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Qliphoth e a Sétima Arte

Leia em 24 minutos.

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por Arenyel

Primeiramente, nenhum dos filmes representa completamente qualquer uma das Qliphas. Encontro apenas alguns elementos nesses filmes que se relacionam com as Qliphas. Aviso que o texto a seguir conterá MUITOS spoilers dos filmes, portanto, se você não os viu e planeja assisti-los, é melhor evitar a leitura.

Já que o último livro que li foi “Qabalah, Qliphoth and Goetic Magic” de Thomas Karlsson, vou compartilhar aqui minha perspectiva em relação a isso. Como mencionado anteriormente, nenhum dos filmes representa completamente qualquer uma das Qliphas. No entanto, é possível identificar alguns elementos nos filmes que se relacionam com as Qliphas, tendo como base a concepção apresentada nessa obra.

Lilith: Clube da Luta

Lilith marca o início da jornada, sendo regida pela própria mãe dos demônios, que “atormenta” a humanidade desde tempos imemoriais. Ela representa a porta de entrada para o outro lado. De acordo com Karlsson, ela é o anti-mundo, o oposto da existência mundana que nos envolve diariamente. Ela coexiste conosco, porém permanece oculta para a maioria. Lilith é o lado selvagem e carnal, o aspecto que tentamos reprimir para nos conformarmos com as normas sociais. Nas palavras de Karlsson, “ela é o aspecto da existência física da humanidade que não pode ser controlado. Assim, o homem tenta negar e reprimir essas partes ao criar uma estrutura para sua existência onde não há espaço para essa força selvagem. No entanto, essa força continua a penetrar nessas estruturas com sua força selvagem, acabando com qualquer tentativa de criar um Éden pacífico.”

Entre todos os filmes relacionados, considero que este é o que mais se ajusta como um todo a uma Qlipha. Nele, temos um personagem sem nome (que podemos até entender como sendo nós mesmos) que, durante o dia, leva uma vida absolutamente mundana, fazendo tudo o que a sociedade espera dele e obedecendo a todas as regras e normas impostas. Contudo, para ele, isso só traz miséria e desespero, tornando-o uma pessoa amarga e apática. Ele decide então mudar e passa a viver uma vida dupla (na verdade, mais do que dupla, pois assume diversas identidades): durante o dia, é o cidadão pacato e inofensivo que esperam que ele seja, mas, durante a noite, frequenta grupos de ajuda emocional para explorar outras pessoas debilitadas e carentes. No entanto, nem mesmo essa vida dupla é suficiente para satisfazer seus desejos, levando-o a criar outra personalidade completamente diferente de si mesmo: Tyler Durden. Tyler é a completa antítese do personagem principal, a personificação do caos e da energia selvagem que existe dentro de nós. Ele é a porta de entrada que revela ao personagem o outro lado, como o mundo realmente é e como deveria ser. Representa tudo o que há de primal em nós mesmos e nossa própria individualidade, frequentemente suprimida em prol do coletivo. Apesar de exagerado, é quase uma representação perfeita da regência de Lilith.

Bônus 1: Além disso, Lilith frequentemente é associada ao potencial feminino, já que ela é a própria força da mulher por si só, enquanto Eva representa a mulher submissa que se submete aos homens. Este filme também desconstrói diversos aspectos do que a sociedade moderna chama de “masculinidade tóxica”, destacando ainda mais o lado feminino.

Gamaliel: Amnésia

Este é um dos primeiros filmes de Christopher Nolan, um dos melhores diretores da atualidade. É altamente recomendado para os amantes de filmes policiais e definitivamente vale a pena assistir. No entanto, cuidado com os spoilers, pois eles podem comprometer significativamente a experiência do filme. Fica a dica.

Gamaliel é a demônia que atua como a sombra do anima mundi, a alma do mundo. Em outras palavras, ela representa a força oculta, a base de poder oculta. Gamaliel governa o que está escondido dentro de nós, como a sexualidade “proibida” que tendemos a reprimir. Nas palavras de Karlsson, “Gamaliel é a esfera dos sonhos e o lado sombrio de Yesod. Os sonhos que as pessoas normalmente não conseguem ou não desejam lembrar quando acordadas estão presentes em Gamaliel. Esses sonhos sombrios são reveladores e expõem facetas que não queremos aceitar. São censurados pelo superego e reprimidos na Qlipha Gamaliel”.

O filme narra a história de Leonard, um homem que sofre de amnésia e não consegue se lembrar de nada que aconteceu nos últimos 15 minutos. Ele está em busca de vingança contra o homem que estuprou e matou sua esposa, causando seu distúrbio de memória. Acompanhando sua jornada, descobrimos que sua esposa sobreviveu ao ataque, mas, para testar a amnésia de Leonard, ela pede que ele injete insulina nela diversas vezes, o que resulta em uma overdose fatal. Incapaz de lidar com a culpa de tê-la matado, Leonard cria várias ficções em sua mente para justificar sua morte. Um policial corrupto chamado John G manipula Leonard para matar criminosos. No entanto, no desfecho do filme, Leonard se cansa de ser manipulado e assume o controle, criando sua própria fantasia que o leva a matar John G.

A situação do personagem de Leonard é, no mínimo, curiosa. Ele realmente sofre de amnésia de curto prazo, o que faz com que ele não se lembre de eventos que acabaram de ocorrer. No entanto, ao mesmo tempo, ele inconscientemente manipula suas memórias anteriores ao ataque para lidar com o fato de que ele matou sua própria esposa. O filme apresenta várias cenas de sonhos que se encaixam em uma das facetas de Gamaliel: sonhos que não podemos ou não queremos enfrentar. Além disso, o próprio personagem Leonard também pode ser associado a essa Qlipha. Sua fragilidade o leva a se esconder dentro de suas próprias memórias deturpadas, tornando-o miserável, mesmo que ele não esteja consciente disso. Sua ignorância em relação à sua própria miséria o enfraquece, permitindo que todos os personagens que ele encontra se aproveitem de sua condição. Somente no final, quando ele enfrenta o que está escondido dentro de si mesmo, ele recupera sua força e assume o controle.

Samael: Matrix

De acordo com Karlsson, Samael, o consorte de Lilith, corresponde à sabedoria oculta. É ele quem nos tenta, incitando nossa curiosidade sobre os conhecimentos ocultos. Samael desfaz as ilusões e desconstrói conceitos, revelando a beleza do mundo. Nas palavras de Karlsson: “Todas as concepções e percepções comuns sobre o mundo são questionadas nesta Qlipha. O magista que alcançou este nível será capaz de enxergar através das regras e leis éticas que nos aprisionam em uma censura psíquica, obscurecendo uma grande parte de nossa consciência. Neste nível, o magista confrontará todas essas regras e leis éticas, tornando-as conscientes.”

Não vou fazer um resumo do filme, pois “Matrix” é um dos filmes mais populares de todos os tempos, e mesmo aqueles que não o viram têm pelo menos uma ideia do que acontece nele. A distopia de “Matrix” nos apresenta um mundo de controle, onde as máquinas dominam os seres humanos fisicamente e mentalmente. Como é dito no próprio filme, os humanos estão sujeitos a uma prisão que não podem ver, tocar ou sentir: uma prisão para a mente. De maneira semelhante, desde jovens, somos condicionados a adotar valores, princípios, regras e normas que frequentemente entram em conflito com nossa própria natureza. Ao questionarmos tais regulamentos, sob a influência de Samael, percebemos que muitos deles existem apenas para subjugar os mais fracos e justificar a dominação dos mais fortes. São verdadeiras amarras que fortalecem grupos de poder que atuam em nossa sociedade, frequentemente em detrimento dos indivíduos. Também é interessante destacar a dicotomia existente entre os personagens Neo e Cypher. Enquanto Neo não aceita o sistema e faz de tudo para se libertar, Cypher não aceita a realidade e faz de tudo para voltar ao sistema. Muitas pessoas são assim, incapazes de lidar com a realidade, submetendo-se ao julgamento alheio e abandonando sua individualidade em prol dos confortos e luxos que o conformismo eventualmente proporciona.

A’arab Zaraq: Mártires

Primeiramente, gostaria de oferecer algumas informações sobre o filme “Martyrs”. Trata-se de uma produção francesa que faz parte do movimento conhecido como “new french extremity”, que teve início na virada do século e se destaca pela presença marcante de violência extrema em suas obras. Pessoalmente, acredito que a violência presente no filme está longe de ser gratuita; pelo contrário, considero que ela se integra de forma bastante coerente ao enredo. No entanto, é importante salientar que “Martyrs” é um filme extremamente violento, o que pode não agradar a todos os gostos.

Infelizmente não será possível evitar alguns spoilers ao discutir o filme em detalhes. Portanto, se você estiver interessado em assistir à película, talvez seja melhor interromper a leitura a partir deste ponto.

O início do filme apresenta a personagem Lucie ainda criança, aprisionada em um cativeiro onde é constantemente submetida a torturas cruéis. No entanto, Lucie consegue escapar e é levada para um orfanato, onde conhece Anna, e as duas logo se tornam melhores amigas. Com o passar do tempo, o filme retrata Lucie, agora adulta, em busca de vingança contra uma família que ela acredita ser responsável pelo seu sequestro na infância. Após um brutal assassinato de toda a família, Lucie se vê atormentada por uma criatura que a persegue desde a infância.

Anna se dirige à casa da família em questão e, ao encontrar Lucie em um estado psicótico, acredita que sua amiga tenha perdido completamente a sanidade. Posteriormente, uma equipe tática privada chega ao local e rapta Anna. A partir desse momento, Anna passa a vivenciar as mesmas atrocidades e torturas (com exceção de violência sexual) às quais Lucie foi submetida quando criança.

Descobrimos, então, que os responsáveis pelos sequestros fazem parte de uma seita que busca replicar a experiência dos “mártires” – indivíduos que, após passarem por circunstâncias extremas de dor e sofrimento, conseguiram, literalmente, “abrir os olhos” e enxergar o que existe do “outro lado”. Eventualmente, Anna se torna uma mártir, mas com uma diferença crucial. A seita já havia produzido outras mártires anteriormente (Anna é a quarta), porém, ela é a única capaz de relatar o que viu do “outro lado”, tornando-se, assim, fundamental para a crença da seita.

De acordo com Karlsson, A’arab Zaraq é a Qlipha que “representa a batalha e é invocada pelo magista para assegurar a vitória nas batalhas da vida”. A Qlipha é simbolizada pelo corvo, que “corresponde à alma do magista quando voa em êxtase, resultado do encontro entre a vida e a morte durante a iniciação qliphótica”. Karlsson continua, afirmando que “ao passar por uma morte simbólica, o magista não mais teme a morte e, ao mesmo tempo, aprende a viver”. Nesta Qlipha, o mundo antigo do magista é submergido para que um novo mundo possa ser criado. Em outras palavras, o magista “morre” para o seu “antigo mundo”. Em relação ao filme, A’arab Zaraq se relaciona com o conceito de “mártir” e, consequentemente, com a personagem Anna. Ao longo do filme, acompanhamos Anna, uma garota inocente que eventualmente se torna cobaia da seita. Depois de ser severamente torturada, Anna descobre algo dentro de si mesma que a permite suportar a tortura e ir além. Em um momento catártico, Anna “abre os olhos” e enxerga mais além, tornando-se uma mártir e uma santa para a seita. Assim como em A’arab Zaraq, o conceito de vida e morte é muito presente no filme, estabelecendo uma correlação direta com a personagem Anna. Após vencer uma batalha espiritual (influenciada por A’arab Zaraq), ela “morre” para o mundo antigo e alcança a iluminação necessária para enxergar o próximo nível (Thagirion), perdendo todo e qualquer interesse pelo que anteriormente considerava “vida”.

Thagirion: Watchmen

Esta análise se baseia somente no filme. Não tem relação com a HQ. Dava para fazer muitas associações com Thagirion, mas por uma questão de concisão optei pelo caminho mais simples. Mas esse filme dá pano para horas de conversa. Como é uma obra bem popular, não foquei tanto em explicar o enredo do filme. Desculpa por ser tão longo. Tentei resumir ao máximo, mas foi difícil!

O filme retrata a adaptação de uma das mais importantes histórias em quadrinhos de todos os tempos, focando na busca de Rorschach, um vigilante extremamente violento, pelo assassino do Comediante, outro vigilante que já fez parte do grupo Watchmen. Rorschach acredita que o assassinato do Comediante faz parte de uma conspiração maior e teme pela vida dos outros vigilantes. Assim, ele entra em contato com todos eles para alertá-los do perigo e convencê-los a ajudar nas investigações. O que se destaca no filme, assim como nos quadrinhos originais, é a maneira como os “heróis” são retratados. Ao contrário dos super-heróis tradicionais, esses personagens são mais “humanos”, com falhas de caráter e personalidades diversas, desde o heroísmo inocente de Nite Owl até o sadismo perverso do Comediante.

Thagirion, que significa “disputa” ou “processo judicial”, é a qlipha central em relação à árvore da vida, correspondendo ao quinto ou sexto nível. Enquanto Tiphareth, sua contraparte na árvore da vida, está associada a Cristo e a outros personagens messiânicos, como Muhammad, Thagirion está ligado ao Anti-Cristo e à Besta (666). Enquanto Cristo e Tiphareth afirmam ser o único caminho para a salvação, os ensinamentos relacionados a Thagirion sugerem que o homem é capaz de se salvar.

Na minha visão, o conceito de “disputa” está relacionado ao caminho que o magista percorre quando seus dogmas são desafiados. Percebemos que o mundo é muito mais complexo do que a simples distinção entre bem e mal, e coisas que frequentemente consideramos nocivas podem, na verdade, se revelar bênçãos, e vice-versa. Thagirion também é associado ao Sol Negro, que, nas palavras de Karlsson, “é o sol interior e central que gera iluminação e força divina no homem”. É a força que nos impulsiona, mas que permanece oculta. Portanto, de acordo com Karlsson, esse nível, tanto Tiphareth quanto Thagirion, simboliza a iluminação. Em relação a Thagirion, é nesse estágio que o magista entra em contato com seu Daemon e com o Sol Negro.

Apesar de considerar que o filme como um todo se relaciona com Thagirion, nesta análise focarei apenas no personagem Rorschach, o alter ego de Walter Kovacs. Conhecemos seu passado por meio das conversas de Rorschach com o psiquiatra da prisão. Sua infância foi marcada por abusos físicos e psicológicos, pois sua mãe era uma prostituta abusiva. Flashbacks mostram que, mesmo quando criança, Rorschach já demonstrava tendências violentas. No entanto, na vida adulta, ele se torna um vigilante que entrega criminosos às autoridades competentes. Tudo muda quando decide investigar o desaparecimento de uma garotinha. Descobre que ela foi sequestrada e, ao encontrar o cativeiro, depara-se com partes das roupas íntimas da garotinha em um velho aquecedor. Ao olhar pela janela, observa os cães do local devorando o que restou da perna da garotinha. Rorschach mata os cães e espera o retorno do assassino para prendê-lo. No confronto, o assassino zomba de Rorschach, alegando não haver provas contra ele. Ao perceber que Rorschach está em dúvida sobre entregá-lo às autoridades, o assassino confessa o crime de maneira zombeteira, alegando ser um homem com problemas que precisa de ajuda. Rorschach decide matá-lo brutalmente e declara que foi nesse momento que Walter Kovacs morreu e Rorschach nasceu de verdade.

Rorschach se destaca como um personagem interessante para a discussão de Thagirion por dois motivos. Primeiro, o momento em que ele alcança sua “iluminação”, conforme descrito acima. Essa cena evoca claramente a ideia de “disputa” e “processo judicial” associada a Thagirion, como pode ser notado em um dos diálogos do filme, quando Rorschach diz: “Veja, doutor, Deus não matou aquela garotinha. O destino não a massacrou. Não foi a sorte que a entregou àqueles cães. Se Deus viu o que fizemos naquela noite, ele não pareceu se importar. Daquele momento em diante, eu sabia… Deus não fez o mundo desse jeito. Somos nós que o fazemos.” Assim, temos um personagem que, ao questionar seus próprios dogmas, aceita seus impulsos interiores e reconhece que a salvação só pode vir de si mesmo.

Outro aspecto que torna Rorschach interessante em relação a Thagirion é sua personalidade. Ao contrário do que possa parecer à primeira vista, Rorschach não é um psicopata; na verdade, ele é o personagem mais empático entre os heróis. Enquanto outros personagens vivem mais no passado do que no presente, afastam-se da humanidade ou cometem atos terríveis, Rorschach demonstra empatia pelos inocentes e desprezo pelos criminosos de forma equilibrada. No final do filme, ele é o único que se opõe ao plano de Ozymandias, não recuando mesmo quando confrontado por um ser quase divino. Enquanto os outros personagens buscam racionalizar suas más decisões ao longo do filme, Rorschach é o único que se aceita como realmente é e age de maneira consistente com seus ideais.

Assim, em consonância com Thagirion, observamos que Rorschach é o único personagem do filme que verdadeiramente entra em contato com seu Daemon e com seu Sol Negro.

Golachab: Hellraiser

De acordo com Karlsson, Golachab é o mais brutal dos poderes Qliphóticos, por se relacionar diretamente com Geburah, a ira de Deus, o aspecto do divino que busca inspirar medo no coração dos homens. Karlsson nos ensina que a teoria mais aceita é a de que a Árvore da Vida consiste em um equilíbrio entre a compaixão (Gedulah ou Chesed) e a ira (Geburah) divinas. Assim, Golachab seria um dos polos do plano mental, representando o sofrimento. O outro polo encontra-se na figura do Sephiroth Chesed, que simboliza a luxúria. Quando vistos pelo prisma do “dia”, eles se organizam em uma estrutura especial e adotam certos princípios, como a compaixão de Deus e a sua severidade. Entretanto, o Sephiroth opera sempre dentro de um universo ordenado, que pode ser ilustrado pela própria Árvore da Vida.

Por outro lado, por se tratar da sombra de Geburah, Golachab representa o desequilíbrio, equivalente à falta de limites, restrições ou compaixão. Quando vistos pelo prisma da “noite”, Chesed e Golachab atuam de forma caótica e desordenada. É nesse plano que encontramos paralelos com Hellraiser, uma obra que trata conceitualmente da busca por prazeres e sensações que ultrapassam o limiar humano e as consequências dessa busca.

Na figura de Frank, temos um hedonista que acredita já ter experimentado tudo o que há para experimentar. Para ele, não existem limites, barreiras a serem respeitadas ou fronteiras a não serem transpostas. É um personagem claramente regido por Golachab em sua busca. Já os Cenobitas podem ser vistos como a personificação quase perfeita de Golachab, sendo seres que buscam de maneira estoica extrapolar os limites da experiência humana, especialmente através do uso excessivo da dor e do prazer, sempre interligados. Clive Barker usa os temas do sexo e da violência para expressar suas experiências na “noite”, em especial suas vivências no mundo BDSM.

Aqui, podemos fazer uma comparação com as palavras do próprio Karlsson: “As contrapartes qliphóticas, luxúria e sofrimento, não existem dentro dessas estruturas, mas operam em caos. Aqui elas são comumente permutáveis, e a luxúria passa a ser sofrimento e o sofrimento se transforma em luxúria. Podemos encontrar uma forma de complexo sadomasoquista nesses dois Qliphóticos, quando eles representam ao mesmo tempo a luxúria e o sofrimento, a atração e a repulsa, o sexo e a morte.”

Gha’agsheblah: Crash

O filme apresenta a narrativa de James e sua esposa Catherine, ambos pessoas muito bem-sucedidas, mas que não conseguem mais encontrar prazer sexual em relações rotineiras, mesmo que com pessoas fora do casamento. No filme, o casal não apenas possui uma relação aberta, mas também se incentivam na busca por casos que possam saciar seus desejos sexuais. No entanto, somente Vaughan, um indivíduo obcecado por acidentes automobilísticos e líder de um grupo com o mesmo fascínio, é capaz de oferecer a satisfação sexual buscada pelo casal.

Antes de mais nada, este filme nos mostra como o ser humano tem a tendência de esconder seus instintos animalescos. Mesmo pessoas como James e Catherine, que têm um relacionamento aberto e, de certa forma, já estão mais “livres” de amarras morais, podem possuir instintos e desejos ainda mais selvagens e “imorais”. Apenas ao se “despirem” de suas próprias noções e concepções, os personagens conseguem descobrir sua verdadeira identidade: fetichistas. A relação com Gha’agsheblah, além do encontro do verdadeiro “eu”, um dos aspectos mais suprimidos pelo ser humano é a sua própria sexualidade. Por isso, este é um aspecto humano que serve como exemplo quase ideal de como é difícil entrar em contato com nossos próprios desejos ou anseios mais íntimos.

Os personagens do filme possuem um fetiche por acidentes automobilísticos e tudo o que deles decorre, como morte, mutilações, cicatrizes, veículos destruídos, etc. Apesar de serem coisas “feias”, que em um primeiro momento causam desconforto, ainda assim existem pessoas que se excitam sexualmente com elas. De maneira semelhante, todas as pessoas possuem coisas que podem ser consideradas “feias” pela sociedade, mas que sentimos uma conexão imediata quando as vemos, desde hobbies inocentes (videogames, filmes e outras mídias que podem ser consideradas extremas), passando pela religião (Satanismo e outras religiões que ainda sofrem preconceito) até hobbies considerados mais extremos (drogas, BDSM, fetiches, etc).

Uma das ideias que o filme traz é exatamente esse encontro com o seu íntimo, assim como acontece em Gha’agsheblah. Gha’agsheblah corresponde à última Qlipha antes da tríade superior e rege todas as Qliphas que se encontram abaixo do Abismo. De acordo com Karlsson, as sete esferas Qliphóticas inferiores se relacionam com a concretização de ideias, enquanto as três esferas superiores se relacionam com as ideias propriamente ditas e a consciência divina. É em Gha’agsheblah que o iniciado deixará os níveis concretos para adentrar ao núcleo abstrato presente na tríade superior. Aqui, o iniciado é “despido”, deixando para trás os sete atributos da vida (as ilusões) para se encontrar diretamente com a morte.

Ainda de acordo com Karlsson, “Gha’agsheblah representa um nível mais elevado de misticismo erótico. Nesse nível, luxúria e sofrimento transcendem e comutam entre si, gerando uma energia extática que vai além da polaridade entre atração e repulsão. O adepto vai além das diferenças entre luxúria e sofrimento. A energia da morte, Thanatos, é transformada na energia da vida, Eros, e o vazio do Abismo é preenchido com uma energia que permite o renascimento metafísico em meio à morte”.

Satariel: A Nona Configuração

O filme foi dirigido e escrito por William Peter Blatty, o escritor de “O Exorcista”, e foi o vencedor do Globo de Ouro de Melhor Roteiro em 1980. Ele possui uma peculiaridade interessante: embora seja ambientado nos Estados Unidos, na verdade, foi filmado em castelos na Europa. Destaco especialmente as tomadas internas, que foram filmadas em um castelo em Budapeste, na Hungria. Há muitos detalhes maravilhosos para quem observa com mais atenção. Como sempre, esta análise conterá spoilers. Fica a dica.

Perto do fim da Guerra do Vietnã, um número excepcional de soldados americanos começou a apresentar sintomas de psicose. A maioria deles estava em combate e não tinha histórico de transtornos mentais. Esse caráter epidêmico, somado à natureza polêmica da Guerra do Vietnã, levou as autoridades americanas a questionarem se muitos desses soldados não estavam fingindo tais transtornos. Para investigar esse fato, o Governo Americano estabeleceu uma rede secreta de centros de estudos e clínicas psiquiátricas. O último desses centros, o Centro Nº18, era altamente experimental e localizado em um castelo abandonado no noroeste do Pacífico, nos EUA. O filme trata sobre a chegada do Dr. Hudson Kane ao Centro e sua metodologia pouco ortodoxa para o tratamento dos pacientes.

De acordo com Karlsson, Satariel é a Qlipha que corresponde ao passo final em direção ao divino. Nela, o adepto se dirige ao centro do “submundo” para se encontrar com seu regente (Ereshkigal, Hel, Hades, Lucifer, Satã ou outra entidade, dependendo da crença). Satariel corresponde ao oculto, aos mistérios. Representa os princípios que contêm todas as respostas, mas que permanecem escondidos na escuridão. Os demônios de Satariel são associados ao absurdo, ao delírio e à confusão, sendo regidos por Lucifuge (que evita a luz) e não por Lucifer (que traz a luz).

É em Satariel que se experimenta o sopro do dragão, Tehom. Nas profundezas, no ponto mais escuro, a escuridão se transforma em luz. O adepto alcança a verdadeira visão e o terceiro olho começa a se abrir.

Como principal vínculo com Satariel, temos o personagem principal, o Dr. Hudson Kane, ou melhor, o coronel “Killer Kane”. Ao longo do filme, descobrimos que o Dr. Kane na verdade é um renomado combatente da Guerra do Vietnã conhecido por suas atrocidades. No entanto, após um erro administrativo, Kane passa a assumir a identidade de outro Coronel Kane, um renomado psiquiatra que também trabalha para o exército. Killer Kane se convence de que realmente é o psiquiatra, abandonando sua antiga identidade. Assim, ele se torna o extremamente bondoso e gentil Dr. Hubard Kane. No entanto, tudo não passa de uma farsa que ele arma contra si mesmo, uma maneira de lidar com o trauma de tudo que vivenciou no campo de batalha.

Um dos principais temas do filme é a existência ou não de Deus. Um dos pacientes, o astronauta Cutshaw, defende que Deus não pode existir em um mundo tão brutal, onde parece que o mal sempre vence. Kane discorda e tenta argumentar que a prova da existência de Deus é exatamente a bondade pura e altruística que existe dentro das pessoas, uma bondade que muitas vezes desafia até mesmo os instintos animais mais básicos, como a sobrevivência. No entanto, ele não consegue convencer Cutshaw, pois não consegue prover um único exemplo de tal bondade.

No final do filme, Cutshaw foge do centro psiquiátrico e é brutalmente agredido por uma gangue de motociclistas em um bar. Uma das funcionárias liga para o centro psiquiátrico, e Kane se dirige ao bar para resgatar Cutshaw. Ao chegar no bar, por ter assumido uma personalidade gentil e passiva, Kane também passa a ser agredido pela gangue. No entanto, após sofrer inúmeras humilhações e agressões e ao ver que seu paciente está prestes a ser violentado, Kane assume sua antiga personalidade e mata todos os membros da gangue. Pouco tempo depois disso, agora com sua personalidade completamente restaurada, Kane se suicida em uma tentativa de provar para Cutshaw seu altruismo. Ele tem êxito e Cutshaw é curado no processo.

Ao atingir Satariel, o indivíduo adentra as profundezas de sua própria consciência, seu lado mais obscuro. Percebemos durante o filme que Kane procura sempre esconder seu verdadeiro eu, de maneira parecida como Karlsson descreve Satariel, que “é aquele que mantém segredos e esconde algo”. No entanto, Kane é constantemente assombrado por sonhos sobre seu passado. Podemos inferir que a verdadeira natureza de Kane, apesar de suprimida, ainda existe nas profundezas descritas por Karlsson. Ao confrontar essa natureza violenta, Kane não só consegue salvar seu paciente da ameaça imediata, mas também adquire uma consciência mais ampla. A partir desse ponto, ele tem uma nova visão do mundo, baseada nessa nova consciência adquirida.

Assim, ele opta por sacrificar sua própria vida. A vida de um cruel combatente de guerra que cometeu as piores atrocidades possíveis e que ainda carrega dentro de si toda aquela violência. Mas ao fazer esse sacrifício, ele resgata a vida de um promissor astronauta. Mas, mais do que isso, ele se salva a si mesmo.

Ghagiel / Teorema

Este filme foi dirigido por Pier Paolo Pasolini, o mesmo diretor de “Salò, ou os 120 Dias de Sodoma”, que é conhecido por incorporar muito simbolismo em suas obras, e em “Teorema” não é diferente. Apesar do filme ter um caráter eminentemente político, também é possível interpretar a obra de outras maneiras.

O filme narra a história de um misterioso visitante que chega para passar alguns dias com uma família italiana tipicamente burguesa. Gradualmente, todos os membros da casa (o pai, a mãe, a filha, o filho e a empregada) são seduzidos pelos encantos desse visitante e envolvem-se em relações sexuais com ele. Após sua partida repentina, os membros da família precisam lidar com as emoções desencadeadas por essa paixão súbita.

De acordo com Karlsson, Ghagiel é a última Qlipha antes de Thaumiel e está associada ao Diabo em sua forma mais masculina e sexual, onde seu falo é o eixo do mundo. O Deus masculino, que está presente na maioria das religiões, corresponde a esse eixo e é ele quem cria e mantém o mundo e sua ordem. O eixo do mundo é o falo do Deus. Ghagiel representa as forças do apocalipse que quebram o falo e destroem o mundo. Das cinzas, o falo será erguido novamente, criando um novo eixo para que um novo universo volte a girar.

Em relação ao filme, existem dois pontos interessantes. Por um lado, temos uma representação quase literal da imagem evocada por Ghagiel: um estranho misterioso que, com seu carisma, consegue facilmente seduzir todos aqueles que vivem na residência onde ele se hospeda. Poderíamos facilmente caracterizar esse personagem como o Diabo ou alguma de suas representações (e, com certeza, as pessoas mais puritanas assim o fizeram na época do lançamento do filme), uma vez que sua breve passagem pela residência destrói todos os laços familiares das pessoas lá presentes, e sua partida provoca verdadeiro desespero em todos.

Por outro lado, temos uma interpretação mais abstrata, mais condizente com o verdadeiro significado de Ghagiel. O visitante misterioso é uma figura que aparece na vida das pessoas para destruir o conforto de seu mundo cotidiano e forçá-las a olharem para dentro de si mesmas e a agirem com base nisso. Assim, o visitante se torna uma figura neutra, nada mais do que um espelho.

Da mesma forma que na obra, também é interessante perceber que as pessoas terão reações diferentes quando confrontadas com essa realidade presente dentro de si mesmas. O pai decide doar sua empresa aos seus funcionários e se desfazer de todos os seus bens. A mãe busca conforto para sua solidão nos braços de jovens rapazes. A filha entra em estado catatônico. O filho tenta criar uma nova técnica de pintura para esconder suas próprias iniquidades. E, por fim, a empregada se torna uma santa (literalmente).

Analisando o filme por essa perspectiva, podemos concluir que o céu ou o inferno dependem, sobretudo, de nós mesmos.

Thaumiel: V de Vingança

Pelo meu entendimento, Thaumiel representa o “destino final” no caminho Qliphótico, personificado por Satan e Moloch, dois príncipes que governam seus domínios de forma uníssona, simbolizando, entre outras coisas, a dualidade e a polaridade presentes em todas as coisas

. Em relação a “V de Vingança”, ao analisarmos a personagem principal, Evey Hammond, podemos perceber que ela passa por uma jornada que a transforma em alguém com uma personalidade e valores diametralmente opostos aos que possuía no início do filme. Dessa forma, encontramos dois elementos que relacionam o filme a Thaumiel: a própria jornada e a evolução da personagem Evey.

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