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Magia do Caos

A Ética Protestante e o Espírito do Ocultismo

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Tamosauskas

Este é um estudo sobre o artigo Anjos Fósseis, Alan Moore e farei muita referência a ele. Provavelmente uma boa leitura do texto de Moore torna a leitura do texto presente desnecessária, mas acredito que talvez possamos acrescentar dois reais e trinta centavos a discussão.

Primeiro faremos um breve resumo do primeiro.  Em resumo Moore faz uma retrospectiva crítica à história do ocultismo ocidental. Ele usa a separação típica dos saberes ocidentais (Arte, Religião, Ciência) para questionar a própria modernidade tal como um São Bento lançando de volta o veneno para dentro da boca do dragão. Sua questão é “A magia tem frutos para mostrar como a arte, a ciência e a agricultura?”

Ele assume – com propriedade – que Magia foi por muito tempo a ciência do todo, mas que após a Idade da Razão houve uma separação entre Ciência e Magia. Uma das consequências disto é que “A ciência perdeu seu componente ético e a Magia sua utilidade prática.” No texto Alan Moore ainda identifica o tempo e no espaço a origem do problema e coloca a responsabilidade nas costas dos ocultista ingleses do século XIX, a geração de Samuel MacGregor Mather e William Westcott.

Os intelectuais da Golden Dawn preocupado em compilar às tradições anteriores e em legitimar uma síntese das tradições mais antigas contrastam bastante por exemplo com John Dee e Edward Kelley muito mais a vontade com o pioneirismo, a criatividade e o experimentalismo. Alguma coisa aconteceu entre a Rainha Elisabeth e a da Rainha Vitória. Me arrisco a perguntar o que mudou na Inglaterra entre o século XVI e o século XIX. A resposta é óbvia: a ascensão do Anglicanismo.

O ocultismo inglês foi influenciado pelo modo de ser protestantes de diversas maneiras, vejamos algumas delas.

Assim como às primeiras igrejas protestantes buscaram legitimar suas doutrinas como sendo as mesmas da igreja primitiva e dos primeiros cristãos e restauradoras de uma linhagem sacramental, os magistas fin de siècle (Eliphas Levi incluído) quase se envergonhavam de sua própria criatividade e em vez de assumir suas criações a justificavam sempre como tendo sido recebido por alguma ordem secreta, algum manuscrito redescoberto ou algum mestre oculto. Mestres estes amplamente tidos como – e muitas vezes comprovadamente – inexistentes.

Mais do que isso, como Weber relatou, historicamente os protestantes deram uma guinada da educação humanística da escolástica para uma educação do tipo técnico e mais útil à produção capitalista. Adeus artes liberais, Olá cursos profissionalizantes. Só aqui já da para entender porque o ocultismo a partir desta época também começou a perder seu aspecto artístico em direção ao pragmatismo. E se fosse só isso tudo bem mas o que ocorreu foi que os magistas que cresceram em um mundo calvinista abraçaram a ideia de que a profissão é um dever e portanto o trabalho é um fim em si mesmo, independente dos frutos que gera. A antiga Filosofia Natural foi aos poucos dando lugar a Ciência Moderna e tecnicista que não sabe lidar com nada que não possa ser contido em um laboratório. O resultado foi ocultistas preocupados com tabulação de correspondências, dicionários cabalistas, precisão ritualística e em forçar uma sínteses de dogmas díspares. Ocultistas que brigam pela autoridade do significado de uma carta de tarô exatamente como os crentes brigam pelo significado de um versículo da bíblia. 

Outra influência forte foi a doutrina do “povo eleito” tão comum aos protestantes e que entrou no ocultismo através da maçonaria e do rosacrucianismo. O elitismo e a mentalidade de sociedade secreta influenciou não só a Golden Dawn mas todas as ordens iniciáticas que vieram depois. Assim como só os eleitos irão para o céu a magia devia pertencer a apenas alguns e apenas dentro dos limites institucionais.

Assim não é que o lema “O método da ciência, a meta da religião” proposto por Crowley no Equinox esteja errado, mas talvez as noções de Ciência e Religião que Crowley tinha provavelmente não é a mesma que a maioria das pessoas lê. Religião não são igrejas, ciência não são farmácias. É sintomático que Crowley não apenas tenha ficado pouco tempo na Golden Dawn mas tenha sido também responsável pelo seu fim.

Contudo nem mesmo Crowley pode ser isolado de sua época e do seu local de nascimento e assim muito da influência vitoriana chegou por meio dele ao ocultismo do século XXI. Com Alan Moore coloca,

“Todas às ordens desde então, inclusive iniciativas supostamente iconoclastas como a Illuminates of Thanateros, por exemplo, parecem ter adotado com o tempo o mesmo modelo da alta era vitoriana.” Talvez o Aeon de Hórus ainda precise tomar muito leite ninho antes de começar a dar às cartas.

Apesar da performance de nomes corajosos como Gerald Gardner, Peter Carroll e Phil Hine, muitos magistas do caos de hoje são diferentes de seus equivalentes cristãos, os neo-pentecostais.  Ainda que se orgulhem de não ser limitados por esta ou aquela ordem não são diferentes dos crentes que mudam de igreja porque uma é mais perto de casa ou porque seus membros parecem prosperar mais. As motivações por trás dos sigilos e das sessões de descarrego são as mesmas: Dinheiro, Saúde, Vida Afetiva e “Justiça sobre os Infiéis”, mas não há criação, não há aventura, não há Grande Obra.

A atitude “se funciona para você, use” é tão tecnicista quanto um cursinho pré-vestibular. Mas para que você quer passar na prova mesmo? Este tipo de ocultismo atrai consumidores mas não realizadores. São pessoas que querem soluções para seus problemas comuns mas nunca questionam a origem comum de seus problemas. De um lado uma multidão de praticantes ignorantes, do outro uma hora de teóricos sem prática que precisam que tudo seja justificado em alguma literatura antiga. Ambos desprovidos de qualquer disciplina, inspiração ou bússola moral própria. No meio desses um grupo cada vez maior de pessoas que simplesmente preferem pagar para alguém rezar ou fazer um feitiço em seu lugar do que levantar o traseiro da plateia e fazer alguma coisa. O pior da ciência e o pior da religião.

A magia deixa de ser Arte e passa a ser um produto  na prateleira de uma loja de conveniência. Jesus Cristo ou os demônios da goetia se tornam apenas embalagens diferentes para a mesma Teologia da Prosperidade. Deixa-se de atuar e passa a se consumir. Os 40 servidores – tão criativamente criados e desenhados por Tommie Kelly, – se tornam menos do que um corredor de máquinas de venda de salgadinho na rodoviária. Não há nada de errado nisso. “Nada é verdadeiro – tudo é permitido”. Mas sempre será permitido atuar pela verdade de outro e geralmente enchendo o bolso de alguém no processo, seja do pastor da universal ou dos grandes magos sombrios do marketing internacional. E um magista alienado é um magista ainda? 

Para retomarmos o protagonismo não basta abandonar o espírito protestante e retornar ao estado católico. Fazer isso é se arriscar-se a deixar-se engravidar novamente pelos reis e parir outro Lutero. Não… é preciso voltar ainda mais no tempo, para um verdadeiro Neo-Neolítico ou um ‘Renascimento Arcaico’ como propôs Terence Mackenna.

Alan Moore diz que a chave para isso é reconhecer que o todo bom magista é um bom artista e vice versa. Para deixar claro o que quer dizer com isso ele coloca Austin Osman Spare como um bom exemplo dos dois. Spare não tirava o chapéu de mago para pintar nem as o avental de artista para fazer magia. Ele não estava preocupado em se encaixar em algum modelo, ele estava ocupado demais sendo Austin Osman Spare.

Desde que decoraram a Caverna de Chauve, os grandes artistas sempre flertaram com o oculto e grandes magos sempre flertaram com a arte. Não só flertaram mas muitas vezes foram flagrados aos amassos nos bastidores. “Artistas sempre trataram a magia com mais respeito que os cientistas e os religiosos” diz Moore, e ele está certo, mas em última instância, se voltarmos a época do xamanismo – os magos originais – veremos que Arte, Religião e Ciência eram uma coisa só. Não havia Paulo de Tarso, João Calvino ou Israel Regardie para pensar por nós. A magia não era uma prova de múltipla escolha, mas uma dissertação. Não havia qualquer medo de parecer louco, ridículo, errado ou condenado ao fogo do inferno.

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