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Diálogo II (A Vida Suprassensorial)

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JACOB BOEHME

Traduzido e editado por Anônimo

O Discípulo, ansioso por receber instruções mais completas sobre como ele poderia alcançar a vida suprassensorial e como, tendo encontrado tudo, poderia se tornar um rei sobre todas as obras de Deus, voltou novamente ao seu Mestre na manhã seguinte, tendo passado a noite em vigília e em oração. De forma que estivesse disposto a receber e apreender as instruções que lhe seriam dadas por uma irradiação divina em sua mente. E o Discípulo, após um breve momento de silêncio, curvou-se e assim se expressou:

DISCÍPULO

Ó meu Mestre, meu Mestre! Eu esforcei-me, agora, para recolher minha alma na presença de Deus e lançar-me no Abismo onde nenhuma criatura pode habitar; para que eu possa ouvir a voz do meu Senhor falando em mim e ser iniciado nesta vida elevada da qual ouvi ontem coisas tão grandiosas e surpreendentes. Contudo, infelizmente, não ouço nem vejo como deveria. Ainda há uma muro de separação em mim que repele os sons celestiais em seu percurso e obstrui a entrada daquela luz pela qual somente objetos divinos podem ser descobertos. Enquanto isto não for extirpado, tenho poucas esperanças, ou até mesmo nenhuma, de alcançar as gloriosas conquistas às quais foram por ti incentivadas, ou de entrar naquele lugar onde nenhuma criatura habita, que é por ti chamado de Nada e Tudo. Portanto, seja assaz amável a ponto de informar-me o que é exigido de minha parte para que este muro que obstrui seja quebrado ou removido.

MESTRE

Este muro é a vontade criatural em ti, e ele só pode ser destruído pela Graça da renúncia de si mesmo, que é a entrada no verdadeiro seguimento de Cristo e totalmente removido somente por uma perfeita conformidade com a Vontade Divina.

DISCÍPULO

Mas como conseguirei quebrar essa vontade criatural que em mim habita e que está em inimizade com a Vontade Divina? Ou o que devo fazer para seguir a Cristo neste caminho tão difícil e não desfalecer em um contínuo curso de renúncia ou entrega à Vontade de Deus?

MESTRE

Isto não pode ser feito por ti mesmo, mas sim pela luz e graça de Deus recebidas em tua alma, que, se não oferecerdes resistência, dissolverão a escuridão que em ti habita e dissolverão tua antiga vontade, que opera na escuridão e corrupção da Natureza, e a trarão para a obediência a Cristo, removendo assim o muro do eu criatural que se situa entre Deus e ti.

DISCÍPULO

Eu sei que não posso por mim mesmo operá-lo. Porém, apreciaria aprender como devo receber esta Luz e Graça Divinas em mim, que fará isso por mim, se eu não a obstruir. O que, então, é de mim exigido para admitir esse Destruidor do muro e promover a consecução dos objetivos de tal admissão?

MESTRE

No início, nada mais é exigido de ti além de não resistirdes à essa graça, que em ti se manifesta. Durante todo o processo, nada mais é necessário além de ser obediente e passivo à Luz de Deus brilhando através da escuridão de teu ser criatural, que não a compreende, pois não alcança maior altura do que a Luz da Natureza.

DISCÍPULO

Porém não devo eu alcançar, se eu puder, tanto a Luz de Deus quanto a Luz da Natureza exterior, e usá-las para ordenar minha vida com sabedoria e prudência?

MESTRE

É correto fazê-lo. E é de fato um tesouro acima de todos os tesouros ter a Luz de Deus e da Natureza operando em seus domínios, e ter ambos os olhos do Tempo e da Eternidade abertos ao mesmo tempo, sem interferirem um com o outro.

DISCÍPULO

Isso traz-me grande satisfação em ouvir, porquanto estive muito preocupado com isso por certo tempo. No entanto, é dificuldade operar tal feito sem haver esta interferência. Portanto, gostaria, se me é permitido, conhecer os limites de um e de outro, e como tanto a Luz Divina quanto a Luz Natural podem agir e operar em seus respectivos domínios para a Manifestação dos Mistérios de Deus e da Natureza, e para a condução da minha vida exterior e interior.

MESTRE

Para que cada um deles possa ser preservado distintamente em seus respectivos domínios, sem confundir os Entes Celestiais e os Entes Terrenos, ou romper a Corrente de Ouro da Sabedoria, será necessário, meu filho, em primeiro lugar, aguardar e atender à Luz Sobrenatural e Divina, sendo esta Luz superior designada para governar o dia, surgindo no verdadeiro Oriente, que é o Centro do Paraíso, e a grande Luz irrompendo como se viesse das trevas dentro de ti, por meio de uma coluna de fogo e nuvens trovejantes, e assim também refletindo na Luz inferior da Natureza uma espécie de imagem de si mesma, pela qual somente a Luz inferior pode ser mantida em sua devida subordinação. O que está abaixo sendo subordinado ao que está acima, e o que está fora ao que está dentro. Assim, não haverá perigo de interferência, mas tudo seguirá corretamente, e tudo permanecerá em seu devido domínio.

DISCÍPULO

Portanto, se a Razão ou a Luz da Natureza não forem santificadas em minha alma e iluminadas por essa Luz superior, como se viessem do Leste central do Mundo de Luz, pelo Sol Eterno e Intelectual, percebo que sempre haverá alguma confusão, e nunca conseguirei gerenciar corretamente o que se refere ao Tempo ou à Eternidade. Contudo sempre estarei perdido, ou romperei os elos da Corrente da Sabedoria.

MESTRE

É exatamente como disseste. Tudo é confusão se só tens a fraca Luz da Natureza ou a Razão não santificada e não regenerada para guiar-te, e se somente o Olho do Tempo estiver em ti aberto, o qual não pode penetrar além dos seus próprios limites. Portanto, busca a Fonte da Luz esperando, nas profundezas de tua alma, pelo surgimento do Sol da Justiça, pelo qual a Luz da Natureza em ti, juntamente com as suas propriedades, brilhará sete vezes mais intensamente do que o usual. Pois a Luz da Natureza receberá o selo, a imagem e a impressão do Suprassensorial e Sobrenatural, de modo que a vida sensorial e racional será trazida à mais perfeita ordem e harmonia.

DISCÍPULO

Mas como devo esperar pelo surgimento desse glorioso Sol, e como devo buscar, no Centro, esta Fonte de Luz que possa iluminar-me por completo e harmonizar perfeitamente minhas características? Eu estou na Natureza, como disse antes, e por qual caminho devo passar através da Natureza e da sua Luz, para que eu possa adentrar no Sobrenatural e Suprassensorial, de onde essa verdadeira Luz, que é a Luz das Mentes, surge; e isso sem destruir minha natureza ou extinguir sua Luz, a qual é minha razão?

MESTRE

Cessa apenas a tua própria atividade, fixando firmemente teu olhar em um único Ponto, e com uma forte determinação confiando na Graça prometida de Deus em Cristo, para tirar-te da tua Escuridão e conduzir-te à sua maravilhosa Luz. Para isso, reúne todos os teus pensamentos e, pela fé, penetra no Centro, segurando firmemente a Palavra de Deus, que é infalível e que te chamou. Sê então obediente a este chamado e silencia diante do Senhor, permanecendo sozinho com ele em tua cela mais íntima e oculta, com tua mente centralmente unida em si mesma e atendendo à sua vontade na paciência da esperança. Assim, tua Luz surgirá como a Manhã, e depois que o rubor tiver passado o próprio Sol, que aguardas, se erguerá para ti, e sob suas asas curativas te alegrarás grandemente, ascendendo e descendo em seus raios brilhantes e salutares. Eis que este é o verdadeiro Fundamento Suprassensorial da Vida.

DISCÍPULO

De fato, acredito que seja assim. Doravante não destruirá isso a Natureza? A Luz da Natureza em mim não será extinta por esta Luz maior? Ou, não perecerá também a vida exterior, juntamente com o corpo terreno que carrego?

MESTRE

De forma alguma. É verdade que a natureza má será destruída por ela, mas com esta destruição você não será prejudicado, contudo será grandemente beneficiado. O Elo Eterno da Natureza permanece o mesmo, assim também as suas características. Portanto, a Natureza apenas é elevada e melhorada através disso, e a Luz dela, ou a razão humana, ao ser mantida dentro de seus devidos limites e regulada por uma Luz superior, apenas torna-se útil.

DISCÍPULO

Rogo, então, que me informes como devo utilizar esta Luz Inferior; como mantê-la dentro de seus limites adequados; e de que maneira a Luz Superior a regula e a enobrece.

MESTRE

Saiba, então, meu amado filho que, se quiseres manter a Luz da Natureza dentro de seus próprios limites e usá-la em justa subordinação à Luz de Deus, deves considerar que existem, em tua alma, duas Vontades: uma Vontade inferior, que te impulsiona em direção às coisas externas e inferiores; e uma Vontade superior, que te atrai em direção às coisas internas e superiores. Estas duas Vontades estão agora colocadas juntas, como que de costas uma para a outra, em uma contradição direta; no entanto, no princípio não era assim. Essa contraposição da alma, relacionada à estas duas Vontades, nada mais é do que o efeito da Queda; pois, antes disso, estavam colocadas uma sob a outra, ou seja, a Vontade superior acima, como o Senhor, e a Vontade inferior abaixo, como o sujeito. De fato, assim deveria permanecer. Deve-se também considerar que, correspondendo a estas duas Vontades, existem dois Olhos na alma, pelos quais elas são direcionadas separadamente, já que esses Olhos não estão unidos em uma única visão, mas olham em direções completamente opostas, ao mesmo tempo. Estão da mesma forma colocados um contra o outro, sem um meio comum para uni-los. Portanto, enquanto esta visão dupla persistir, é impossível haver concordância na determinação desta ou daquela Vontade. Isso é muito evidente. Demostra a necessidade de que esta enfermidade, decorrente da desunião dos raios da visão seja, por algum meio, sanada e corrigida, para um verdadeiro discernimento na mente. Esses dois olhos, portanto, devem ser unidos por uma concentração de raios, pois nada é mais perigoso do que a mente permanecer assim na Dualidade e não buscar alcançar a Unidade. Percebes, eu sei, que tens duas Vontades dentro de ti, uma contra a outra, a superior e a inferior, e que sempre tens dois Olhos dentro de ti, um contra o outro, dos quais um Olho pode ser chamado o Olho Direito e o outro o Olho Esquerdo. Certamente percebes também que é de acordo com o Olho Direito que a roda da Vontade superior se move; e que é de acordo com o movimento do Olho Esquerdo que a roda contrária na parte inferior é girada.

DISCÍPULO

Percebo isso, Senhor, como sendo muito verdadeiro. Tal coisa causa em mim uma luta contínua e cria uma ansiedade maior do que consigo expressar. Não estou desinformado da doença de minha própria alma, que tão claramente declaraste-me. Ai de mim! Percebo e lamento esta enfermidade, que perturba tão miseravelmente minha visão. Sinto tais movimentos irregulares e convulsivos que puxam-me para cá e para lá. O Espírito não vê como a Carne vê, nem a Carne pode ver como vê o Espírito. Portanto, o Espírito deseja contra a Carne; e a Carne deseja contra o Espírito em mim. Esta tem sido a minha pesada sina. E como será isso sanado? Oh, como posso alcançar a Unidade da Vontade e adentrar na Unidade da Visão?

MESTRE

Detenha sua atenção ao que agora digo. O Olho Direito olha adiante, em ti, para a Eternidade. O Olho Esquerdo olha para trás, em ti, para o Tempo. Se agora permitires ficar sempre olhando para a Natureza e para as coisas do Tempo, será impossível alcançares a Unidade que desejas. Lembra-te disso e esteja vigilante. Não permitas que tua mente se entregue nem se encha com aquilo que está fora de ti; tampouco olhes para trás em si mesmo; porém abandona-te e olha para frente em direção a Cristo. Não permitas que teu Olho Esquerdo te engane, criando continuamente uma representação após outra e despertando assim um desejo fervoroso na autossuficiência. Mas que teu olho direito comande este esquerdo e o atraia para ti. Sim, é melhor arrancá-lo completamente e lançá-lo para longe, do que permitir que se manifeste sem restrições na Natureza e siga seus próprios desejos. No entanto, isso não é necessário, uma vez que ambos os olhos podem tornar-se muito úteis se ordenados corretamente, e tanto a Luz Divina quanto a Luz Natural podem coexistir na alma e se servir mutuamente. Contudo nunca alcançarás a Unidade de Visão ou a Uniformidade de Vontade, a não ser que entres completamente na Vontade de nosso Salvador Cristo e, assim, tragas o Olho do Tempo para o Olho da Eternidade e, então, desças por meio deles unidos através da Luz de Deus para a Luz da Natureza.

DISCÍPULO

Então, se eu puder entrar na Vontade de meu Senhor e permanecer nela, estarei seguro, e poderei tanto alcançar a Luz de Deus no Espírito da minha alma e ver com o Olho de Deus, ou seja, o Olho da Eternidade no Fundamento Eterno da minha Vontade. Posso, também, ao mesmo tempo, desfrutar da Luz deste Mundo, não rebaixando, mas adornando a Luz da Natureza, contemplar tanto com o Olho da Eternidade coisas Eternas quanto com o Olho da Natureza coisas Naturais, e em ambas contemplar as Maravilhas de Deus, desta forma sustentando a vida do meu corpo ou veículo exterior.

MESTRE

Está corretíssimo. Compreendeste bem, e agora desejas entrar na Vontade de Deus e permanecer nela como no Fundamento Suprassensível de Luz e Vida, onde poderás, na Sua Luz, contemplar tanto o Tempo quanto a Eternidade e trazer todas as maravilhas criadas por Deus para o exterior para a vida interior, regozijando-te eternamente neles para a glória de Cristo. Com a partição da tua Vontade Criatural sendo derrubada e o Olho do teu Espírito simplificado em e através do Olho de Deus, manifestando-se no Centro da tua Vida. Que assim seja agora, pois esta é a Vontade de Deus.

DISCÍPULO

Mas é muito difícil estar sempre olhando para frente em direção à Eternidade e, consequentemente, alcançar o olho único e a simplicidade da Visão Divina. A entrada de uma alma despida na Vontade de Deus, alheia de todas as imaginações e desejos, esta forte divisão por ti mencionada rompida, é certamente terrível e chocante para a natureza humana em seu estado atual. Oh, o que devo fazer para alcançar aquilo que tanto desejo?

MESTRE

Meu filho, não deixes que o Olho da Natureza, juntamente com a Vontade das Maravilhas, se afaste daquele Olho que se volta para a Liberdade Divina e para a Luz Eterna da Santa Majestade. Mas permite que se aproxime de ti, por meio da união com aquele Olho interno celestial, das maravilhas que são realizadas externamente e manifestadas na Natureza visível. Pois, enquanto estiveres no mundo e tiveres um emprego honesto, certamente estarás, pela Ordem da Providência, obrigado a trabalhar nele e a concluir o trabalho outorgado, de acordo com tua melhor capacidade, sem resmungar nem um pouco; procurando e manifestando para a glória de Deus as Maravilhas da Natureza e da Arte. Pois seja qual for a Natureza, tudo é Obra e Arte de Deus. E seja qual for a Arte, ainda é a Obra de Deus e sua Arte, mais do que qualquer arte ou astúcia humana. E tudo, tanto na Arte quanto na Natureza, serve apenas para manifestar abundantemente as maravilhosas Obras de Deus, para que Ele seja glorificado em tudo e em todos. Sim, tudo serve, se souberes usá-los corretamente, apenas para te recolheres mais para dentro e atrair teu Espírito para aquela Luz majestosa onde os padrões e formas originais das coisas visíveis podem ser vistos. Portanto, mantém-te no Centro e não se afaste da Presença de Deus revelada dentro de tua Alma; que o mundo e o diabo façam barulho e confusão para lhe arrastar para fora, não te importes com eles; não podem te prejudicar. É permitido ao Olho da tua Razão procurar alimento, e às tuas mãos, por meio de seu trabalho, obter alimento para o corpo terreno. Mas então, esse Olho não deve, com seu desejo, entrar na comida preparada, o que seria cobiça; mas deve, em resignação, simplesmente apresentá-la diante do Olho de Deus em teu Espírito, e então deves buscar colocá-la bem perto desse mesmo Olho, sem deixá-la ir embora. Aprende bem esta lição. Embora as mãos ou a cabeça estejam trabalhando, teu Coração deve descansar em Deus. Deus é Espírito; habita no Espírito; trabalha no Espírito; ora no Espírito; e faz todas as coisas no Espírito; pois lembra-te de que também és um Espírito e, assim, criado à imagem de Deus. Portanto, vê que não atrais em teu desejo a Matéria, mas tanto quanto possível abstrai-te de toda Matéria; e assim, estando no Centro, apresenta-te como um Espírito despido diante de Deus, com simplicidade e pureza; e certifica-te de que teu Espírito não atraia nada além de Espírito. Tu ainda serás grandemente tentado a atrair Matéria e a acumular aquilo que o Mundo chama de substância tendo, assim, ter algo visível em que confiar. Contudo de maneira alguma consintas com o Tentador, nem cedas aos desejos da tua Carne contra o Espírito. Pois ao fazê-lo, com certeza obscurecerás a Luz Divina em ti, teu Espírito se fixará na escura Raiz Cobiçosa e, à partir da Fonte ardente de tua alma, irromperá em orgulho e ira. Tua Vontade ficará acorrentada à Terrenalidade e afundará através da Angústia, na Escuridão e Materialidade. Nunca serás capaz de alcançar a Liberdade tranquila ou de permanecer diante da Majestade de Deus. Tudo será escuridão para ti, tanto quanto Matéria for atraída pelo Desejo de tua Vontade. Ela escurecerá a Majestade de Deus para ti e fechará o Olho que vê, escondendo de ti a luz de seu amado semblante. É isso que a Serpente deseja fazer, mas em vão, a menos que permitas que tua Imaginação, sob sua sugestão, receba a Matéria sedutora; caso contrário, ele nunca poderá entrar. Eis então, se desejas ver a Luz de Deus em tua Alma, ser divinamente iluminado e conduzido, este é o caminho curto que deves tomar: – não permitir que o Olho de teu Espírito entre na Matéria ou se encha com qualquer Coisa, quer no Céu ou na Terra, mas deixar que ele entre por uma fé nua na Luz da Majestade. Receber, por puro amor, a Luz de Deus e atrair o Poder Divino para si mesmo, vestindo o Corpo Divino e crescendo nele até a plena maturidade da Humanidade de Cristo.

DISCÍPULO

Como eu disse antes, repito novamente, isso é muito difícil. Concebo muito bem que meu Espírito deve estar livre da contaminação da Matéria e completamente vazio, para que possa admitir em si o Espírito de Deus. Além disso, esse Espírito não entrará, a menos que a Vontade entre no Nada e se entregue na nudez da fé e na pureza do amor, para ser conduzida por ele, alimentando-se magicamente da Palavra de Deus e se revestindo, assim, de uma Substancialidade Divina. Mas, ai de mim, como é difícil para a Vontade afundar no nada, atrair nada, imaginar nada.

MESTRE

Deixe que seja assim. Isso não valeria a pena para ti, e tudo aquilo que podes fazer?

DISCÍPULO

Confesso que sim, não tenho escolha senão admitir isso.

MESTRE

Contudo talvez não seja tão difícil quanto parece à primeira vista; apenas faça a tentativa e sejas sincero. O que é exigido de ti, senão permanecer parado e ver a salvação do teu Deus? E poderias desejar algo menos? Onde está a dificuldade nisso? Não tens nada com que se preocupar, nada a desejar nesta vida, nada a imaginar ou atrair. Apenas precisas lançar tuas preocupações sobre Deus, que cuida de ti, e ficar a Seu dispor, de acordo com Sua vontade e prazer, como se não tivesses vontade alguma dentro de teu ser. Pois Ele sabe o que é melhor e, se confiares nele, certamente fará melhor por ti do que se fosses deixado à tua própria escolha.

DISCÍPULO

Acredito firmemente nisso.

MESTRE

Se acreditas, então vai e age em conformidade. Tudo está na Vontade, como lhe mostrei. Quando a Vontade imagina algo, então ela entra nesse algo, e esse algo a envolve, de forma que ela não pode ter Luz, mas deve habitar na Escuridão, a menos que retorne desse algo ao Nada. Mas quando a Vontade não imagina nem se apressa atrás de nada, então ela entra no Nada, onde recebe a Vontade de Deus em si mesma, e assim habita na Luz e realiza todas as suas obras nela.

DISCÍPULO

Agora estou convencido de que a principal causa da cegueira espiritual de alguém é permitir que sua Vontade entre em Algo, ou naquilo que ele mesmo tenha realizado, seja qual for a sua natureza, boa ou má, e colocar seu coração ou afetos no trabalho de sua própria mão ou mente, e que, quando o corpo terreno perecer, então a Alma deve ficar aprisionada naquela mesma coisa que terá recebido e admitido. Se a Luz de Deus não estiver nela, privada da Luz deste Mundo, não pode deixar de ser encontrada em uma prisão escura.

MESTRE

Esta é uma Porta de Conhecimento muito preciosa; estou feliz por estares considerando-a dessa forma. A compreensão de toda a Escritura está contida nela, e tudo o que foi escrito desde o começo do Mundo até hoje pode ser encontrado nela, por aquele que, tendo entrado com sua Vontade no Nada, encontrou Todas as Coisas, encontrando Deus, de quem, e para quem, e nele estão Todas as Coisas. Por esse meio, chegarás a ouvir e ver a Deus e, após o fim desta vida terrena, verás com o Olho da Eternidade todas as Maravilhas de Deus e da Natureza, e mais particularmente aquelas que tu realizarás na carne, ou tudo o que o Espírito de Deus tenha lhe dado para trabalhar por ti mesmo e pelo teu próximo, ou tudo o que o Olho da Razão, iluminado de cima, possa ter te manifestado em algum momento. Não demores, portanto, em entrar por esta Porta, que se a vires no Espírito, como algumas almas altamente favorecidas a viram, verás no Fundamento Suprassensorial tudo o que Deus é e pode fazer. Verás também, com isso, como alguém disse que foi levado para lá, através do Céu, Inferno e Terra, através da Essência de todas as Essências. Quem encontrar isso, encontrou tudo o que pode desejar. Aqui está a Virtude e o Poder do Amor de Deus revelados. Aqui está a sua Altura e Profundidade, aqui está a sua Largura e Comprimento manifestados, tanto quanto a capacidade de tua alma possa conter. Por meio disso, chegarás a essa Substância da qual todas as Coisas são originadas e na qual subsistem; e nela reinarás sobre todas as Obras de Deus, como um Príncipe de Deus.

DISCÍPULO

Peço que me diga, querido Mestre, onde habita isto no homem?

MESTRE

Onde o homem não habita: lá tem sua morada no homem.

DISCÍPULO

Onde está isso em um homem, quando o homem não habita em si mesmo?

MESTRE

É o Fundamento resignado de uma alma à qual nada adere.

DISCÍPULO

Onde está o Fundamento em qualquer alma, ao qual nada se agarra? Ou onde está aquele que permanece e não habita em algo?

MESTRE

É o Centro de Repouso e Movimento na Vontade resignada de um espírito verdadeiramente contrito, que é Crucificado ao Mundo. Este Centro da Vontade é impenetrável, consequentemente, ao Mundo, ao Diabo e ao Inferno. Nada de todo o Mundo pode entrar nele ou aderir a ele, porque a Vontade está morta com Cristo para o Mundo, mas vivificada com ele no Centro dele, após a sua imagem abençoada. Aqui é onde o homem não habita, e onde nenhum Eu permanece ou pode permanecer.

DISCÍPULO

Oh, onde está esse Fundamento nu da alma vazio de todo Eu? E como posso chegar ao Centro oculto, onde Deus habita e não o homem? Diga-me claramente, amado Senhor, onde está e como pode ser encontrado por mim e entrar nele?

MESTRE

Lá onde a alma matou sua própria Vontade, e não deseja mais nada como se fosse dela mesma, mas apenas como Deus deseja, e como Seu Espírito se move sobre a alma, isso se manifestará. Onde o Amor-Próprio é banido, ali habita o Amor de Deus. Na exata medida em que a Vontade própria da alma está morta para si mesma, é o espaço ocupado pela Vontade de Deus, que é o Seu Amor, nessa alma. A razão disso é a seguinte: onde sua própria Vontade habitava antes, agora não há nada; e onde não há nada, é ali que o Amor de Deus opera sozinho.

DISCÍPULO

Mas como posso compreender isto?

MESTRE

Se tentares compreender isto, então isso vai fugir de ti; mas se render-se completamente à isso, então permanecerá com você, e se tornará a Vida da sua Vida, e lhe será natural.

DISCÍPULO

Como pode isto acontecer, sem a morte ou a completa destruição da minha Vontade?

MESTRE

Com esta total entrega e renúncia da tua Vontade, o Amor de Deus em ti se torna a Vida da tua Natureza, não lhe mata, mas vivifica. Agora estás morto para si mesmo em tua própria Vontade, de acordo com a tua Vida e, até mesmo, a Vida de Deus. Vives, mas não para tua própria Vontade, mas para a Vontade Dele. Pois a tua Vontade se tornou, daqui em diante, a Vontade Dele. Portanto, já não é a tua Vontade, mas a Vontade de Deus. Já não é o Amor de ti mesmo, mas o Amor de Deus, que se move e opera em ti. Compreendendo, então, isto, estás morto verdadeiramente em relação a ti mesmo, mas estás vivo para Deus. Sendo assim, morto, tu vives, ou melhor, Deus vive em ti pelo Seu Espírito e o Seu Amor se torna, para ti, Vida dos Mortos. Nunca poderias, com toda a tua busca, compreendê-lo, mas ele te compreendeu. Muito menos poderias tê-lo compreendido, mas ele te compreendeu; e assim o Tesouro dos Tesouros é encontrado.

DISCÍPULO

Como é que tão poucas almas o encontram, quando todos ficariam felizes em tê-lo?

MESTRE

Todos eles o procuram em algo e, assim, não o encontram. Pois onde há Algo a que a alma possa se apegar, lá a alma encontrará somente esse algo e se acomodará nele, até que ela perceba que ele só pode ser encontrado no Nada, e então ela saia do Algo e entre no Nada, até mesmo nesse Nada do qual Todas As Coisas podem ser feitas. A alma aqui diz: “Não tenho nada, pois estou completamente despojada e desnuda de tudo; não posso fazer nada, pois não tenho nenhum poder, mas sou como água derramada; não sou nada, pois tudo o que sou não passa de uma imagem de ser, e somente Deus é para mim EU SOU; e assim, sentando-me em minha própria Nulidade, dou glória ao Ser Eterno e não desejo nada de mim mesma, para que Deus possa desejar tudo em mim, sendo para mim meu Deus e Todas As Coisas.” É por isso que tão poucas almas encontram este tesouro mais precioso na Alma, embora todos o desejem tanto. E poderiam tê-lo, se não fosse por esse Algo em cada um que impede.

DISCÍPULO

Mas se o Amor se oferecesse à uma alma, essa alma não poderia encontrá-lo ou agarrá-lo, sem ir até o Nada?

MESTRE

Não verdadeiramente. Os homens buscam e não encontram porque não o buscam no Fundamento nu onde ele está, mas em algo onde nunca estará, nem poderá estar. O buscam em sua própria Vontade, e não o encontram. O buscam em seu Desejo Próprio, e não o encontram. O procuram em uma Imagem, ou em uma Opinião, ou em Afeto, ou em uma Devoção e Fervor naturais, e perdem a substância ao perseguir uma sombra. O procuram em algo sensível ou imaginário, em algo pelo qual possam ter uma inclinação natural mais peculiar e aderência, e assim perdem o que procuram, por não mergulharem no Fundamento Sobrenatural e Suprassensorial, onde o Tesouro está escondido. Mesmo se o Amor graciosamente se dispuser a se oferecer a tais pessoas e até mesmo se apresentar claramente diante dos Olhos de seu Espírito, não encontrará lugar nelas, nem poderá ser mantido por elas ou permanecer com elas.

DISCÍPULO

Por quê, se o Amor estivesse disposto e pronto para se oferecer e ficar com elas?

MESTRE

Porque a Imaginação que está em sua própria Vontade se estabeleceu no lugar do Amor. E assim essa Imaginação deseja ter o Amor nela, mas o Amor foge, pois é sua prisão. O Amor pode se oferecer, mas não pode permanecer onde o Desejo Próprio atrai ou imagina. A Vontade que atrai o Nada e à qual o Nada se apega é a única capaz de recebê-lo, pois ela habita apenas no Nada, como eu disse, e por isso eles não o encontram.

DISCÍPULO

Se ele habita apenas no Nada, qual é a sua função no Nada?

MESTRE

A função do Amor aqui é penetrar incessantemente em Algo e, se penetrar e encontrar um lugar em Algo que esteja parado e em repouso, sua tarefa é tomar posse desse lugar. E quando ele se apossar dele, se regozijará nele com seu amor ardente, assim como o sol se regozija no mundo visível. Sua função é acender, ininterruptamente, um fogo nesse Algo que possa consumi-lo e, então, com as chamas desse fogo, inflamar-se excessivamente e aumentar o calor do Amor por ele, até sete graus mais alto.

DISCÍPULO

Ó, amado Mestre, como devo entender isso?

MESTRE

Se ele acender um fogo dentro de ti, meu filho, então certamente sentirás como ele consome tudo o que toca, sentirás isso lhe queimando e devorando rapidamente todo o egoísmo ou aquilo que chamas de Eu e Si, como estando em uma raiz separada e dividida da Deidade, a Fonte do teu Ser. E quando essa chama for acesa em ti, então o Amor se regozijará tanto em teu fogo que não desejarias sair dele por nada neste mundo. Sim, preferirás ser morto a voltar para o teu Algo. Este fogo agora deve ficar cada vez mais intenso até cumprir sua função em relação a ti. Sua chama também será tão grande que nunca te deixará, mesmo que isso custe tua vida temporal, mas ele iria contigo com seu doce fogo amoroso até à morte e, se fosses também para o Inferno, ele também quebraria o Inferno por tua causa. Nada é mais certo do que isso, pois ele é mais forte do que a Morte e o Inferno.

DISCÍPULO

Basta, meu amado Mestre, não posso mais suportar que qualquer Coisa me desvie disso. Não obstante, como encontrarei o caminho mais próximo para tal?

MESTRE

Onde o caminho for mais difícil, vá por ele; e o que o Mundo rejeita, acolhe tu. O que o Mundo faz, não deves fazer, mas em tudo anda contrário ao mundo. Assim, chegarás mais perto daquilo que estás buscando.

DISCÍPULO

Se devo andar contrário a todas as pessoas em tudo, certamente estarei em um estado muito inquieto e triste, e o mundo não deixaria de considerar-me como um louco.

MESTRE

Eu não te ordeno, meu filho, a fazer mal a alguém, a fim de criar para ti mesmo qualquer miséria ou inquietude. Isso não é o que eu quero dizer com andar contrário em tudo ao Mundo. Mas porque o Mundo, como Mundo, ama todo engano e vaidade, e anda por caminhos falsos e traiçoeiros. Se quiseres agir de forma totalmente contrária aos seus caminhos, sem nenhuma exceção ou reserva, então anda somente no caminho certo, que é chamado de Caminho da Luz, enquanto o caminho do Mundo é propriamente o Caminho das Trevas. Pois o caminho certo, o Caminho da Luz, é contrário a todos os caminhos do Mundo.

Mas, enquanto tens medo de criar para ti mesmo problemas e inquietações, isto de fato acontecerá de acordo com a carne. No Mundo, deves ter problemas, e tua carne não deixará de ficar inquieta e te dar ocasião de arrependimento contínuo. No entanto, é nessa mesma ansiedade da alma, que surge do mundo ou da carne, que o Amor se acende mais prazerosamente, e seu fogo animador e vitorioso se manifesta com maior força para a destruição desse mal. E, quanto ao fato de dizeres que o mundo te considerará louco por andares contrário a ele, é verdade que o Mundo será rápido em te condenar como um louco por andares contrário à ele, e não te surpreendas se seus filhos rirem de ti, chamando-te tolo. Pois o Caminho do Amor de Deus é Loucura para o Mundo, mas é Sabedoria para os Filhos de Deus. Portanto, quando o mundo percebe esse santo Fogo do Amor nos Filhos de Deus, conclui imediatamente que eles se tornaram tolos e estão fora de si. Mas para os Filhos de Deus, aquilo que é desprezado pelo mundo é o maior Tesouro, sim, tão grande é esse Fogo inflamado e onipotente do Amor de Deus, que nenhuma vida pode expressar, nem língua pode sequer nomear. Ele é mais brilhante que o Sol, é mais doce do que qualquer coisa chamada doce, é mais forte do que toda força, é mais nutritivo do que comida, mais alegre ao coração do que vinho e mais prazeroso do que toda a alegria e prazer deste mundo. Quem quer que o obtenha é mais rico do que qualquer monarca na terra e aquele que o recebe é mais nobre do que qualquer imperador pode ser, e mais poderoso e absoluto do que todo Poder e Autoridade.

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