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PSICO

A adicção como ferramenta de autodescoberta

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Lo Uchôa Baraldi[1]

A adicção é um fenômeno humano, é possível se viciar em alimentos, substâncias das mais variadas, jogos, sexo, e até mesmo relacionamentos ou pessoas; e, no geral, se caracteriza como um ciclo vicioso retroalimentativo que foge ao controle do indivíduo. Embora neste artigo utilizemo-nos de drogas para uma exemplificação mais relacionável à vivência ocidental contemporânea, todas as técnicas e facetas de análise presentes neste texto podem ser usadas para escapar a quaisquer vícios.

Quando um indivíduo se encontra preso a uma rotina narcótica, independente da natureza do químico; é imprescindível analisar-se atentamente ao ciclo para poder-se quebrá-lo. Como que horário(s) do dia se costuma utilizar, e em que momentos o desejo (craving) lhe aparece. Indivíduos mais profundamente adictos, sejam de natureza física ou psicológica, o farão do raiar do dia até o cair da noite, mas nem sempre este é o caso. Tenho muitos amigos que fumam um cigarro por dia, no final de expediente, e se dizem profundamente adictos; outros só o utilizarão antes de dormir; tudo isso dependerá da rotina, substância, dosagem, e do próprio indivíduo, acima de tudo. Tudo isso deve ser averiguado com extrema cautela e sem julgamento de si.

O julgamento num momento como este, seja vindo da própria autocobrança do indivíduo, ou daquela proferida por outros alheios a ele, só levará a uma maior dependência na substância, que acabará por se tornar algum tipo de conforto. Acredito que uma sociedade mais educada quanto a natureza da adicção e da psicofarmacologia, traria consigo um menor julgamento dos usuários, que, sem tanta culpa, não teriam o quê tanto enterrar em usos compulsivos e copiosos de substâncias.

Quanto a adicção psicológica em oposição a física: a primeira se dá quando a pessoa sente extrema necessidade da substância para passar por um, ou vários, momentos específicos de seu cotidiano; a mente clama pela substância, pela rotina. A segunda se dá quando o indivíduo sente efeitos indesejados em seu corpo que só podem ser aplacados com o uso do narcótico. Em muitos casos, especialmente nos mais severos, há uma combinação das duas, mas nem sempre.

Podemos utilizar como exemplo de adicção física os usuários de opióides que começam a ter calafrios, dores musculares extremas, e febres, que só podem ser interrompidos com o uso da substância; mas também pode ser aquela dor de cabeça e desmotivação que vêm quando não se toma o café preto de todos os dias. Me recordo de quando, em uma reunião, um dos frequentadores disse que chegou ao ponto de fumar crack chorando, pois a mente não queria usar, mas o corpo clamava pela substância.

Já quanto a adicção psicológica, um bom exemplo seria a ansiedade e desconforto geral experienciados por usuários regulares, quando não fumam maconha naquele horário, podendo resultar em insônias, já que a mente fica rodando em torno da erva e do prazer/relaxamento associado a seu uso. Outro bom exemplo pode se mostrar na inabilidade de lidar com uma eventual situação estressante sem um benzodiazepínico, como o rivotril. Em geral é caracterizada pelos cravings, que são desejos extremos e claros na mente pela substância, que tendem a levar a racionalizações para se permitir o uso. No geral, culturas de droga tendem a se basear neste lado da dependência para facilitar e agilizar esses processos mentais.

Em suma, quando se deseja profundamente a substância sem necessariamente sentir efeitos físicos imediatos pela falta dela, como comumente ocorre com substâncias mais leves, trata-se de uma adicção psicológica; e quando seu corpo começa a falhar sem a substância, muitas vezes de maneira não atrelada a rotina ou uma situação específica, trata-se de uma adicção física. Agora, pensando na coexistência de ambas, nos deparamos com situações em que uma pessoa pode ter sido introduzida a uma substância contra sua vontade, especialmente em casos de abuso psiquiátrico, porém não conseguem cessar este uso sem efeitos extremamente negativos, que podem por vezes levar à morte. De certo modo, é irrelevante o quanto sua dependência é psicológica ou física, o importante é quebrar esta rotina; mas uma análise da origem da necessidade de uso pode levar a uma rotina de desintoxicação mais branda, e menos radical ao corpo e a mente; e uma compreensão melhor de si, num cenário mais amplo.
Além disso, a utilização do narcótico pode ser danosa tanto por um uso abusivo, quanto pelo uso crônico, por períodos prolongados. Ambos sempre estão acompanhados de um ciclo de feedback positivo, onde cada elemento da rotina alimenta-se do outro para criar justamente um ciclo vicioso. Usuários de estimulantes, por exemplo, tendem a sentir extrema disforia quando a droga está baixando no corpo, o que pode levar a uma re-dosagem compulsiva, sempre na busca de manter o pico da substância no sangue, o que caracteriza um uso abusivo, mesmo que não frequente. Usuários de cannabis por outro lado, podem não fumar muito, mas serem incapazes de funcionar no dia-a-dia sem os efeitos, mesmo que brandos no sangue, levando a icônica frase de Snoop Dogg: “smoke weed everyday”.

O importante, e a parte mais difícil, para quebrar uma adicção é quebrar esta rotina, este ciclo vicioso. A mais comum racionalização para se continuar o uso costuma vir na forma de uma postergação da interrupção para outro momento do ciclo, com afirmações como “semana vêm, vou parar de beber, vou aproveitar enquanto posso e encher a cara”, junto a outras frases análogas que constituem o estereótipo do viciado.

Para se quebrar este ciclo é importante pegar a rotina de surpresa, nunca anuncie aos outros, e, até certo ponto, nem a si mesmo, quando irá parar. Quebrar esta roda em qualquer uma das etapas analisadas, levará a uma maior facilidade em interromper as próximas, quebrando o feedback positivo. O primeiro dia é sempre o mais difícil, mas muitas vezes revelará a pessoa que ela pode sim funcionar e existir, sem o auxílio da substância.

Por vezes, especialmente no caso de dependências ao álcool e a benzodiazepínicos, onde uma interrupção repentina pode sim levar a convulsões, psicose e morte; será crucial diminuir aos poucos, ao longo de semanas ou meses. Comece usando um pouquinho menos do que deseja em cada dosagem, uma dose imperceptivelmente menor é o ideal, qualquer redução é uma vitória. Faça isso com parcimônia e respeito a si, este método é chamado de tapering e por vezes tende a ser bem menos agressivo ao corpo, mente e espírito do que uma interrupção repentina, chamada de cold turkey. Porém, é comum não se ter força de Vontade para se reduzir aos poucos, mas há aquela força repentina de interromper agressivamente. Ambos são vitórias e métodos válidos, mas o segundo pode ser um pouco mais pesado nos primeiros dias.

Ilustrando essas ideias, meu avô fumava 2 maços de cigarros por dia até que um dia, viu um indivíduo tossindo sangue enquanto fumava. E isso lhe deu algum tipo de epifania, e mudou sua relação com o fumo no ato. Ele imediatamente jogou seu cigarro no chão, seu maço no lixo, e disse em voz alta: “nunca mais”; e de fato nunca mais fumou. Isso me fez refletir sobre uma frase dita certa vez por meu psicanalista: A mudança só ocorrerá, quando o medo de se continuar na mesma rotina for maior que o medo da mudança. Com isso, caso se deseje quebrar uma dependência, independente do nível, ou do narcótico; isso será uma morte simbólica, às vezes maior, às vezes menor; mas uma para qual o indivíduo deverá estar pronto e disposto a passar.
Tendo em vista que todos os processos de mudança são difíceis, julgo extremamente importante o apoio emocional e psicológico nestes momentos de quebra. Recomendo fortemente o acompanhamento psicanalítico e psiquiátrico, mas apenas caso o usuário julgue estes profissionais aptos e capacitados, dado que infelizmente muitos não o são, e trarão mais julgamentos do que suporte.

A vontade de mudar deve vir de si e de ninguém mais, ou o indivíduo, cedo ou tarde, irá recair. Embora o fato disto sempre ser uma possibilidade, deve ser um problema reservado para o futuro. Pense “só desta vez não vou usar, quem sabe mais tarde?” e se verá rapidamente postergando este “mais tarde” por muito tempo, quem sabe para sempre? Mas só se este assim desejar.

Por fim, gostaria de deixar claro que não sou necessariamente a favor de uma mente limpa de dependências químicas, nem sei o quanto isso é possível. Os alimentos que comemos têm uma mudança em como nos sentimos, uma dieta pobre pode levar a fraquezas físicas e mentais, da mesma maneira que uma dieta rica demais acarreta seus próprios problemas. Além disso, dependências são inerentes ao Ser humano, sejam elas a substâncias, rotinas, pessoas, jogos, ou além, e nos ajudam a nos centrar e aterrar a vida, e/ou prover um descanso merecido dela. A adicção se instaura quando há um desbalanço na alquimia interna do Ser, que leva a algum tipo de dano retroalimentativo na vivência, junto a esta rotina; o buraco é sempre mais embaixo.

Ainda, normalmente aqueles que defendem a crucialidade de não se usar ‘nenhum tipo de psicotrópico’ são os mesmos que ficam rabugentos sem seu café e/ou cigarro pelas manhãs; ou até uma barra de chocolate ao anoitecer.

Todas as palavras neste artigo se direcionam a situações onde o próprio indivíduo vê um problema em seus hábitos e deseja uma mudança. Eu acredito piamente que na maior parte dos casos, o uso de uma substância, mesmo que regularmente, não acarretará necessariamente a uma adicção debilitante, e que o preconceito em cima dos ditos ‘drogados’ vêm sempre junto a uma boa dose de hipocrisia e projeção; levando sempre a um dano maior para a sociedade e o indivíduo. A culpa e a vergonha não levam ninguém a lugar algum se não o fundo do poço. E a maior parte de nós, se não todos, somos usuários regulares de algum tipo de hábito que nos altera a mente, seja ele mais sutil ou radical em seus efeitos.


Lo Uchôa é historiadora pela PUC-SP, psiconauta, neo-xama caoista e não-binárie transfeminina. Ela é pesquisadora com ênfase nas práticas de quimiognose e queer magick. Siga ela no Instagram em @psychonaut.lolo

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