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Alta Magia

Espíritos são capazes de falar?

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Eduardo Berlim[1]

“E disse Deus: Haja luz; e houve luz.”
Gênesis 1:3 (A.C.F.)

Perceber a manifestação criadora do Universo como vinda através da fala não é uma exclusividade das religiões abraâmicas. O som possui capacidade de manifestação criadora em si mesmo e não nos é estranho que seja ele responsável pela lei divina que a tudo cria. Não nos importa se é o som de Om que escreve as Leis do Dharma, o “Haja luz” que inicia a separação da luz e das trevas iniciando a primeira lei ou a música dos Ainundalë de Tolkien escrevendo o universo inteiro através de música: o que nos importa é a percepção de que o Verbo cria, pois antes de tudo é ele quem está presente.

Se a fala possui, por si mesma, esta natureza criadora surge uma dúvida natural sobre os espíritos com os quais trabalhamos em grimórios, magia cerimonial, tradicional, natural etc. Afinal, se eu evoco um anjo para que ele resolva o meu problema ele o faz através da capacidade criadora da fala ou através da capacidade organizacional dos mecanismos através da inteligência?

Para poder trazer alguma resposta a questão, percebi a necessidade de encontrar o significado e a origem do verbo ‘falar’. Se por um lado o dicionário Oxford nos define este verbo como “discorrer, conversar, contar” e “exprimir por meio das palavras”, a origem latina nos dá outra dica interessante sobre a fala ao apontar sua origem vindo de fabulo. Fabular é uma capacidade humana de impossível restrição, pois nossa história neste mundo só desperta quando nos vemos capazes de contá-las.

Confabulamos e contamos fabulosas narrativas sobre criações imaginárias que tomam forma em planos acima do nosso. Nossa imagem e semelhança de Deus parece espelhada na medida em que Ele cria de cima para baixo e nós de baixo para cima: a criação divina chega até na manifestação como potência criadora enquanto a nossa sobe para o astral, para um plano imaginário e coletivo onde podemos romper os nossos próprios limites.

O livre arbítrio parece residir muito mais na capacidade criativa do que nos limites físicos da manifestação. Afinal, eu não posso decidir sair voando por aí e simplesmente flutuar na manifestação, mas se há qualquer coisa que eu não puder imaginar e criar em minha mente isso se dará por meus próprios limites momentâneos. O mundo físico que tanto se torna maçante pode ser abarrotado de seres vivos e completamente reais criador pelo irreal imaginário daquele que é feito à imagem e semelhança do Criador. A fala carrega, no ato de contar histórias, a potência geradora da arte.

Deus fez-me este mortal que escreve este breve texto e fez-te este mortal que o está lendo agora. Ele fez com que todos os materiais necessários para que alguma máquina confeccionasse meu notebook fossem criados em uma extensa tabela periódica que é criação nossa: Deus toma a ação que nos permite criar em sequência e recriamos a partir de nós mesmos ou a partir de tudo o que existe no mundo ao nosso redor. “Eu crio enquanto falo”. E enquanto falamos criamos bilionários que se vestem de morcego para combater o crime, semi-deuses que realizam doze lendários trabalhos como penitência, histórias de um rei de extrema sabedoria que domou demônios para construir seu templo e até loucuras sobre anões, maçãs envenenadas, espelhos que falam e beijos que despertam da morte.

A fala humana é indissociável da capacidade criativa e é por isso que existem tantas referências ao ar que sai da boca de um ser. O Prana e o Ruach são formas de dizer que o sopro, o ar da fala, é quem manifesta o enredo do que está sendo criado. É este ar, atrelado à capacidade racional em muitas linhagens, que paira sobre as nossas emoções que é capaz de criar arte – e a arte é a maior manifestação de criação que um ser humano é capaz de realizar. Curiosamente, em Gênesis encontramos uma pista de que Deus realiza o mesmo ato.

A terra era sem forma e vazia; e havia trevas sobre a face do abismo, mas o Espírito de Deus pairava sobre a face das águas.

Gênesis 1:2 (A.C.F.)

Deus olha para uma folha em branco, completamente vazia e sem vida, e são nas trevas do abismo que seu Espírito (Ruach) paira sobre aquilo que é emoção. Os dois primeiros processos que dão impulso para a criação partem do Espírito de Deus em Atziluth, o Mundo da Emanação, para as águas de Briah, o Mundo da Criação: é o criativo que forma e dá ação. Imagens postas em ação são a base da imaginação ativa e criadora para toda realização na manifestação (e não é que aquele jogo de tabuleiro realmente acertou no nome?).

A partir daí que a criatividade de Deus é capaz de aprofundar-se no abismo de si mesmo e buscar a inspiração que gera o seu Reino. Tal qual nosso Criador, é em imagem e semelhança que medito nas minhas próprias profundezas e busco as trevas da tinta para rascunhar as primeiras versões deste pensamento que agora vos escrevo.

Talvez o meu pensamento até aqui esteja causando mais confusão do que explicando de fato e por isso creio que o entendimento da ideia metafórica da fala necessite de ter certa explicação. Falar é expressar uma ideia por intermédio do ar que paira sobre as águas em uma óbvia alusão à Luz divina que se manifesta no Mundo das Emanações através de Ruach pairando sobre o Mundo da Criação.

Perceba que para criar-se algo ele deve ser emanado primeiro e em nenhum ponto abro uma um debate sobre a capacidade humana de emanar algo a ser manifesto, mas considerando a presença do nosso Espírito em Tiferet, centro do Mundo da Criação, entendo que o livre arbítrio reside justamente nesta capacidade de criar que nos é concedida não na carne, mas no espírito. Deus emana para que possamos criar, tais qual cocriadores da realidade manifesta: Deus nos dá árvores para que possamos construir cadeiras, dando novos passos no Mundo da Manifestação.

Somos capazes de criar por conta do mundo em que surgimos e somos capazes de formar para que algo se manifeste e este dom nos é concedido pela capacidade de cooptar o Prana, um Ruach da emanação, e transformá-lo em uma ideia. Essa ideia se forma e enfim se manifesta dentro das leis do Mundo da Manifestação, mas a nossa criação surge de forma diferente da divina, pois seguimos uma ordem contrária até que possamos retorná-la à manifestação.

Primeiro formamos através do pensamento algo com influência de algo que já estava manifesto por Deus e então subimos mais um plano de existência e criamos. Nessa criação o nosso Espírito nos toca e nos devolve o caminho de descida: voltamos ao Mundo da Formação e finalmente para o Mundo da Manifestação. Um exemplo concreto seria pensarmos na nossa capacidade de nos sentar para descansar, observarmos um toco de madeira que pode ser usado de banco, formarmos uma ideia a partir daí, criarmos a cadeira, formarmos a manifestação da cadeira e finalmente a manifestamos: uma inspiração na manifestação forma algo em nossas mentes, criamos algo através desta influência, planejamos o que é necessário para que isso se manifeste e enfim o manifestamos através dos elementos que já existem ao nosso redor.

E se essa capacidade de criar é totalmente vinculada ao livre arbítrio criador, retomo a pergunta que me fez pensar sobre este texto: os espíritos com os quais trabalhamos realmente possuem a capacidade de criar algo ou podem eles apenas formar e reorganizar o mundo através de sua inteligência?

Se partimos da ideia de que estes espíritos surgem no Mundo da Formação, o mundo do ar, podemos compreender que lhes falta o toque do elemento água, a emoção que é válvula criadora por ter em si o elemento criativo natural. Nenhum bom autor é capaz de trabalhar sem o uso da emoção, tal qual nosso Criador moveu seu Espírito por cima das águas no momento da criação. Para haver Luz (ao menos no nosso plano de existência), deve haver a água: esta é a primeira lei que Deus manifesta para a nossa existência segundo a Bíblia e isso parece encontrar eco em outras tradições. Todos os seres são emanados, mas nem todos são capazes de criar e isso significa dizer que nem todos possuem livre arbítrio.

Espíritos certamente são capazes de se comunicar, exercer linguagem por diversas vias e nos passar mensagens, mas a ausência de matéria em sua formação os impede de gerar a vibração necessária para a fala, pois esta é concedida aos humanos por sua natureza criativa. Afinal, se somos o motivo de toda a criação porque nascemos rebaixados como os mais inferiores dos seres?

Eu poderia discorrer sobre isso aqui, mas creio que daria um texto inteiro apenas sobre esse assunto. Quem sabe então para uma próxima…


Eduardo Berlim é músico, tarólogo e estudante de hermetismo com vasta curiosidade. Tem apetite por uma série de correntes diferentes de magia e se considera um eterno principiante. Assumidamente fanboy dos projetos da Daemon e das matérias do Morte Súbita inc.

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