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Moby-Dick como Metáfora da Obsessão em Star Trek

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Shirlei Massapust

Em 20/08/2023 comunicadores oníricos fizeram uma tentativa de demonstrar conhecimento do conteúdo de mídias físicas disponíveis em minha casa (DVDs e livros impressos) nas quais eu nunca havia tocado por pertencerem à coleção particular de minha irmã. Nesta noite sonhei que estava numa sala de aula cheia de alunos adultos onde a professora lecionava sobre o tema vampirismo. Ela passou dever de casa me incumbindo de pedir permissão à minha irmã Sheila para consultar materiais relacionados ao filme onde o personagem Spock morreu. Isto é, afilme Star Trek II: The Wrath of Khan (1982).

Durante o sonho eu quiz repreender a docente pelo absurdo da tarefa, todavia não pode falar. Antes de acordar, ela disse-me para concluir a pesquisa até o dia seguinte. A primeira coisa que fiz foi assistir ao filme pela primeira vez na vida, só para confirmar a inexistência de traços vampíricos. Contudo, alguns livros me chamaram a atenção.

JORNADA NAS ESTRELAS II: A IRA DE KHAN. DISCO 2. Paramount Collection. Produzido por Videolar® sob licença da Paramount Home Entertainment, em 2002. Cena reproduzida no programa DVD Suite, capturada em print da tela no minuto 16:58.

Além do livro de direito Statute Regulating (…) Commerce,[1] encontramos clássicos da literatura terráquea, dentre eles Moby-Dick de Herman Melville, King Lear de William Shakespeare. The Inferno de Dante, Paradise Lost & Paradise Regained de John Milton, outra cópia de Paradise Lost de John Milton, mais uma genérica Holy Bible.

Nós sabemos que a bíblia está lá como metáfora de um experimento de panspermia dirigida por astronautas humanos do século XXIII. Leonard Nimoy definiu o “projeto Gênesis” como “um evento capaz de transformar um planeta inabitável num mundo rico e verdejante, capaz de sustentar a vida” o qual “deveria ser uma metáfora visual para o principal tema do filme, e para a morte e o renascimento de Spock”.[2]

A metáfora da queda do paraíso foi anteriormente explorada no título do episódio This Side of Paradise, dirigido por Ralph Senensky. Porém em The Wrath of Khan a estante de livros pertence ao antagonista Khan Noonian Singh, interpretado por Ricardo Montalban. O personagem Khan é um líder terráqueo, com alto coeficiente intelectual, exilado num planeta que subitamente morreu atingido por resquícios do desastre natural que despedaçou um planeta vizinho. (Como Marte jaz seco e sem vida macroscópica ao lado dos restos despedaçados de 16 Psiquê). Todas as mensagens nos livros afluem para o mosaico da personalidade de Khan, desde o combo de obras sobre anjos diabólicos exilados no Inferno até a exposição dos males de origem humana causados pela adulação.

O ator Ricardo Montalban comentou que ele efetivamente teve de ler o livro Moby Dick durante seu preparo:

Deixe-me voltar para Star Trek, a série de TV. De repente, me oferecem um papel em um episódio de Star Trek intitulado “Space Seed”. Eu estava familiarizado com o show e realmente pensei que era algo especial. Além disso, o papel de Khan era muito diferente. Este não era um vilão padrão, pois ele pensava fora da caixa. Khan tinha profundidade, inteligência e não era totalmente mau. De fato, algumas de suas ideias eram genuinamente nobres. Sua vilania, na verdade, surgiu de um apetite avassalador por onipotência. (…). Quando me ofereceram o papel em Star Trek II, que mais tarde se tornou The Wrath of Khan, li o roteiro e achei muito bom. E a parte de Khan foi interessante, porque você não podia deixar de se perguntar: “O que aconteceu com aquele homem que foi expulso há tantos anos?” (…) Portanto, Khan não é louco, mas obcecado, fora de controle. Nick Meyer também me deu uma cópia de Moby Dick, porque achava que Khan deveria ser consumido por sua busca por vingança da mesma forma que Ahab foi consumido por sua busca pela baleia.[3]

Leonard Nimoy também opinou sobre o personagem antagonista:

Star Trek II contava ainda com um vilão extraordinário: o obcecado Khan, que prometeu acertar as contas com Kirk após ter sido deixado por ele num planeta inóspito. Quando Harve Bennett sentou-se para assistir a todos os setenta e nove episódios de Star Trek, o que mais chamou sua atenção foi Space Seed, onde o ator convidado era Ricardo Montalban vivendo Khan, um “super-homem” criado pela engenharia genética. A última cena do episódio mostra Kirk e Spock questionando qual será o futuro da “semente” que o capitão “plantou” ao deixar Khan abandonado. Jornada II responde a essa pergunta.

Para nossa sorte, Ricardo Montalban concordou em reprisar o papel e o fez com uma maravilhosa energia teatral, criando um padrão elevado de interpretação, que todos nós tentamos alcançar. De sua maravilhosa primeira aparição como Khan, passando da gradual decomposição de seu autocontrole, que revela a profundidade de sua obsessão, até sua demência final irreversível, Montalban dava tudo o que se pedia dele em cena. Quando o filme foi lançado, a reação a Khan foi extremamente positiva: o público descobriu nele o vilão de Star Trek que eles mais amavam odiar![4]

Interessantemente tudo no cenário casa bem com a presença de um tabuleiro de xadrez onde peças brancas combatem peças negras. Os antagonistas são as peças brancas, grupo étnico homogêneo combatendo a frota diversa e heterogênea. Entretanto, ainda há mais para ser lido nas entrelinhas. “Space Moby Dick” foi o título originalmente dado por Gene Roddenberry a um rascunho escrito por ele em 22/04/1966, que acabou renomeado como Obsession por Art Wallace, cujo nome viria a aparecer creditado como roteirista deste episódio, quando transmitido pela primeira vez no dia 15/12/1967[5], muito embora exista um documento atestando pagamento de $ 2500 USD pelo serviço de mera revisão.[6]

Na trama somos informados que Kirk sofreu uma experiência traumática em sua juventude, quando servia na nave U.S.S. Farragut. Durante uma missão no planeta Tycho IV, metade da tripulação morreu vitimada pela predação de uma forma de vida nunca antes vista. Onze anos depois Kirk reencontrou a coisa pairando na superfície de Argus X e não descansou enquanto não encontrou um meio de liquidá-la. O problema é que aquilo era algo tão incomum que só ele acreditava tratar-se de coisa viva. Enquanto isso os demais tripulantes da U.S.S. Enterprise questionavam se seu capitão estaria obcecado com uma fantasia delirante, uma ideia fixa. O diretor do episódio, Ralph Senensky, explicou:

Percebi desde o primeiro dia que era uma transferência da batalha do Capitão Ahab contra Moby Dick, com cenário transferido do oceano para o espaço sideral. Mas o roteiro era mais do que a luta do romance entre um homem e uma grande baleia; era uma história de mistério, se não um ‘whodunit’, um ‘whatisit’. E era para além disso; foi uma penetração profunda na psique de Kirk, sua luta interior para superar a culpa por suas ações em um incidente passado”.[7]

O pesquisador da série Allan Asherman bem observa que “talvez o estudo mais conhecido sobre obsessão seja o romance Moby Dick, de Herman Melville. Felizmente, para a U.S.S. Enterprise, a motivação do Capitão Kirk neste caso não era obsessão”.[8] E foi um alívio quando todos concluíram que a necessidade da caça ao monstro era real.

Afinal, o que realmente era aquilo? Um organismo vivo inteligente, constituído pelo elemento metálico gasoso dikirônio, que existe em um estado limítrofe entre matéria e energia. Quando visto por olhos humanos, seu tamanho fluí entre dez e sessenta metros cúbicos; e seu aspecto lembra uma nuvem gasosa. A nuvem exala odor adocicado, causador de torpeza e sufocamento, parecido com “algo embebido em mel[9]”. Sobreviventes dos ataques descreveram a experiência como intensamente fria.

Este predador absorve o ferro dos glóbulos vermelhos de vertebrados, extraído sem lacerar os corpos. Também consegue remover o conteúdo de garrafas sem desarrolhar as tampas, confirmando sua habilidade de atravessar sólidos. Portanto, Spock poderia estar errado ao concluir que isto se camufla modificando a estrutura molecular. No romance Flatland (1884) o escritor Edwin Abbott imagina que um organismo bidimensional enxergaria um humano tridimensional como, por exemplo, um conjunto de três círculos – um grande entre dois pequenos – se visse alguém à altura dos braços e da cintura. Do mesmo modo, em The Monster from Nowhere (1939), de Nelson Bond, um homem tridimensional é incapaz de dominar o movimento em quatro dimensões espaciais. Mas ele enxerga algo que entra e sai da Quarta Dimensão como conjuntos de bolhas.

O episódio Obsession poderia haver constado entre as obras de ficção-científicas com potencial paradidático, elencadas por Michio Kaku em Hyperspace (1994), se a aparência de não-corporeidade do monstro decorresse da sua presença em dimensões extra. (Se as bolhas fossem suficientemente pequenas e numerosas, veríamos uma nuvem).

No roteiro, aplicando a lógica à coleta de dados disponível, o oficial de ciências Spock teorizou que o monstro utiliza campos de gravidade para propulsão. As varreduras de Spock revelaram que a criatura poderia “se jogar fora da sincronização do tempo”, permitindo que estivesse “em outro lugar” quando alvejada pelas ineficazes armas da Frota Estelar… Embora Gene Roddenberry e Art Wallace não tenham nomeado tal monstro, fontes oficiais se referem àquilo como “dikironium cloud creature” (Star Trek Encyclopedia, primeira edição, p. 77) e “vampire cloud” (Star Trek Concordance; segunda edição, p. 140).[10]

Fãs localizaram outros monstros com traços vampíricos nos produtos da franquia, dentre eles uma criatura sugadora de sal capaz de assumir forma humana no episódio The Man Trap, escrito por George Clayton Johnson e dirigido por Marc Daniels, exibido pela primeira vez em 08/09/1966. Uma vampira benfazeja auxilia a Frota Estelar a combater uma infestação de zumbis no gibi Infestation, nº 1, com roteiro de Dan Abnett e Andy Lanning. E um vírus desenvolvido em laboratório transforma humanos em hematófagos na novela Bloodthirst.[11] Extraoficialmente, o ficcionista brasileiro Ademir Luiz colocou a filosofia trekker como antônima da vampirologia, no romance Hirudo Medicinallis, Ou Carta Aberta de um Vampiro de Brinquedo ao Espectro de Orson Welles (2002), livro vencedor do Prêmio Cora Coralina 2002.

Talvez não seja inútil observar que, no episódio Obsession, há um momento em que parece que Kirk e Garrovick cometeram suicídio altruístico na tentativa de abater o nevoeiro vampiro explodindo uma bomba de antimatéria. Já em The Wrath of Khan somos ludibriados pelo suicídio altruístico de Spock, que ressuscita no filme seguinte.[12] O próprio Khan comete suicídio, como um homem bomba, perseguindo sua obsessão.

Enfim, parece que Moby Dick em Star Trek sempre significou o perigo de perda da razão decorrente da frustração pelos sucessivos malogros no processo de caça à nuvem mortífera pelo Capitão Kirk (em Obsession) e da caça ao próprio Capitão Kirk por Khan (em The Wrath of Khan). Willian Shatner registrou que, no filme de 1982, por direito contratual, Gene Roddenbery foi formalmente creditado como “consultor executivo” embora seu lugar haja sido informalmente ocupado por Harve Bennet. Discutiram com Roddenbery sobre cento e oitenta detalhes. Segundo Leonard Nimoy, “ele resistiu a tudo, cada sugestão, cada ideia”.[13] Notoriamente sua criação restou distorcida.

Mas existe uma lenda urbana onde Gene Roddenbery teria adaptado doutrina espírita canalizada por médiuns do Lab-9.[14] Isso explicaria por que sua vampiresca nuvem de dikirônio, em teoria, indiretamente inspiraria a obsessão, se aproximando do conceito duma variedade de “vampiro” como espírito humano desencarnado indutor de obsessão, um espirito habitante do “Umbral” – uma dimensão de eflúvios ruins – presente nos ensinamentos da Federação Espírita Brasileira (F.E.B.) e grupos similares.

Notas:

[1] No seriado Star Trek tripulações de cargueiros costumavam causar problemas interferindo com culturas primitivas. Para evitar esse imbróglio os cidadãos da Federação criaram a Primeira Diretriz, que diz: “É proibido a todas as naves e membros da Frota Estelar interferir com o desenvolvimento normal de uma cultura ou sociedade. Essa diretriz é mais importante do que a proteção das naves ou membros da Frota Estelar. Perdas são toleradas, caso sejam necessárias para a observação dessa diretriz”. (Deste modo seria prevenido o paradoxo de Fermi. Porém, nem todos os membros de uma civilização galáctica obedeceriam a tal norma e mesmo aqueles que o fizessem difeririam em suas interpretações).

Notas:

[2] NIMOY, Leonard. Eu Sou Spock. Trad. Cristina Nastasi. São Paulo Mercuryo, 1995, p 170.

[3] SHATNER, Willian & KRESKI, Chris. Star Trek Movie Memmories. New York, Harper Paperbacks, 1994, p 160-162.

[4] NIMOY, Leonard. Eu Sou Spock. Trad. Cristina Nastasi. São Paulo Mercuryo, 1995, p 172.

[5] OBSESSION (EPISODE). Em: Memory Alpha. Acessado em 20/08/2023. URL: <https://memory-alpha.fandom.com/wiki/Obsession_(episode)>.

[6] ALEXANDER, David. The Authorized Biography of Gene Roddenbery. New York, RoC., 1995, p 310-311.

[7] SENENSKY, Ralph. Obsession: Filmed October 1967. Em: Ralph’s Cinema Trek. Acessado em 20/08/2023. URL: <https://senensky.com/obsession>.

[8] ASHERMAN, Allan. The Star Trek Compendium. New York, Pocket Books, 1989, p 92.

[9] O mais hippie entre os telespectadores lembrará do fumo artesanal de barbante amolecido em mel, sendo o barbante tradicionalmente feito de fibras de cânhamo, arbusto do gênero Cannabis.

[10] DIKIRONIUM CLOUD CREATURE. Em: Memory Alpha. Acessado em 20/08/2023. URL: <https://memory-alpha.fandom.com/wiki/Dikironium_cloud_creature>.

[11] ARE THERE VAMPIRES IN THE STAR TREK UNIVERSE? Em: Science Fiction & Fantasy. Posto online em maio de 2014. Em: <https://scifi.stackexchange.com/questions/56160/are-there-vampires-in-the-star-trek-universe>.

[12] Spock morre em Star Trek II: The Wrath of Khan (1982), de modo que a sequência Star Trek III: The Search for Spock (1984) trata quase exclusivamente da ressurreição do personagem. Enquanto os jovens fãs choravam, na tela do cinema se via o seguinte: O reator que habilita a velocidade de dobra da nave U.S.S. Enterprise foi atingido pela ofensiva de Khan e começou a vazar radiação. Todos morreriam lá dentro. Spock, pensando logicamente, percebeu que seria fácil consertar o defeito desde que alguém se sacrificasse trabalhando sob o efeito corrosivo da radiação. Ele fez o que tinha de fazer. Cego, queimado e moribundo, Spock pronunciou suas últimas palavras: “As necessidades de muitos sobrepõem-se às necessidades de poucos… ou a de um só”. Assim terminou uma das cenas mais icônicas, tocantes e inspiradoras da história da ficção-científica. Fim? Era o que todos pensavam. Contudo, antes do suicídio altruístico, Spock usou o toque neural vulcano para deixar o Dr. McCoy inconsciente – impedindo que este o detivesse. – Este simples toque teve o efeito colateral de fazer upload de suas memórias no cérebro do humano. McCoy enlouqueceu. Houve velório e funeral. No fim do filme vemos a cápsula contendo o corpo pousada no solo de um planeta cultivado pelo projeto Gênese. A química regenerou, rejuvenesceu e ressuscitou o cadáver na sequência de 1984. Mas o corpo estava vazio de pensamentos. Para concluir a restituição à vida do personagem foi necessário levar o redivivo e suas memórias, contidas no louco McCoy, para o planeta Vulcano. Lá pessoas vestidas quase à moda egípcia transferiram as memórias no corpo certo, curando a ambos.

[13] SHATNER, Willian & KRESKI, Chris. Star Trek Movie Memmories. New York, Harper Paperbacks, 1994, p 138.

[14] Está proibida de não pensar besteira qualquer pessoa que haja visto a série The UnXplained (2019-2023) produzida e apresentada por William Shatner, no History Channel, depois que o documentário Ancient Aliens: Is “Star Trek” Real? (S11, E8), também do History Channel, foi copiosamente reprisado no mesmo canal! A lenda urbana diz o seguinte: No início de 1975, Roddenberry foi abordado por um ex-piloto britânico chamado Sir John Whitmore, que era associado a uma organização dedicada à pesquisa psíquica, chamada Lab-9, sediada em Ossining, NY. Médiuns do Lab-9 canalizavam mensagens de extraterrestres integrantes do “Conselho dos Nove”. Estes afirmaram serem as antigas deidades egípcias. O Lab-9 incumbiu Roddenberry de educar o público leigo criando ficção-científica baseada no que aprendeu com eles, auxiliado pelo assistente Jon Povill. Roddenberry positivamente transmitiu as mensagens dos extraterrestres. Isto incluiria a Primeira Diretriz dos cidadãos da Federação.

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