confessaram claramente aquilo que deviam à ciência antiga. Também Copérnico, no prefácio das suas obras dedicadas ao Papa Paulo III, escreve textualmente que descobriu a ideia do movimento da Terra ao ler os Antigos. Aliás, a confissão desses empréstimos em nada diminui a glória de Copérnico, de Newton e de Galileu, os quais pertencem a essa raça de espíritos superiores cujo desinteresse e generosidade os levam a não se preocuparem com o amor-próprio de autor ou a originalidade, seja a que preço for, que são preconceitos modernos. Mais humilde e mais profundamente autêntica parece a atitude da modista de Maria Antonieta, Mademoiselle Bertin. Ao modernizar habilidosamente um chapéu antigo, exclamou: “Só é novo o que está esquecido”.

“Tanto a história das invenções como a das ciências seria suficiente para mostrar a verdade deste dito. “Dá-se com a maior parte das descobertas, escreve Fournier, o mesmo que com essa fugidia ocasião de que os Antigos haviam feito uma deusa inacessível para aquele que a deixasse escapar uma primeira vez. Se, logo que apareça, a ideia que nos põe no bom caminho, a palavra que pode levar à resolução do problema, o facto significativo não são agarrados com presteza, será uma invenção perdida ou, pelo menos, adiada por várias gerações. Para que ela regresse triunfante, será preciso o acaso de um pensamento novo que faça ressuscitar o anterior, ou então o plagiato feliz de qualquer inventor de segunda categoria; em questões de invenção, a desgraça é para o primeiro, a glória e os proveitos para o segundo”. São considerações desta espécie que justificam o título da minha exposição.

“De facto, pensei que devia ser possível substituir largamente o acaso pelo determinismo, e os riscos dos mecanismos espontâneos da invenção pelas garantias de uma vasta documentação histórica baseada em controlos experimentais. Tendo isto em conta, propus constituir um serviço especializado não na investigação da anterioridade das patentes, a qual de toda a maneira se detém no século xvIII, mas um serviço tecnológico que estudaria simplesmente os processos antigos e que tentaria adaptá-los eventualmente às necessidades da indústria contemporânea.

“Se um serviço desta espécie tivesse existido outrora, teria podido assinalar, por exemplo, o interesse de um pequeno livro passado despercebido, publicado em 1618 e intitulado Histoire naturelle de la fontaine qui brúle près de Grenoble. O autor era um médico de Tournon, Jean Tardin. Se este documento tivesse sido estudado, o gás de iluminação podia ter sido utilizado desde o princípio do século xvII. De facto, Jean Tardin não só estudou o gasómetro natural da nascente, como reproduziu no seu laboratório os fenómenos observados. Meteu hulha num recipiente fechado, submeteu-o a uma alta temperatura e obteve a produção das chamas cuja origem procurava. Ele explicou com clareza que a chama é provocada pelo betume e que basta reduzir esta matéria a gás para que ela produza um “fluido inflamável”. Mas o francês Lebon, anterior ao inglês Winsor, só no ano VII da República[5] é que registou a sua “termo-lâmpada”. Devido a os textos antigos não serem lidos, fora esquecida, portanto praticamente perdida, durante cerca de dois séculos, uma descoberta cujas consequências industriais e comerciais teriam sido consideráveis.

“Da mesma forma, cerca de cem anos antes dos sinais ópticos de Claude Chappe, inventados em 1793, numa carta que Fénelon dirigiu em 26 de Novembro de 1695 a Jean Sobieski, secretário do rei da Polónia, refere-se a recentes experiências não apenas de telegrafia óptica, mas também de telefonia com porta-voz.

“Já em 1636, um autor desconhecido, Schwenter, examina nos seus Délassements physico-mathématzques o princípio do telégrafo eléctrico e de que forma, segundo a sua própria expressão, “dois indivíduos podem comunicar entre si por meio da agulha magnética”. Ora as experiências de Oersted sobre os desvios da agulha de marear datam de 1819. Também neste caso, perto de dois séculos tinham decorrido.

“Vou citar rapidamente algumas invenções pouco conhecidas: a câmara de imersão é referida num manuscrito do Romance de Alexandre do Real Gabinete das Estampas de Berlim; a inscrição tem a data de 1320. Um manuscrito do poema alemão Salman und Morolf, escrito em 1190 (biblioteca de Estugarda), falava no projecto de um barco submarino; a inscrição subsiste, o submersível era em cabedal e capaz de resistir às tempestades. Encontrando-se um dia rodeado de galeras, o inventor, que corria o risco de ser capturado, fez submergir o barco e permaneceu catorze dias no fundo do mar respirando por meio de um tubo flutuante. Num trabalho escrito pelo cavaleiro Ludwig von Hartenstein, por volta de 1510, encontra-se o modelo para um escafandro; tem duas aberturas à altura dos olhos, cobertas por óculos de vidro. Na parte de cima, um comprido tubo com uma torneira na extremidade permite a entrada de ar. À direita e à esquerda do desenho vêem-se os acessórios indispensáveis para facilitar a descida e a vinda à superfície, como seja solas de chumbo e uma vara com escalões.

“Eis ainda outro exemplo de esquecimento: um escritor desconhecido, nascido em 1729 em Montebourg, perto de Coutances (França), publicou um trabalho intitulado Giphantie, anagrama da primeira parte do nome do autor, Tiphaigne de la Roche. Nele se descreve não só a fotografia das imagens, como também a das cores: “A impressão das imagens, escreve o autor, faz-se no primeiro instante em que a tela as recebe. Deve ser retirada imediatamente e colocada num local escuro. Uma hora depois, o reboco está seco e tereis um quadro tanto mais precioso quanto é certo não ser possível a qualquer arte imitar a verdade”. O autor acrescenta: “Em primeiro lugar trata-se de examinar a natureza do corpo viscoso que intercepta e conserva os raios, em segundo lugar as dificuldades para o preparar e usar, em terceiro lugar o jogo da luz e desse corpo enxuto”. Ora é sabido que a descoberta de Daguerre foi anunciada por Arago à Academia das Ciências, um século mais tarde, a 7 de Janeiro de 1839. Aliás, convém notar que as propriedades de certos corpos metálicos susceptíveis de fixar as imagens foram assinaladas num tratado de Fabricius: De rebus metallicis, publicado em 1566.

“Outro exemplo: a vacinação, descrita desde tempos imemoriais por um dos Vedas, o Sactaya Grantham. Este texto foi citado por Moreau de Jouet a 16 de Outubro de 1826, na Academia das Ciências, no seu Relatório sobre a varíola: “Recolhei o fluido das pústulas com a ponta de uma lanceta, introduzi-o no braço misturando o fluido com o sangue e a febre surgirá: dessa forma a doença será bastante benigna e não inspirará preocupações”. Em seguida há uma descrição completa de todos os sintomas.

“Tratar-se-á de anestésicos? A este respeito poderia consultar-se um trabalho de Denis Papin escrito em 1681 e intitulado: Le traité des opérations sans douleur, ou então prosseguir as antigas experiências dos chineses sobre os extractos de cânhamo indiano, ou ainda utilizar o vinho de mandrágora, muito conhecido na Idade Média, completamente esquecido no século xviI e do qual um médico de Tolosa, em 1823, o doutor Auriol, estudou os efeitos. Jamais alguém pensou em verificar os resultados obtidos.

“E a penicilina? Neste caso, podemos citar em primeiro lugar um conhecimento empírico, como seja os pensos de queijo Roquefort utilizados na Idade Média[6], mas a este respeito pode constatar-se um facto ainda mais curioso. Ernest Duchesne, aluno da École de Santé Nlilitaire de Lião, apresentou a 17 de Dezembro de 1897 uma tese intitulada: Contribution à I’étude de la concur rence vitale chez les micro-organismes – antagonisme entre les moisissures et les microbes. Neste trabalho encontram-se experiências relatando a acção do penicillum glaucum sobre as bactérias. Ora esta tese passou despercebida. Insisto sobre este exemplo de evidente esquecimento numa época muito próxima da nossa, em pleno triunfo da bacteriologia.

“Quereis mais exemplos? São inúmeros e seria necessário consagrar uma conferência a cada um deles. Citarei especialmente o oxigénio, cujos efeitos foram estudados no século xv por um alquimista, Eck de Sulsback, como o assinalou Chevreul no Journal des Savants, de Outubro de 1849; aliás, Teofrasto já dizia que a chama era sustentada por um corpo aeriforme e São Clemente de Alexandria era da mesma opinião.

“Não citarei qualquer das extraordinárias antecipações de Roger Bacon, Cyrano de Bergerac e outros, pois é muito fácil justificá-las por um excesso de imaginação. Prefiro manter-me no terreno sólido dos factos controláveis. A propósito do automóvel – e peço desculpa de não poder insistir sobre um assunto que muitos de vós conheceis bem melhor do que eu – farei notar que no século xviI, em Nuremberga, um tal Jean Hauteh fabricava “carros com molas”. Em 1645, foi experimentado um carro deste género na cerca do Templo e creio que a sociedade comercial fundada para explorar esta invenção não se pôde concretizar. Possivelmente encontrou obstáculos comparáveis aos que sofreu a primeira Sociedade dos Transportes Parisienses, cuja iniciativa – convém recordá-lo – se deve a Pascal, que levou um dos seus amigos, o duque de Roannes, a patrociná-la com o seu nome e a sua fortuna.

“Mesmo em relação a descobertas mais importantes do que estas, esquecemos a influência dos dados fornecidos pelos Antigos. Cristóvão Colombo confessou sinceramente tudo o que devia aos sábios, aos filósofos e aos poetas antigos. Geralmente ignora-se que Colombo copiou duas vezes o coro do segundo acto de Nledeia, uma tragédia de Séneca, onde o autor falava de um mundo cuja descoberta estava reservada para os séculos futuros. Essa cópia pode ser examinada no manuscrito das Profecias que se encontra na biblioteca de Sevilha. Colombo também se lembrou da afirmação de Aristóteles, no seu tratado De Caelo, a propósito da esfericidade da Terra.

“Não teria Joubert razão ao dizer que “coisa alguma torna os espíritos tão imprudentes e inúteis como a ignorância do passado e o desprezo pelos livros antigos”? Tal como Rivarol escrevia admiravelmente: “Todo o Estado é um misterioso navio ancorado no céu”, poder-se-ia dizer a propósito do tempo que o navio do futuro está ancorado no céu do passado. Apenas o esquecimento nos ameaça com os piores naufrágios.

“Ele parece atingir o limite máximo com a história inacreditável, se não fosse verdadeira, das minas de ouro na Califórnia. Em Junho de 1848, Marshall descobriu pela primeira vez pedaços de ouro nas margens de um regato perto do qual vigiava a construção de um moinho. Ora Fernando Cortês já por ali passara, procurando, na Califórnia, mexicanos que se diziam portadores de tesouros consideráveis; Cortês transtornou a região inteira, revistou todas as cabanas, sem sequer pensar em apanhar um pouco de areia; durante três séculos, os bandos espanhóis, as missões da Companhia de Jesus calcaram com os pés a areia aurífera, procurando o Eldorado sempre um pouco mais longe. No entanto, em 1737, mais de cem anos antes da descoberta de Marshall, os leitores da Gazeta da Holanda poderiam ter sabido que as minas de ouro e de prata de Sonora eram exploráveis, pois o jornal em questão indicava a sua posição exacta. Além disso, em 1767, podia comprar-se em Paris um livro intitulado Histoire naturelle et civile de la Californie, onde o autor, Buriel, descrevia as minas de ouro e transcrevia testemunhos dos navegadores a propósito dos pedaços de ouro. Ninguém reparou nesse artigo, nem nesse trabalho, nem nesses factos que, um século mais tarde, foram suficientes para provocar a “corrida para o ouro”. Aliás, será que ainda são lidas as descrições dos antigos navegadores árabes?

E, no entanto, ali se encontrariam preciosas indicações para a exploração mineira.

“Na verdade, o esquecimento não perdoa. Demoradas pesquisas, verificações precisas convenceram-me de que a Europa e a França possuem tesouros que praticamente não exploram: os documentos antigos das nossas grandes bibliotecas. Ora toda a técnica industrial deve ser elaborada a partir de três dimensões: a experiência, a ciência e a história. Eliminar ou desprezar esta última é dar provas de orgulho e ingenuidade. É igualmente preferir correr o risco de encontrar aquilo que ainda não existe em vez de procurar racionalmente adaptar o que existe ao que se deseja obter. Antes de investir grandes capitais, um industrial deve estar de posse de todos os elementos tecnológicos de um problema. Ora é evidente que, só por si, a procura da anterioridade das patentes não é, de forma alguma, suficiente para situar uma técnica num dado momento da história. De facto, as indústrias são muito mais antigas do que as ciências, por tanto, devem ser completamente informadas quanto aos seus métodos, a respeito dos quais estão muito menos ao facto do que julgam.

“Os Antigos, servindo-se de técnicas muito simples, obtinham resultados que podemos reproduzir, mas que, a maior parte das vezes, teríamos dificuldades em explicar, apesar do imenso arsenal teórico de que dispomos. Essa simplicidade era o dom por excelência da ciência antiga.

“Pois sim, direis vós, mas e a energia nuclear? A essa objecção responderei com uma citação que nos deveria obrigar a reflectir um pouco. Num livro precioso, quase desconhecido, mesmo de muitos especialistas, publicado há mais de oitenta anos e intitulado Les Atlantes, o autor, que prudentemente se escondeu sob o pseudónimo de Roisel, expôs os resultados de cinquenta e seis anos de pesquisas e trabalhos sobre a ciência antiga. Ao explicar os conhecimentos científicos que atribui aos Atlantas, Roisel escreve estas linhas extraordinárias para a sua época: “A consequência dessa actividade incessante é, de facto, o aparecimento da matéria, desse outro equilíbrio cuja ruptura igualmente determinaria poderosos fenómenos cósmicos. Se, devido a uma causa desconhecida, o nosso sistema solar se desagregasse, os átomos que o constituem, devido à independência adquirida, tornar-se-iam imediatamente activos e brilhariam no espaço com uma luz inefável que anunciaria ao longe uma vasta destruição e a esperança num mundo novo”. Parece-me que este último exemplo é suficiente para fazer compreender toda a profundidade da frase de Nlademoiselle Bertin:

“Só é novo o que está esquecido”.

“Vejamos agora qual o interesse prático que apresenta para a indústria uma sondagem sistemática do passado. Quando digo que nos devemos debruçar com o maior interesse sobre os trabalhos antigos, não se trata de forma alguma de efectuar um trabalho de erudição. Apenas é necessário, em função de um problema concreto posto pela indústria, verificar nos documentos científicos e técnicos antigos se existem factos significativos desprezados, ou então métodos esquecidos, mas dignos de interesse e que digam directamente respeito à questão apresentada.

“As matérias plásticas, cuja invenção nós supomos muito recente, poderiam ter sido descobertas muito antes se se tivesse o cuidado de prosseguir certas experiências do químico Berzélius.

“Quanto à metalurgia, apontarei um facto de certa importância. No início das minhas investigações sobre certos processos químicos dos Antigos, fiquei bastante surpreendido por não poder reproduzir no laboratório experiências metalúrgicas que me pareciam descritas com muita clareza. Procurava, em vão, compreender os motivos de tal insucesso, pois cumprira as indicações e as proporções que eram dadas. Reflectindo melhor, apercebi-me que no entanto cometera um erro. Utilizara fundentes quimicamente puros, enquanto os Antigos se serviam de fundentes impuros, quer dizer, de sais obtidos a partir de produtos naturais e por consequência susceptíveis de provocar acções catalíticas. De facto, a experiência confirmou este ponto de vista. Os especialistas compreenderão as importantes perspectivas que estas observações apresentam. Poderiam fazer-se economias de combustível e de energia se fossem adaptados à metalurgia certos processos antigos que, quase todos, se baseiam sobre a acção de catalisadores. Neste ponto, as minhas experiências foram confirmadas, assim como os trabalhos do doutor Ménétrier sobre a acção catalítica dos oligoelementos e as pesquisas do alemão Mittasch sobre a catálise na química dos Antigos. Por vias diferentes obtiveram-se resultados convergentes. Essa convergência parece provar que a tecnologia chegou à altura de ter em conta a importância fundamental da noção de qualidade e do seu papel na produção de todos os fenómenos quantitativos susceptíveis de ser observados.

“Os Antigos conheciam igualmente processos metalúrgicos que parecem esquecidos, como, por exemplo, temperar o cobre em certos banhos orgânicos. Desta forma, obtinham instrumentos extraordinariamente duros e penetrantes. Não eram menos hábeis em derreter esse metal, mesmo no estado de óxido. Darei apenas um exemplo. Um dos meus amigos, especialista da prospecção mineira, encontrava-se a noroeste de Agadès, em pleno Sara. Ali descobriu minerais de cobre que apresentavam indícios de fusão e crisóis que ainda continham metal. Mas não se tratava de um sulfureto, e sim de um óxido, quer dizer, de um corpo que, para a indústria actual, apresenta problemas de redução que não é possível resolver com uma simples fogueira de nómada.

“No domínio das ligas de metais, que é um dos mais importantes da indústria actual, não escaparam aos Antigos muitos factos significativos. Não só conheciam os processos de produzir directamente, a partir de minerais complexos, ligas com singulares propriedades, processos a que a indústria soviética dedica, neste momento, grande interesse, como ainda utilizavam ligas raras, como seja o âmbar amarelo, que nós jamais tivemos a curiosidade de estudar seriamente, apesar de conhecermos as receitas de fabricação.

“insistirei apenas sobre as perspectivas do domínio farmacêutico e médico, quase inexplorado e propício a tantas investigações. Apontarei simplesmente a importância do tratamento das queimaduras, questão tanto mais grave quanto é certo que os acidentes de automóvel e de avião obrigam a pensar nela, praticamente, a cada minuto. Foi na Idade Média, época incessantemente devastada por incêndios, que se descobriram os melhores remédios contra as queimaduras, receitas essas completamente esquecidas. A este respeito, convém saber que certos produtos da antiga farmacopeia não só acalmavam as dores, como permitiam evitar as cicatrizes e regenerar as células.

“Quanto aos corantes e aos vernizes, seria supérfluo recordar a excelente qualidade das matérias elaboradas segundo os processos dos Antigos. As admiráveis cores utilizadas pelos pintores da Idade Média não se perderam, como geralmente se supõe; há em França pelo menos um manuscrito que explica a sua composição. Jamais alguém pensou em adaptar e verificar esses processos. Ora os pintores modernos, se daqui a um século ainda fossem vivos, não reconheceriam os seus quadros, pois as cores utilizadas actualmente não duram. Aliás, os amarelos de Van Gogh já perderam, segundo parece, a extraordinária luminosidade que os caracterizava.

“Tratar-se-á de minas? A este respeito, falarei apenas de uma relação entre a investigação médica e a exploração mineira.

As aplicações terapêuticas das plantas, a que se chama fitoterapia, muito conhecida dos Antigos, de facto está ligada a uma ciência nova, a biogeoquímica. Esta disciplina propõe-se revelar as anomalias positivas relativas aos indícios de metais nas plantas e que indicam a proximidade de camadas de minérios. Desta forma é possível determinar particulares afinidades de certas plantas com certos metais e, por consequência, esses dados podem ser utilizados tanto no plano da exploração mineira como no domínio da acção terapêutica. Isso é mais um exemplo característico de um facto que me parece ser o mais importante da história actual das técnicas, como seja a convergência das diversas disciplinas científicas, o que implica a existência de sínteses constantes.

“Citemos ainda algumas outras tendências de pesquisas e aplicações industriais: os adubos, vasto domínio em que os antigos químicos obtiveram resultados geralmente ignorados. Penso especialmente naquilo a que eles chamavam “a essência da fecundidade,” produto composto por certos sais misturados a estrumes digeridos ou destilados.

“A vidraria antiga é um assunto ainda pouco conhecido: os Romanos já utilizavam os sobrados em vidro; aliás, o estudo dos antigos processos de vidraceiros poderia proporcionar um precioso auxílio para a solução de problemas ultramodernos, como a dispersão das terras raras e do paládio no vidro, o que permitiria obter tubos fluorescentes de luz negra.

“Quanto à indústria têxtil, apesar do triunfo dos plásticos, ou talvez justamente devido a esse triunfo, deveria orientar-se para a produção, para o comércio de luxo, de tecidos de muito boa qualidade, que poderiam ser tintos segundo as normas antigas, ou então tentar o fabrico daquele pano raro que era conhecido sob o nome de Pilema. Tratava-se de tecidos de linho ou lã preparados com certos ácidos e que resistiam ao gume do ferro e à acção do fogo. Aliás, o processo foi conhecido dos Gauleses, que o utilizavam no fabrico de couraças.

“A indústria do mobiliário, devido ao preço ainda muito elevado dos revestimentos plásticos, também poderia encontrar soluções vantajosas adaptando processos antigos que aumentavam consideravelmente, devido a uma espécie de imersão, a resistência da madeira a diversos agentes físicos e químicos.

As empresas de trabalhos públicos teriam interesse em prosseguir o estudo de cimentos especiais cujas proporções são indicadas nos tratados dos séculos xv e xvI e que apresentam características muito superiores às do cimento moderno.

“A indústria soviética utilizou recentemente, na fabricação utensílios cortantes, uma cerâmica mais dura que os metais. Esse endurecimento poderia igualmente ser estudado à luz dos antigos processos de imersão.

“Enfim, sem poder insistir sobre este problema, indicarei um resumo de investigações físicas que poderiam ter consequências profundas. Refiro-me a trabalhos relativos à energia magnética terrestre. Neste sentido, há observações muito antigas que jamais foram seriamente verificadas, apesar do seu incontestável interesse.

“Quer se tratasse, finalmente, das experiências do passado ou das possibilidades do futuro, creio que o realismo profundo ensina a desviar-nos do presente. Esta afirmação pode parecer paradoxal, mas basta reflectir para compreender que o presente é apenas um ponto de contacto entre a linha do passado e a do futuro. Firmemente apoiados sobre a experiência ancestral, devemos olhar para a frente e não para baixo, sem levar exageradamente em conta o breve intervalo de desequilíbrio durante o qual atravessamos o espaço e a duração. Prova-o o movimento da marcha e a lucidez do nosso olhar deve manter sempre igual a balança entre aquilo que foi e o que vai ser”.

1 Alusão ao célebre Salão de 1863, que recusou todas as obras “avançadas,” entre as quais o citado quadro de Manet. (N. da T.)

2 Walter Dornberger: L Árnte secrète de Pennemunde, Arthaud, Paris

3 Millikan: Électron.
2 7’echnique Mondiale, Paris, Abril de 1957.
3 Edwin Armstrong: the Inventor as Hero, artigo do “Harper’s MagazineH.

4 Frazer: O Ramo de Ouro.

5 Ou seja em 1800. (N. da T.)

6 Sabe-se hoje que este queijo francês contém colónias de penicillum (cogumelo microscópio). (N. da T.)

Num artigo muito estranho, mas que, segundo parece reflectia a opinião de muitos intelectuais franceses, Jean-Paul Sartre recusava pura e simplesmente à bomba H o direito de existência. A existência, na teoria daquele filósofo, precede a essência. Mas surge um fenómeno cuja essência não lhe convém: e ele recusa a existência. Singular contradição! “A bomba H, escrevia Jean-Paul Sartre, é contra a história”. De que forma um facto de civilização poderia ser “contra a história”? O que é a história? Para Sartre é o movimento que deve necessariamente conduzir as multidões ao poder. O que é a bomba H? Uma reserva de poder manejável por alguns homens. Uma sociedade muito limitada de sábios, técnicos, políticos, que pode decidir da sorte da humanidade. Aspira a ser dirigente complica ao máximo o sistema que deseja destruir para o chamar a si sem reacções de defesa, da mesma forma que a aranha envolve a presa. Os homens ditos “de poder,” possessores e governantes, não passam de intermediários numa época que é igualmente intermediária.

“- Ao passo que as armas soberanas se multiplicam, a guerra muda de aspecto. Trava-se um combate sem interrupção, sob a forma de guerrilhas, de revoluções palacianas, de emboscadas, de maquis, de artigos, de livros, de discursos. A guerra revolucionária substitui a guerra simples. Esta mudança de formas de guerra corresponde a uma mudança de objectivos da humanidade. As guerras eram feitas para “o haver”. A guerra revolucionária é feita para “o ser”.

Outrora a humanidade dilacerava-se pela divisão da terra e para nela viver o melhor possível. Para que alguns dividam entre si os bens terrenos e deles gozem. Agora, através deste incessante combate que se assemelha à dança dos insectos que apalpam mutuamente as suas antenas, tudo se passa como se a humanidade procurasse a união, o ajuntamento, a unidade para modificar a Terra. Ao desejo de gozar substitui-se o propósito de realizar. Os homens de ciência, que também aperfeiçoaram as armas psicológicas, não são estranhos a esta profunda alteração. A guerra revolucionária corresponde ao aparecimento de um espírito novo: o espírito operário. O espírito dos oQerários da Terra. É neste sentido que a história é um movimento messiânico das massas. Esse movimento coincide com a concentração do saber. Tal é a fase que atravessamos, na aventura de uma hominização crescente, de uma contínua assunção do espírito.

*

Detenhamo-nos nos factos aparentes. Achar-nos-emos transportados à época das sociedades secretas. Quando atingirmos os factos mais importantes, e portanto menos visíveis, chegaremos à conclusão de que penetramos igualmente na época dos Adeptos. Os Adeptos irradiavam a sua sabedoria sobre um conjunto de sociedades organizadas com o fim de manter secretas as técnicas. Não é impossível imaginar um mundo muito próximo construído à base deste modelo. Tendo em conta, porém, que a história não se repete. Ou antes, quando passa por um período idêntico, é num grau mais elevado da espiral.

Historicamente, a conservação das técnicas foi um dos fins das sociedades secretas. Os sacerdotes egípcios guardavam zelosamente as leis da geometria plana. Recentes pesquisas revelaram a existência, em Bagdade, de uma sociedade que conserva o segredo da pilha eléctrica e o monopólio da galvanoplastia há dois mil anos. Na Idade Média, em França, na Alemanha, na Espanha, formaram-se corporações de técnicos. Observai a história da Alquimia. Vede o segredo da coloração do vidro em vermelho devido à introdução do ouro no momento da fusão. Vede o segredo das misturas incendiárias o óleo de linhaça com a gelatina antecessor do napalm. Nem todos os segredos da Idade Média foram encontrados: o do vidro mineral flexível, o do processo simples para obter a luz fria, etc. Hoje assistimos igualmente ao aparecimento de grupos de técnicos que não divulgam os segredos de fabricação, quer se trate de técnicas artesanais, como a fabricação das harmónicas, dos berlindes de vidro, ou de técnicas industriais, como a produção de gasolina sintética. Nas grandes fábricas atómicas americanas, os físicos usam distintivos indicando o seu grau de saber e de responsabilidade. Só é permitido dirigir a palavra ao portador do mesmo distintivo. Existem clubes e as amizades e os amores formam-se no interior de cada categoria. Desta forma constituem-se círculos fechados semelhantes às corporações da Idade Média, quer se trate de aviação a jacto, de ciclotrões ou de electrónica. Em 1956, trinta e cinco estudantes chineses, saídos do Instituto de Tecnologia de Massachusetts, pediram para regressar a casa. Não tinham trabalhado em problemas militares, no entanto pensou-se que sabiam demais. O regresso foi-lhes proibido. O governo chinês, muito desejoso de recuperar esses jovens esclarecidos, propôs, em troca, aviadores americanos detidos sob a acusação de espionagem.

A vigilância das técnicas e segredos científicos não pode ser confiada à polícia. Ou antes, actualmente, os especialistas da segurança são obrigados a estudar as ciências e as técnicas que têm como missão vigiar. Ensina-se a esses especialistas a trabalhar nos laboratórios nucleares, e aos físicos nucleares a assegurarem, eles próprios, a sua segurança. Desta forma vemos surgir uma casta mais poderosa do que os governos e as polícias políticas.

Enfim, o quadro ficará completo se pensarmos nos agrupamentos de técnicos dispostos a trabalhar para os países que
melhor pagam. São os novos mercenários. São “as espadas que se alugam” da nossa civilização, em que o condottière usa blusão branco. A África do Sul, a Argentina, a Índia são os seus melhores terrenos de acção. Aí constroem verdadeiros impérios.

*

Voltemos aos factos menos visíveis, mas mais importantes. Neles veremos o regresso à época dos Adeptos. “Não há no Universo coisa alguma que possa “resistir ao ardor convergente de um número suficientemente grande de inteligências agrupadas e organizadas”, dizia, confidencialmente, Teilhard de Chardin a Georges Magloire.

Há mais de cinquenta anos, John Buchan, que representou, em Inglaterra, um papel importante como político, escrevia um romance que era ao mesmo tempo uma mensagem dirigida a certos espíritos esclarecidos. Nesse romance intitulado, e não sem motivo, A Central de Energia, o herói encontra um senhor distinto e discreto que lhe diz, num tom de conversa de golfo, frases bastante desconcertantes:

“- Evidentemente, disse eu, há inúmeras vigas-mestras na civilização, e se as destruíssemos seria o seu desmoronamento. Mas elas aguentam-se bem.

“- Não muito… Pense que a fragilidade da máquina se torna cada vez maior. À medida que a vida se complica, o mecanismo torna-se mais inextricável e por consequência mais vulnerável. As vossas supostas sanções multiplicam-se tão desmedidamente que cada uma delas é precária. Nos séculos de obscurantismo existia uma força única: o medo de Deus e da sua Igreja. Actualmente há uma infinidade de pequenas divindades, igualmente delicadas e frágeis e cuja única força é devida ao nosso tácito consentimento em não as discutir.

“- Esquece-se de uma coisa, repliquei, o facto de que os homens estão realmente de acordo em manter a máquina em andamento. Era isso a que eu há pouco chamava a “boa vontade cávilizada”.

“- Pôs o dedo sobre o único ponto importante. A civilização é uma conspiração. Para que serviria a vossa polícia se cada criminoso encontrasse um asilo do outro lado do mar, ou os seus tribunais, se houvesse outros que não reconhecessem as suas decisões? A vida moderna é o pacto não formulado dos possessores para manter as suas pretensões. E esse pacto será eficaz até ao dia em que se fizer outro que os despoje.

“- Não discutiremos o indiscutível, disse eu. Mas eu supunha que o interesse geral levava os espíritos mais esclarecidos a fazer parte daquilo a que chama uma conspiração.

“- Não sei, disse ele lentamente. São de facto os espíritos mais esclarecidos que aderem a esse pacto? Examine a conduta do governo. Bem vistas as coisas, somos dirigidos por amadores e por pessoas de segunda categoria. Os métodos das nossas administrações arrastariam para a falência qualquer empresa particular. Os métodos do Parlamento – desculpe-me – fariam vergonha a qualquer assembleia de accionistas. Os nossos dirigentes simulam adquirir a sabedoria por meio da experiência, mas estão longe do que seria capaz de fazer um homem de negócios, e quanto à sabedoria, quando a adquirem, não têm coragem de a pôr em prática. Qual é o atractivo que vê, para um homem de génio, em vender o cérebro aos nossos miseráveis governantes?

“E no entanto o saber é a única força – agora e sempre. Um pequeno dispositivo mecânico afundará esquadras completas. Uma nova combinação química poderá alterar todas as leis de guerra. E o mesmo se passa no comércio. Bastarão algumas pequeníssimas alterações para reduzir a Grã-Bretanha ao nível da República do Equador, ou para dar à China a chave da riqueza mundial. E no entanto não desejamos imaginar que estas alterações sejam possíveis. Tomamos os nossos castelos de cartas pelas muralhas do Universo.

“jamais tive o dom da palavra, mas admiro-o nos outros. Um discurso neste género produz um encantamento nocivo, uma espécie de embreaguez, que quase nos envergonha. Sentia-me interessado e meio seduzido.

“- mas, vejamos, disse eu, o primeiro cuidado do inventor é tornar pública a sua invenção. Como deseja honras e glória, pretende receber dinheiro por essa invenção. Ela passa a fazer parte integrante da ciência mundial e por consequência todo o resto se modifica. Foi o que se passou com a electricidade. Chamais à nossa civilização uma máquina, mas ela é bem mais dócil do que uma máquina. Possui o poder de adaptação de um organismo vivo.

“- Aquilo que diz seria verdade se a nova ciência se tornasse realmente propriedade de todos. Mas acha que é possível? Leio de vez em quando numa ou noutra revista que um sábio eminente fez uma descoberta. Participa-a à Academia das Ciências, aparecem a esse respeito artigos de fundo, e a fotografia do sábio ornamenta os jornais. O perigo não vem desse homem. Ele não passa de uma roda da máquina, um aderente ao pacto. É com os homens que se mantêm afastados dele que é preciso contar, os artistas em descobrimentos que só utilizarão a sua ciência na altura em que puderem produzir o máximo de efeito. Acredite-me, os grandes espíritos estão fora daquilo a que se chama civilização.

“Pareceu hesitar um instante e continuou:

“- Há-de ouvir várias pessoas dizer que os submarinos já suprimiram o couraçado, e que a conquista do ar aboliu o domínio dos mares. Pelo menos os pessimistas afirmam-no. Mas acha que a ciência disse a sua última palavra apenas com os nossos vulgares submarinos ou os nossos frágeis aviões?

“- Não duvido que se venham a aperfeiçoar, disse, mas os processos de defesa hão-de progredir paralelamente.

“Ele meneou a cabeça.

“- É pouco provável. Por enquanto a ciência que permite realizar os grandes engenhos de destruição é muito maior do que as possibilidades defensivas. É necessário não ver apenas as invenções de pessoas de segunda categoria, ansiosas por conquistar riqueza e glória. A verdadeira ciência, a ciência temível, ainda continua secreta. Mas, acredite-me, meu caro, ela existe.

“Calou-se um momento e vi o contorno ténue do.fumo do seu charuto perfilar-se na escuridão. Depois citou-me vários exemplos, calmamente como se receasse ir longe demais.

“Foram esses exemplos que me despertaram. Eram de vária espécie: uma grande catástrofe, uma ruptura súbita entre dois povos, uma doença que destrói uma colheita importante, uma guerra, uma epidemia. Não os enumerarei. De momento não o acreditei, e hoje ainda menos o acredito. Mas eram terrivelmente surpreendentes, expostos nessa voz calma, naquela sala sem luz, numa escura noite de Junho. Se dizia a verdade, aqueles flagelos não eram obra da natureza ou do acaso, mas sim de uma arte. As inteligências anónimas de que ele falava, trabalhando secretamente, revelavam de vez em quando a sua força por meio de qualquer manifestação catastrófica. Recusava-me a acreditá-lo, mas, enquanto ele desenvolvia o seu exemplo, apresentando a evolução do jogo com estranha nitidez, não faz o mínimo protesto.

“No final, recuperei a palavra.

“- O que me acaba de descrever é a superanarquia. E no entanto não serve para nada. Qual o móbil a que obedeceriam
essas inteligências?

Ele riu-se.

“- Como quer que eu o saiba? Sou apenas um modesto investigador, e as minhas investigações proporcionam-me curiosos documentos. Mas não seria capaz de precisar os motivos. Vejo apenas que existem enormes inteligências anti-sociais. Admitamos que elas suspeitam da Máquina. A menos que se trate de idealistas que pretendem criar um mundo novo, ou simplesmente de artistas, desejosos apenas de alcançarem a verdade. Se tivesse de formular uma hipótese, diria que foram necessárias estas duas últimas categorias de indivíduos para provocar resultados, pois os segundos encontram a ciência e os primeiros desejam empregá-la.

“Então recordei um facto. Estava nas montanhas do Tirol, num prado cheio de sol. Num prado coberto de flores e ao norte de um curso de água saltitante, almoçava após uma manhã passada a escalar as brancas falésias. Encontrara no caminho um alemão, de pequena estatura e com aspecto de professor, que me deu a honra de partilhar as sandes comigo. Falava rapidamente um inglês incorrecto e era um nietzshiano, um impetuoso revoltado contra a ordem estabelecida. “A desgraça, exclamou, é que aqueles que sabem são indolentes demais para tentar reformas. Virá o dia em que o saber e a vontade se hão-de unir, e então o mundo progredirá.”

“- Está a mostrar-nos um quadro pavoroso, disse eu. Mas se essas inteligências anti-sociais são assim tão poderosas, por que motivo produzem tão pouco? Um vulgar agente da polícia, com a Máquina atrás dele, fica em posição de fazer troça da maior parte das tentativas anarquistas.

“- Sem dúvida, respondeu, e a civilização triunfará até que os seus adversários saibam por ela própria qual a verdadeira importância da Máquina. O pacto deve durar até que haja um antipacto. Veja os processos dessa tolice a que actualmente se chama niilismo ou anarquia. Do fundo de uma mansarda parisiense, alguns vagos iletrados lançaram um desafio ao mundo, e ao fim de oito dias ei-los na cadeia. Em Genebra, uma dúzia de “intelectuais” russos exaltados combinam derrubar os Romanos, e ei-los cercados pela polícia da Europa. Todos os governos e as suas pouco inteligentes forças policiais dão-se mutuamente as mãos e, pronto, acabam-se os conspiradores. Pois a civilização sabe utilizar as energias de que dispõe, ao passo que as infinitas possibilidades dos não-oficiais se desfazem em fumo. A civilização triunfa porque é uma aliança mundial; os seus inimigos fracassam porque não passam de uma panelinha. Mas imagine…

” Calou-se novamente e ergueu-se do cadeirão. Aproximou-se de um interruptor e inundou a sala de luz. Ofuscado, levantei o olhar para o meu hóspede e vi-o sorrir-me amavelmente com toda a cortesia de um velho “gentleman”.

“- Gostaria de ouvir o final das suas profecias, declarei. Dizia. . .

“- Dizia o seguinte: Imagine a anarquia instruída pela civilização e tornada internacional. Oh, não falo desses bandos de imbecis que se intitulam com grande estrépito a União Internacional dos Trabalhadores, e outras parvoíces no género. Quero dizer que a verdadeira substância pensante do Mundo viria então a ser internacionalizada. Suponha que os elos do cordão civilizado sofram a pressão de outros elos constituindo uma cadeia muito mais poderosa. A Terra está repleta de energias incoerentes e de inteligência desorganizada. Já alguma vez pensou no caso da China? Ela encerra milhares de cérebros pensantes asfixiados por actividades ilusórias. Não têm nem directrizes, nem energia condutora, tanto assim que o resultado dos seus esforços é igual a zero, e que o mundo inteiro se ri da China. A Europa concede-lhe de tempos a tempos um empréstimo de alguns milhões, e ela, em paga, reclama cinicamente as orações da cristandade. Mas, dizia eu, suponha…

“- Isso é uma perspectiva atroz, exclamei, e, graças a Deus, não a creio realizável. Destruir para destruir, forma um ideal demasiado estéril para que possa tentar um novo Napoleão, e sem ele nada podereis fazer.

“- Não seria uma destruição completa, replicou ele suavemente. Chamemos iconoclastia a essa abolição das fórmulas que sempre ligaram uma multidão de idealistas. E não será necessário um Napoleão para a realizar. É apenas preciso uma direcção, a qual pode vir de homens muito menos dotados do que Napoleão. Numa palavra, bastaria uma Central de Energia para inaugurar a era dos milagres”.

*

Se pensarmos que Buchan escrevia estas linhas por volta de 1910, e se pensarmos na confusão mundial a partir dessa época e nos movimentos que alastram actualmente através da China, da África, das Índias, perguntaremos a nós próprios se não entraram de facto em acção uma ou várias “Centrais de Energia”. Esta visão só aos observadores superficiais parecerá romanesca, quer dizer, aos historiadores vítimas da vertigem da “explicação pelos factos”, a qual não passa, afinal, de uma forma de escolher entre os factos. Faremos a descrição, noutro capítulo do nosso trabalho, de uma central de energia que se malogrou, mas só depois de mergulhar o mundo no fogo e no sangue: a central fascista. Não é possível duvidar da existência de uma Central de Energia comunista, da sua prodigiosa eficácia. “Nada no Universo poderia resistir ao impulso convergente de um número suficientemente grande de inteligências agrupadas e organizadas”. Repito esta citação: a sua verdade explode aqui.

Nós fazemos, a respeito das sociedades secretas, uma ideia primária. Vemos de forma banal os factos estranhos. Para compreender o mundo que surge ser-nos-ia necessário corrigir, refrescar, revigorar a ideia de sociedade secreta por meio de um estudo mais profundo do passado e pela descoberta de um ângulo do qual fosse visível o movimento da história de que fazemos parte.

É possível, até é provável, que a sociedade secreta seja a futura forma de governo no mundo novo do espírito operário. Observai rapidamente a evolução dos factos. As monarquias pretendiam ter um poder de origem sobrenatural. O rei, os fidalgos, os ministros, os responsáveis empenham-se em sair da normalidade, em causar espanto com os seus vestuários, as suas residências, as suas maneiras. Tudo fazem para se tornar notados. Ostentam o maior fausto possível. E estão presentes em todas as ocasiões. Extraordinariamente abordáveis e infinitamente diferentes. “Segui sempre, todos vós, o meu penacho branco!”[1]

E, por vezes, no Verão, Henrique IV toma banho nu no Sena, em pleno coração de Paris. Luís XIV é um sol, mas qualquer pessoa pode entrar no palácio e assistir às suas refeições. Constantemente expostos a todos os olhares, semideuses carregados de ouro e de plumas, sempre a chamar as atenções, simultaneamente “à parte” e públicos. Após a Revolução, o poder impregna-se de teorias abstractas e o governo oculta-se. Os responsáveis empenham-se em passar por pessoas “como as outras”, e ao mesmo tempo põem-se a certa distância. Tanto no plano humano como no plano dos factos torna-se difícil definir com exactidão o governo. As democracias modernas prestam-se a mil interpretações “esotéricas”. Vêem-se pensadores assegurar que a América obedece unicamente a alguns chefes de indústria, a Inglaterra aos banqueiros da “City,” a França aos franco-mações, etc. Com os governos procedentes da guerra revolucionária o poder oculta-se quase completamente. As testemunhas da revolução chinesa, da guerra da Indochina, da guerra da Argélia, os especialistas do mundo soviético sentem-se impressionados com a entrada do poder nos mistérios da humanidade, com o segredo em que mergulham as responsabilidades, com a impossibilidade de saber “quem é que” e “quem decide que”. Entra em acção uma verdadeira criptocracia. Aqui não temos tempo para analisar esse fenómeno, mas haveria um trabalho a escrever sobre o nascimento daquilo a que chamamos criptocracia. Num romance de Jean Lartéguy, que participou da revolução de Azerbaijão, da guerra da Palestina e da guerra da Coreia, um capitão francês é feito prisioneiro após a derrota de Dien-Bien-Phu:

“Glatigny voltou a encontrar-se num abrigo em forma de túnel, longo e estreito. Estava sentado no chão, com as costas nuas apoiadas à terra da parede. Na sua frente, um nha-quê acocorado sobre os calcanhares fumava um tabaco infecto enrolado em velho papel de jornal.

“O nha-quê está com a cabeça nua. Usa um fato de fazenda caqui sem insígnias. Não tem alparcatas e os dedos dos seus pés espalham-se voluptuosamente sobre a lama tépida do abrigo. Entre duas baforadas pronunciou algumas palavras, e um bô-doi, de movimentos ágeis e ondulantes de boy inclinou-se para Glatigny:

“- O chefe batalhão pergunta a você onde está comandante francês que comandava ponto de apoio.

“Glatigny tem um reflexo de oficial de tradição; não pode acreditar que aquele nha-quê acocorado, que fuma tabaco ordinário, comandasse, como ele, um batalhão, tivesse a mesma categoria e as mesmas responsabilidades. . . É então um dos responsáveis da divisão 308, a melhor, a mais bem preparada de todo o Exército Popular; foi aquele camponês saído do seu arrozal que o bateu, a ele, Glatigny, descendente de uma das grandes dinastias militares do Ocidente…”

Paul Mousset, jornalista célebre, correspondente de guerra na Indochina e na Argélia, dizia-me: “Sempre tive a impressão de que o boy, o pequeno lojista talvez fossem os grandes responsáveis… O mundo moderno disfarça os seus chefes, como os insectos que parecem ramos de árvores, ou folhas…”

Após a queda de Staline, os árbitros políticos não conseguem ficar de acordo quanto à identidade do verdadeiro governante da U.R.S.S. No momento em que esses árbitros nos asseguram finalmente que é Béria, vem a saber-se que este acaba de ser executado. Ninguém poderia designar exactamente os verdadeiros chefes de um país que controla um bilião de homens e metade das terras habitáveis do globo…

A ameaça de guerra revela a verdadeira forma dos governos.

Em Junho de 1955, a América previra uma “operação alerta” durante a qual o governo abandonava Washington para ir trabalhar “em qualquer parte nos Estados Unidos”. No caso de esse refúgio ser destruído, estava previsto um processo que permitiria a esse governo transferir os seus poderes para as mãos de um governo fantasma (a expressão textual é “governo de sombras”) já designado. Esse governo inclui senadores, deputados e peritos cujos nomes não podem ser divulgados. E assim é oficialmente anunciada a passagem para a criptocracia num dos países mais poderosos do planeta.

Em caso de guerra, veríamos sem dúvida os governos aparentes serem substituídos por esses “governos de sombras”, possivelmente instalados nas cavernas da Virgínia, para os Estados Unidos, numa estação flutuante do Árctico, para a U.R.S.S.

E, a partir desse momento, seria crime de traição desvendar a identidade dos responsáveis. Munidos de cérebros electrónicos, para reduzir ao mínimo o pessoal administrativo, as sociedades secretas organizariam o gigantesco combate dos dois blocos da humanidade. Nem sequer está excluída a hipótese de que esses governos possam residir fora do nosso mundo, em satélites artificiais que girariam ao redor da Terra.

Não estamos a fazer ficção filosófica nem ficção histórica. Fazemos realismo fantástico. Somos cépticos sobre muitos pontos em que espíritos que passam por “razoáveis” o são muito menos do que nós. Não procuramos de forma alguma chamar a atenção para qualquer inútil ocultismo, para qualquer interpretação mágico-delirante dos factos. Não propomos qualquer religião. Apenas acreditamos na inteligência. Pensamos que, em determinado nível, a própria inteligência é uma sociedade secreta. Achamos que o seu poder é ilimitado quando chega a desenvolver-se por inteiro, como um carvalho em boa terra, em vez de definhar como num vaso.

É em função das perspectivas que acabamos de descobrir, e de outras ainda, mais estranhas, que em breve se manifestarão sob os nossos olhos, que convém portanto reconsiderar a ideia de sociedade secreta. Apenas podemos, tanto aqui como noutros capítulos, esboçar o trabalho de pesquisas e de reflexões. Sabemos muito bem que a nossa visão das coisas se arrisca a parecer louca: é porque dizemos, rápida e brutalmente o que temos a dizer, da mesma forma que se bate à porta de um dorminhoco quando o tempo urge.

1 Célebre “grito de guerra” do rei de França Henrique IV. (N. da T.)

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