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Lovecraft Country: racismo, spoilers e papel higiênico

Leia em 26 minutos.

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Critica e resenha do livro Lovecraft Country de Matt Ruff que está sendo adaptado pela HBO e ainda em sua primeira temporada.

29 de janeiro de 1839, Darwin propõe casamento a sua prima Emma que aceita o pedido. Pouco mais de dois meses antes ele fez uma lista em seu diário pessoal contabilizando os prós e contras de se assumir tal compromisso. Na lista dos motivos pró casamento ele deixou registrado pérolas tais como “uma companhia constante (& uma amiga na velhice) que se interessará por mim – alguém para amar e brincar – melhor do que um cachorro, de qualquer forma”. Na lista dos contra ele expôs “ter que trabalhar por dinheiro – adeus aos livros – perda de tempo – menos dinheiro para comprar livros – não poderei ler durante as tardes”. O homem que, querendo ou não, matou Deus, de uma forma mais brutal do que Nietzsche, chorando por causa de livros. Pense a respeito sobre isso por um instante.

Comecei o ano de 2020 com a publicação de “O Caso de Charles Dexter Ward” da editora Hedra, lançado em 2014. Acredito que, em parte, a culpa disso tenha se originado no fato de a última leitura do ano de 2019 tenha sido a coletânea “À Procura de Kadath” da editora Iluminuras, publicada em 2002. Termine um ano com Lovecraft e inicie o próximo com Lovecraft. Acho que foi por isso que minha escolha de primeira leitura oficial do ano tenha sido “Lovecraft Country (Território Lovecraft)“, escrito por Matt Ruff em 2016.

Foi no fim em 1982, quando eu contava com meus 12 anos, que meu nariz foi quebrado pela primeira vez. Era um jantar de ano novo, me ofereceram uma taça de Champagne para comemorar e eu, no auge da maturidade que apenas uma criança de 12 anos recém completados, respondi algo como “Ta maluco? Vovô diz que vinho é coisa de viado!” Minha mãe, sentada ao meu lado, apenas esticou o braço com um golpe certeiro, resultado de anos praticando boxe. “Querido, se não vai falar algo inteligente, cale a boca. E coloque o guardanapo no nariz, você vai pingar sangue em toda a mesa.” A ceia prosseguiu, eu não consegui comer mais nada, estava assustado, estava sentindo dor, humilhação, raiva… mas não deixei meu sangue pingar na toalha.

Desde pequeno me agradava a companhia de livros. Às vezes nem os lia, apenas gostava de sentir o peso na mão, mas em grande parte do tempo os devorava. De Monteiro Lobato às aventuras americanas dos detetives juvenis d’Os Hardy Boys – escritas por uma miríade de escritores fantasmas que assinavam Franklin W. Dixon. Guardava debaixo da cama um bloco maciço formado por mais de quinhentos livros, todos trazendo meu ex-libris carimbado na contra capa. Ainda não possuía nenhum método ou organização. Conheci Frank Belknap Long e Robert Bloch antes de ser apresentado a Lovecraft. Anos separaram Dejah Thoris, Princesa de helium, de John Clayton II, Visconde de Greystoke – apesar de terem nascido na mente do mesmo homem. Lia sobre homens sendo cimentados vivos atrás de paredes e sobre corcéis indomados em ilhas desertas. Esta época eu chamo, com certa nostalgia, de a época de minha inocência literária. A inocência que terminou naquela noite em que permaneci sentado na mesa, segurando o choro, enquanto todos comiam animados e eu segurava um guardanapo molhado de encontro ao nariz.

Eu sentia o peso do livro nas mãos. A arte das capas e o papel usado na impressão remetendo à época em que escrevia e às revistas que publicavam suas histórias. Revistas Pulp, baratas – ao contrário do livro que no Brasil está sendo vendido a mais de R$70,00, com sorte você encontra uma edição nova por R$55,00 ou R$60,00. E, em janeiro de 2020, comecei a ler sobre Atticus Turner e sua busca para encontrar o pai desaparecido em 1954. Atticus era, assim com seu tio e tia e aparentemente a maior parte de sua família, um fã ferrenho de ficção científica e de literatura fantástica. Ele, assim como sua família, era negro – ou afro descendente como o pudor nos faz dizer hoje. Uma semana depois e eu fechava o livro. Em minha melhor época, ler essas 400 páginas me custaria 3 dias, 4 no máximo, mas a responsabilidade de hoje faz com que as leituras acabem me tomando mais tempo, o que não acho nem um pouco desagradável, para ser sincero. O que achei desagradável foi a história escrita pelo senhor Ruff. Não sabia se ficava mais nervoso em ter gastado o dinheiro com o livro – ao invés de comprar dois ou três obras diferentes – ou de ter perdido uma semana lendo aquilo. Se existe algo que eu levo muito a sério, mais do que na época da inocência, é o que alguém deixa impresso em uma brochura.

Naquela noite de fim de ano minha mãe se sentou ao meu lado na cama e disse “aguente firme”. Com um movimento rápido ela fez meu nariz estalar, um jorro de dor quente brotar atrás de meus olhos e então eu comecei a sangrar de verdade. “Pronto, está de volta no lugar”, ele disse como alguém que apenas constata um serviço que sabe estar bem feito.

Eu estava encarando o vazio, tentando não chorar de novo – desta vez por causa da dor – quando, com um dedo dobrado segurando meu queixo, ela m e fez encarar seus olhos.

“Seu avô nunca disse aquilo que você falou na mesa. Dizer aquilo daquela forma é uma falta de respeito com ele, com o que ele diz e o pior: com as ideias dele. Para alguém que passa tanto tempo lendo você deveria ser o primeiro a respeitar as ideias de alguém. Mas você só aprende a respeitar as ideias de alguém quando aprende a ouvir realmente o que dizem.”

Ela jogou com delicadeza meu queixo para um lado e depois para o outro, examinando meu nariz.

“Às vezes fico pensando se você está lendo mesmo esses livros ou se só fica repetindo as palavras dentro de uma cabeça oca. Quando você lê, ouve um eco entre as orelhas?”

Eu pretendia ficar quieto, achei que era parte das perguntas retóricas que normalmente compõe um sermão, mas vi os olhos dela. Balancei a cabeça de um lado para o outro, sentindo meu rosto latejando enquanto fazia isso.

“Ótimo. Então eu proponho que você aprenda a ler de verdade antes de continuar perdendo seu tempo com esses livros, porque pelo que disse hoje parece mesmo que só fez perder seu tempo.”

Ela colocou uma cópia de Alice no País das Maravilhas no meu colo. Não sei de onde havia saído o livro, não a vi carregando ele.

“Pegue este livro e o leia. Depois releia e leia mais três, quatro, dez vezes. Só pare de ler quando tiver aprendido a ler o que está aqui. Eu não pegaria mais nenhum outro livro até ter certeza que está aprendo a ler mesmo. Entendeu?”

Fiz que sim com a cabeça.

Ela ia se levantar da minha cama quando olhou para mim e me fez encarar novamente seus olhos.

“Querido, você sempre será amado por todos nós. Somos uma família, certo? Esse amor é incondicional. Mas para ser respeitado você precisa crescer. Não seja burro, não seja alguém que diz coisas só por dizer. O mundo está cheio de idiotas assim, que não sabem ouvir algo, que não sabem interpretar algo, que não querem pensar e que dizem qualquer coisa que lhes vem ao que chamam de mente e eu não quero meu filho seguindo esse caminho. Se seguir, continuará sendo meu filho, entende? Mas não é o que quero para você e com certeza não é o que você irá querer para você também. Boa noite.”

Obviamente o nome Lovecraft está na capa como isca. Ele ou qualquer referência à sua obra são citadas de forma casual apenas um punhado de vezes. Se a ideia era criar um clima Lovecraftiano para a história Ruff falhou lamentavelmente, a história curta de Borges ‘There Are More Things…’ publicada na coletânea Livro de Areia consegue em sua dezena de páginas criar uma ambientação que literalmente explode no clímax. Obviamente não estou comparando Ruff com Borges, seria o mesmo que colocar um cadeirante no ringue para lutar 15 rounds com Muhamed Ali ou Rocky Marciano. Minha sugestão seria apenas que o primeiro lesse o conto do segundo e, quando percebesse que não teria a capacidade de criar algo próximo, desistisse de associar seu livro com o testamento literário do escritor da Nova Inglaterra. O texto em si é insosso e as histórias – sim, existe mais de uma – vão ficando cada vez mais previsíveis e parecem todas carecer de um clímax, mesmo que todas estejam conectadas pela trama principal acabam sendo versões fracas de diferentes estilos de contos de ficção científica, de terror ou de fantasia. Não existe um vilão que você queira ver vencido, não existe uma personagem cujo carisma se mantenha quando você não está lendo sobre ela – e algumas nem enquanto lê apresentam o carisma. Se minha ideia era ter em mão uma releitura contemporânea do gênero que Lovecraft criou, moldou e apadrinhou, ler o livro foi como receber um novo murro no nariz. A leitura superficialmente é insossa tal qual uma tigela de caldo de pedra. Mas poderia haver alguma complexidade mais profunda?

Durante aquela semana li e reli o livro que contava as aventuras de Alice, ficando cada vez mais frustrado. No segundo dia perguntaram se eu não pretendia sair do quarto para comer, disse que não tinha fome.

“Claro que tem fome, está com o orgulho ferido e por isso não quer sair do quarto, desça agora”, e assim minha mãe pôs fim a minha greve de fome.

O que aquele livro tinha demais? Chegou o momento em que eu conseguia recitar algumas passagens de cor, mas não era o que eu queria. Resolvi começar a escrever uma resenha do livro, logo havia escrito cinco. Era uma metáfora que mostra que quando crescemos perdemos também a inocência? Que somos obrigados a viver em um mundo louco e sem sentido? Confrontamos adultos com regras que aparentemente são loucas para uma criança, mas temos que obedecê-las? Tudo fazia sentido, tudo era óbvio, nada me agradava. Não levei um murro na cara por causa disso. Quem

Escreveu o livro era um padre inglês, isso eu sabia, e ele inventava a história para entreter uma garotinha, a Alice do livro. Pedofilia? Uma versão real de Lolita? Ou seria simplesmente uma história sem sentido com o único objetivo de entreter uma criança de 10 anos? A cada dia meu humor azedava mais e mais.

Casualmente numa tarde particularmente irritante, fechei o livro. Meu irmão mais novo estava sentado no chão, rabiscando algo em folhas de papel – provavelmente tentando resolver algum problema ou charada. Antes de perceber o que estava fazendo o chamei:

“Leroy, me diz se isso faz sentido.”

E li para ele um trecho do livro:

“Vou experimentar para ver se sei tudo que sabia antes. Deixe-me ver: quatro vezes cinco é doze, e quatro vezes seis é treze, e quatro vezes sete é… ai, ai! deste jeito nunca vou chegar a vinte!”

“Claro que não, esse livro está deixando você com miolo mole!”

Naquele momento eu senti toda a angústia dos últimos dias subir pela minha garganta e se destilar em ódio. Fiquei de pé, joguei o livro longe e marchei com passos duros em direção ao caçula. Os punhos doíam pela força com que os estava fechando. Parei na frente dele e…

Não sabia se o que ele tinha falado era besteira ou não. De fato sentia como se o livro estivesse amolecendo meus miolos. Estava com raiva de ler e sentia que aquilo seria a desculpa para não pegar em mais nenhuma porcaria de livro pelo resto da vida e foi então que reparei nos olhos de Leroy. Ele não havia saído correndo – imaginou que ia apanhar, deve ter pensado que merecia e apenas ficou lá para levar o castigo pela piada impensada – mas então vi algo que até então apenas havia lido a respeito.

Os olhos de Sherlock Holmes, em algumas das histórias escritas por Sir Arthur Conan Doyle, são descritos como particularmente afiados e penetrantes, imbuídos de um olhar distante e introspectivo quando sua mente passava a funcionar a pleno poderes e como ele tinha a capacidade de desconectar em grau extraordinário sua mente sempre que precisava.

Naquele dia fui testemunha de algo semelhante. A mente de Leroy não se desconectou por vontade própria, foi como se ela percebesse algo e o deixasse catatônico, enquanto a consciência de seus olhos era tragada para o fundo de sua psiquê. Num momento ele me encarava com medo e apreensão quando, de repente, não havia mais nada ali, primeiro seus olhos se apagaram e depois de instantes passaram a brilhar.

“Pera…” Ele disse, começando devagar e ficando agitado “repete, como é? Quatro vezes cinco é doze? Quatro vezes seis é treze?”

Enquanto eu corria para pegar o livro para abrir na página ele continuou.

“Isso… e ele falou quanto era quatro vezes sete?”

“Não.” Eu respondi, olhando para ele e sabendo que não ouvia o que eu dizia.

“Bom… quatro vezes sete então seria catorze, seguindo a lógica. E quatro vezes oito igual a 15. Isso faz sentido!” E começou a rabiscar no papel. “Nossa, isso é brilhante e muito engraçado! Que livro é esse?”

Eu mostrei a capa.

“Quem escreveu isso gosta de matemática, tem mais contas? Ou charadas?”

Eu disse que assim que acabasse de ler lhe emprestaria o livro e pedi para explicar o que era brilhante.

Ele olhou para mim irradiando de felicidade. Leroy gostava de números, muito. Isso significa que ele nunca teve muito com quem conversar – além de um tio nosso. Quando alguém precisava resolver um problema falava com ele, mas raramente pedia explicação. Alguém se interessar pelos números dele e querer entendê-los era algo que o deixava extático.

“Olha, é assim. A gente escreve e pensa em uma base decimal, certo? A gente usa 10 números: 0, 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8 e 9 para escrever qualquer número, e dividimos os números em casas decimais, a casa das unidades, das dezenas, centenas…” Ele ergueu os olhos do papel onde desenhava pequenos quadrados e me encarou “Muito chato?”

“Não… nem um pouco… continua, finge que eu sou burro, pode explicar bem devagar.”

Ele riu e se animou mais.

“Então, quando a gente conta até nove chegamos no limite das unidades, por isso que quando vamos para dez colocamos um zero no lugar das unidades e um número um no lugar das dezenas. Ai cabem mais nove unidades e mais do que isso são duas dezenas. Mais do que nove dezenas vira uma centena e assim vai. Certo? Então. Quando fazemos quatro vezes cinco, terminamos com vinte unidades, ou duas dezenas. Marcamos dois e zero, assim: 20. Agora, e em outro sistema diferente? Tipo num sistema de base onze cabem dez unidades na casa das unidades e só uma na casa dos onze aqui. Então em um sistema onze teríamos um número assim: 1-10 como resultado para 4 vezes 5. Agora não podemos colocar um 10 aqui, porque são dois números, mas a ideia é que do lado direito é o número mais alto, como o nosso 9, então em base onze quatro vezes cinco seria igual a 19. Se vamos subindo a base, base doze, base treze, base quinze… o resultado vai diminuindo. Em base 18 quatro vezes cinco é igual a doze.”

“E quatro vezes seis é treze?” Perguntei entusiasmado.

“Não. E ai é que fica genial. Quatro vezes seis só é 13 se usarmos base 21. Quatro vezes sete é 14 em um sistema de base 24. Legal né?”

Eu começava a enxergar algo por trás da história. “Sim” Eu concordei boquiaberto.

“Agora fica genial. Se aumentarmos as bases de 3 em 3, como ele parece estar fazendo, olha só. Em base 27 quatro vezes oito é igual a 15. Em base 30, quatro vezes nove é igual a 16. A gente vai subindo a base em três, multiplicamos quatro por um número mais alto e o resultado sobe de um em um, rumo a vinte, viu? Só que ele disse que assim nunca vai chegar a vinte, olha. Na base 39, quatro vezes doze é igual a 19. A próxima base seria 42. Mas o produto não dá igual a vinte, porque cabe muito mais unidades antes da base 42 se encher duas vezes. Então ele nunca vai chegar a vinte mesmo seguindo essa tabela. Insano né?”

Fiquei olhando para Leroy pensando que genial era alguém conseguir enxergar isso de forma tão rápida e achar graça ainda. Agradeci e peguei o livro e resolvi pesquisar a vida de Lewis Carrol antes de continuar lendo.

Duas semanas depois estava no sofá da sala, lendo da forma mais casualmente escancarada que era fisicamente possível para mim um livro de William Blatty. Escolhi aquele livro não pelo assunto, mas porque a capa vermelha chamava a atenção a quadras de distância – ou assim esperava. Se passaram algumas horas até ouvir a voz da minha mãe do outro lado da capa.

“Livro novo?”

“Não. Foi escrito há mais de dez anos.”

“Leitura nova?” A voz dela curiosa, intrigada pela piada.

“Sim.”

Silêncio. O tique-taque do relógio da parede ficando mais alto, os taques parecendo ficar mais distantes dos tiques.

“Acabou de ler Alice?”

“O livro protesto que o Reverendo Dodgson escreveu porque a matemática estava virando uma coisa extremamente abstrata e perdendo qualquer laço com o mundo real? Terminei. Leroy está lendo ele lá no quarto.”

Meus dedos estavam gelados e fazia força para evitar que meus braços tremessem. Meu nariz começou a latejar sem motivo algum aparente.

“Matemática?” Veio a questão do outro lado da capa do livro, eu ainda não tinha tido coragem de encará-la, sentias as bochechas pegando fogo.

“Parece que sim” minha voz saia casual como minha postura, ou assim eu esperava “Alice não passa de uma euclidiana sensível, tentando desesperadamente manter a calma e a sanidade enquanto o mundo das Maravilhas era a faculdade em Oxford, onde Dodgson vivia e os habitantes eram provavelmente seus colegas, discutindo a nova matemática abstrata da época. Antes ele fazia contas com maçãs, agora ele nano sabia como calcular a raiz quadrada de menos uma maçã. Dai o livro.”

Acho que não estava mais respirando, tomei coragem e abaixei a capa do livro. Lá estava o sorriso dela olhando de volta para mim. Tive vontade de chorar, mas me mantive firme.

“Entendeu agora?” Ela perguntou?

“Eu não sei” respondi com voz trêmula.

“Se você vai viver com a cabeça entre as capas de um livro, faça isso direito. Se vai viver consertando carros, faça isso direito, se vai viver fazendo algo, faça como se sua vida dependesse disso, ou então ela vai ser uma vida fútil e você vai estar estragando a única coisa que tem algum valor, o que tem aqui dentro.”

Ela se aproximou e beijou minha testa.

“Veja seu irmão mais novo e como ele vive com os números dele. Faça a mesma coisa com seus livros, com suas histórias. O mundo está cheio de imbecis, não vire um deles. Vou continuar te amando se você for um imbecil, mas você não. Nunca se contente só com o que existe na superfície, mergulhe, veja se exista algo no fundo e brigue com esse algo. A vida é muito curta para você se contentar em só amar algo ou alguém. Entende? Tudo o que vale a pena é profundo, tem complexo, misterioso. São essas coisas abismais que te fazem mudar e crescer. Não pare de crescer nunca. E a maior lição é que você e seus irmãos juntos podem se tornar algo inquebrantável. Nunca se satisfaça com a mediocridade do mundo e nunca se contente com o que boia, vá atrás do que se esconde no fundo.”

A assim mergulhei no livro de Ruff para, primeiro, saber se possuía alguma profundidade e então ver se havia algo de valor ali.

Daqui em diante o livro será exposto como a fotógrafa O do romance de Anne Desclos, se não quiser surpresas reveladas pare de ler aqui e continue no final caso se interesse pela avaliação do material.

NOTAS SENSORIAIS

  • VISÃO

– A apresentação do livro é sensacional. Arte da capa e material remetem a Lovecraft e às revistas Pulp que publicavam seus contos. Até o papel impresso cria uma ambientação fenomenal, o cheiro de jornal velho, você sente o material áspero se esfarelar minimamente em contato com os dedos. Parece algo saído do passado. A arte gasta, a impressão reticulada e o destaque ao nome de Lovecraft maior do que o nome do próprio autor, talvez uma indicação do que viria.

  • AROMA

– Primeira decepção. O autor não consegue manter uma linguagem lovecraftiana em seus textos. O livro, inclusive, não conta apenas uma história, mas várias, cada capítulo uma pseudo homenagem a um estilo de história diferente do universo terror e ficção científica – atenção aqui:

a) “pseudo homenagem” porque não homenageia na verdade, apenas faz uso da ambientação o que torna cada capítulo um mero clichê

b) “a um estilo de história” porque o autor não tem o talento ou a capacidade de incorporar no que narra o estilo dos textos originais, os vícios de linguagem, os maneirismos, os adjetivos. A história de fantasmas não tem a alma gótica, a história de ficção científica não tem o espírito fantástico do inimaginável. É sempre o mesmo tom, o mesmo ritmo a mesma linguagem insossa e sem graça.

Também decepcionante quando se percebe que o nome de Lovecraft não é um título, é apenas mais uma isca para atrair leitores desavisados, se você é fã do escritor de Providência não se deixe levar pelo nome com que esta obra foi batizada, dele ela não tem nada além de algumas menções e de nomes de títulos emprestados para alguns dos capítulos.

Fraco, muito fraco. Fraco e chato.

  • PALADAR

Como o livro é composto por diferentes histórias com uma espinha dorsal que as une, vou dar minha breve opinião sobre cada “capítulo”.

– Lovecraft Country (País de Lovecraft)

A primeira história é de longe a “melhor do pacote”. Talvez o clima que vá se criando, e o fato de você ainda não saber que o livro seria ruim, ajude muito com isso. Ela é que dá nome ao livro. 1954, Atticus é um militar negro que recebeu dispensa e está decidindo o que fazer com a vida quando recebe uma carta misteriosa de seu pai. A partir dai parte em uma jornada que mudará sua vida.

– Dreams of the witch house (sonhos na casa da bruxa)

Uma das melhores histórias de Lovecraft vira título de um capítulo com a única intenção de… de nada além de se usar um título do autor. Típica história da casa mal assombrada, claro que o fantasma é branco e racista e a nova proprietária da casa uma mulher negra. Um conto fraca cujo ápice é a piada que surge quando o fantasma tenta matar a protagonista e acreditem que se esta descrição pareceu interessante, ela não é.

– Abdullah’s book (o livro de Abdula)

Uma sugestão de semelhança com o Necronomicon de Lovecraft, dai atribuírem o livro a um nome árabe. Desta vez um ramo negro da maçonaria se envolve com o ramo branco da Ordem que tem como membros figuras poderosas da sociedade – chefes de polícia irlandeses, prefeitos, ricaços. O conto não gira em torno da criação do livro, ou de sua história, apenas como os maçons conseguirão driblar uma armadilha sobrenatural que tem em seu interior o livro mágico – que não foi escrito, nunca pertenceu e nem foi lido por Abdullah.

– Hippolyta disturbs the universe (Hipólita perturba o universo)

Típico conto de ficção científica e o segundo conto com personagem feminina. Hippolyta acaba com uma chave nas mãos que a leva para um observatório que serve como portal para infinitos mundos. Desde criança ela idolatra astronomia e o conto tem o sabor de destino pré fabricado – como uma personagem batizada de Magnus se tornar um vilão chamado Magneto que controla o magnetismo, ou alguém batizado Otto Octavius terminar com tentáculos no corpo com o nome de Dr. Octopus. A criança que nunca pôde ingressar na astronomia por ser mulher, negra e pobre, acaba vivendo a maior aventura galática de todas. Mas ao ler você não sente o gosto do fantástico, do absurdo, daquilo que é alienígena, nem a surpresa e o maravilhamento de alguém realizando os sonhos de criança.

Hyppolita com certeza viveria uma aventura uito mais memorável se fosse parar em uma dimensão paralela onde os brancos fossem alvo do racismo e o mundo oriental fosse dominado pelos negros. Mas ela apenas vai para uma casa pré fabricada que tem um forno que produz comidas misteriosas de forma aleatória.

– Jekyll in Hyde Park (Jeckyll no parque Hyde)

Contos que trazem por título trocadilhos de obra de Stevenson por si só mereceriam ser ignoradas, mas tais trocadilhos parecem ser populares não apenas em literatura ruim, mas em música, curtas animados, etc…

Na obra de Stevenson o médico manso e gentil dr. Jekyll, faz pesquisas para entender os impulsos e os sentimentos humanos mais profundos, a acaba por criar uma droga que libera seus aspectos mais primitivos, é a deixa para surgir Sr. Hyde (do verbo hide, esconder, ocultar). Então o aceito socialmente se torna um monstro.

Ruff inverte aqui os papéis sociais e uma poção mágica transforma Ruby – mulher negra para quem nada dá certo – em uma mulher branca e ruiva que pode fazer o que quiser. Aqui o “monstro” se torna o que é aceito e desejado socialmente. O único objetivo deste conto é nos mostrar o que é a Ordem e quais os planos de Caleb para ela.

– The narrow house (A Casa Estreita)

Outro trocadilho sutil, já que “casa estreita” em inglês tem o significado poético de cova, sepultura – pense a respeito você entenderá. O título seria interessante se o conto fosse bom. Desta vez ao invés de trazer fantasmas para nosso mundo o pai de Atticus acaba indo parar em uma casa fantasma, agora são os vivos que assombram os mortos. Não sei como mas o autor conseguiu criar uma história monótona e chata. Já que fantasmas não sentem mais nada se alimentam de emoções. “Conte uma história e você pode ir”.

Não há momentos de perigo, não há reviravoltas, não há nada fantástico. Apenas usam um fantasma para contar como pode ser horrível para um branco viver um casamento interracial e ainda por cima ser burro. Um conto linear sem surpresas que tem como único objetivo mostrar que um vivo pode negociar com um morto.

– Horace and the devil doll (Horácio e o boneco satânico)

A promessa de um conto na linha do clássico Além da Imaginação. Será que o que está acontecendo é real? É ilusão? É loucura? Poderia ser Contos Fantásticos em seu ápice. Com certeza melhor do que os contos anteriores, mas o autor falha em personificar a criança protagonista da história, nos parece apenas um adulto que não sabe agir. Tudo o que caracterizaria uma criança, a inocência, o medo do desconhecido, o pânico que o terror causa, a suave ignorância dos primeiros anos são tratados de forma artificial, a visão de um adulto que não sabe escrever através de mãos infantis.

– The mark of Cain (A marca de Caim)

O climax une um pouco do que foi exposto em cada conto anterior. Quando um personagem não adquire uma experiência que o motive ou que lhe dê sabedoria ele ganha uma bugiganga mágica como uma varinha mágica com um desenho de libélula que tem o mesmo efeito do beliscão nevrálgico vulcano em seus inimigos.

Tudo, obviamente termina bem para os protagonistas, qualquer associação ou lealdade que uma personagem de cor tenha com uma branca é desfeita e termina a história principal.

  • FINALIZAÇÃO

É um livro que deixa um gosto ruim na boca.

Termino de ler o livro e a impressão clara é a da tentativa de se criar um texto onde o sobrenatural é ofuscado pelo racismo – o ódio irracional humano é pior do que qualquer monstro que nossa mente possa conjurar.

Ao mesmo tempo fechei o livro pensando que ele não passava de um pré roteiro para alguma nova série infanto juvenil de suspense e sobrenatural.

O mais engraçado é um homem branco de nossa época escrever sobre o racismo da década de 1950 e isso parece ser uma tendência da literatura. Victor Lavalle, outro escritor branco, escreveu “Tha Ballad of Black Tom: uma revisão do conto O Horror de Redhook de Lovecraft onde o protagonista é negro. Esse tipo de literatura Mea Culpa deveria ser vendida junto com livros de auto ajuda para quem se identifica com esse tipo de material.

Tudo isso somado a um escritor que não conseguiu adicionar brilho ou profundidade ao que escreveu, muito pelo contrário, na última história a personagem que se transforma na personagem ruiva acaba sendo subjulgada pela tia de Aticus, um dos homens que ambas haviam amarrado pisca para ela e diz “é isso o que ganha tentando ajudar os negros” apenas para receber um cala boca de ambas as mulheres, a negra e a negra no corpo branco.

Geralmente, escritores que se enveredam pela senda do sobrenatural, do fantástico e do horror possuem uma receita que visa, durante o desenrolar da história, criar uma dualidade moral tremenda. Uma criatura que representa o mal, a amoralidade, tudo o que é errado, e ela tem poderes e força muito maior do que a daquele (ou daquela) que a vai enfrentar. Cria-se assim a eterna síndrome bíblica de um David enfrentado um Golias armado de um simples pedregulho e vencendo o gigante no final.

Este tipo de roteiro geralmente é fraco, mas as pessoas se afeiçoam dele – acredito eu – porque o mal é sempre exposto como algo tão repulsivo que não tem outro destino cabível a não a aniquilação total, e ficamos aliviados quando ela finalmente chega.

No livro de Ruff a personagem Caleb Braithwhite deveria ser esse antagonista supremo, mesmo que velado durante a obra, alguém cuja presença devesse ser aturada, mas não suportada por muito tempo. O problema é que durante o desenrolar do livro ele não atinge esse status.

Ele salva Aticus e seu pai, seu tio e sua amiga Letitia – todos os quatro seriam mortos. No processo Atticus coloca uma “amiga” de Caleb em coma – com o tempo vemos que eles eram mais do que amigos. Caleb ainda paga para a família o salário que calculam ser devido a sua antepassada que trabalhou como escrava. Dá à irmã de Letitia, Ruby, uma chance de fazer o que desejar com a vida e num golpe final acaba com todos que tinham motivo para acabar com a familia e os amigos de Atticus. E como pagamento disso e mais é traído, tem seus poderes apagados, é expulso da cidade, fica sem dinheiro, sem influência e termina com todos os outros protagonistas rindo dele e das advertências que ele faz – não ameaças. Não sei qual a intenção de Ruff, mas terminei de ler o livro com as palavras do capanga amarrado ecoando em minha mente:

“é isso o que ganha tentando ajudar os negros”

Um erro grotesco do escritor, a não ser que ele suponha que como todas as outras personagens são intrinsecamente boas, o que fazem é intrinsecamente correto. Mas não é porque o racismo é a base moral de uma novela que tudo o que aqueles que sofrem do racismo fazem é justificável. Se Caleb era de fato alguém que merecia ser neutralizado e humilhado o autor falha em mostrar isso e criar um clima indigesto por lidar de um assunto tão delicado e fundamental: a ignorância humana e o desprezo que ela gera a tudo que nos parece diferente, a nossa tendência estúpida de diminuir e tirar valor de tudo aquilo que aparentemente é diferente de nós.

Além disso a forma como o autor coloca o universo da ficção científica preenchendo alguns vazios deixa a impressão de ter tentado pintar como seria alguém de cor gostar de ficção científica em mundo onde até hoje, para a maioria, Jesus Cristo é loiro de olhos claros.

Se o objetivo era mostrar a uma pessoa branca como era ser negro na época, ele faz isso da maneira mais tosca e despreocupada. Isso seria uma visão tão linda para ser trabalhada, mas lhe falta talento para desenvolvê-la, acaba deixando um fim suspenso no ar sem significado nenhum além do gosto tonto da traição.

Eu sinto dor em meu coração por todas as árvores que morreram para serem transformadas em papel e ter impressa em seus cadáveres as palavras que formam este volume.

MINHA AVALIAÇÃO

Papel higiênico usado

(está cheio de merda, o lugar dele é no lixo mas teve uma utilidade prática)

Mas… apesar de todo o desgosto… o prazer que as personagens tem por obras clássicas da fantasia e da ficção científica despertaram algo em mim e servirão de norte para as leituras que pretendo realizar este ano. Ray Bradbury, Edgar Rice Burroughs, planetas distantes, futuros improváveis… mutantes… 2020 ficará marcado como o ano do fantástico e esses serão os livros que surgirão aqui nas próximas postagens.

Bônus

Uma dica para quem gostaria de ver a proposta de racismo extremamente bem desenvolvida em uma história de ficção científica:

Kindred: Laços de Sangue de Octavia E. Butler

Publicado pele aditora Morro Branco, e com o título “Kindred – laços de sangue”, esta é a primeira obra de Octavia lançada no Brasil. O livro foi escrito por uma mulher negra que nasceu na década de 40. Ela sabe sobre o que está escrevendo. O livro narra a história de uma mulher negra que viaja de volta no tempo e tem que salvar a vida do escravagista que irá se tornar seu antepassado.

Octavia era uma mestra das palavras. Sua narrativa única, suas histórias um murro na carra do leitor. Este livro é uma obra prima que merece ser lida.

Bônus 2: Trailler da Série

Uma resposta em “Lovecraft Country: racismo, spoilers e papel higiênico”

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