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Ludovina Ferreira: entre danças, in-corporações e espíritos

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Por Gilmara Ígnea
Publicado originalmente no Nox Arcana

Ludovina Ferreira foi uma mulher praticante de magia pajé, moradora da cidade de Belém do Pará, durante o século XVIII, período em que a cidade estava sob olhar inquisitorial, primeiro pelos olhos dos comissários que estavam na região e, depois, pela Visitação do Santo Ofício – que fiscalizou a cidade por cerca de 10 anos (1763-1773). Seu nome surgiu em documentos do início do século, em que ela apareceu como acusada de ser feiticeira e ter pacto com o Diabo. Na década de 1730 ela foi descrita na documentação como uma mulher de cerca de trinta anos de idade e casada. Os documentos informam que ela se casou novamente, ficando viúva das duas vezes, criando a sua filha Inácia da Encarnação em uma roça, juntamente com outras mulheres. Ela era reputada por seus rituais, por seus poderes mágicos, pelo contato com o além, por sua relação com os animais, criando sobre si a imagem de uma “insigne feiticeira”, como foi denominada por Luísa de Jesus, em uma denúncia feita em 1737. 

Nos documentos datados entre os anos de 1733 e 1764, encontram-se outras denúncias que incriminaram Ludovina. Os relatos discorriam sobre diversos rituais para distintos objetivos como: a cura de doenças ou malefícios; vinganças; proteções; adivinhações do futuro e afins; contrafeitiços; descoberta de malefícios; magia para o amor; ritual para o retorno à vida, entre outros. Geralmente durante esses rituais Ludovina dançava, falava em língua nativa, tangia o seu maracá e chocalho, assobiava, usava ervas, máscaras, fumava, cantava, entre outros detalhes. 

Ela fazia evocações e se comunicava com os espíritos dos pajés, que lhe ajudavam dando orientações. Ela também possuía relações íntimas com os animais como aranhas, cobras, pássaros negros, entre outros. Os seus rituais eram realizados à meia-noite, no escuro, geralmente em um quarto afastado, próximo à floresta, e com os elementos citados acima, além do uso de trajes de onças, jacarés e bichos do mar, o que se configurou aos olhos dos colonizadores como algo relacionado ao Diabo. Ademais, durante esses rituais, segundo as denúncias, ouviam-se assobios, vozes roucas do além e estrondos nos telhados, fatos que assombravam a população cristã, e, por isso, essas práticas foram denunciadas e demonizadas. 

Um dos primeiros relatos citando Ludovina – suas danças e o contato com os espíritos – surgiu em 1735, quando uma mulher chamada Inácia Correia prestou depoimento ao comissário do Santo Ofício, relatando que Ludovina cantava em língua da terra, que usava ervas para curar enfermidades e que ela, a denunciante, havia presenciado uma dança, que fazia descer dos céus “uns camaradas” e a tudo ela denominou feitiçaria. Essa narração descreve Ludovina como uma mulher que cura por meio de seus rituais com dança, língua indígena e contato com os espíritos, chamados por alguns de pajés e por outros de demônios.

Alguns relatos sobre Ludovina, descritos no Caderno de Promotor, custaram-lhe uma denúncia ao Vigário Geral que lhe prendeu. No entanto, durante o processo, as testemunhas afirmaram que juraram em falso, negando as próprias denúncias. Por isso, Ludovina foi liberta da prisão, mas não sabemos o tempo e as condições em que ela teve que enfrentar ao ser presa. Um fato interessante é que logo o Vigário Geral perdeu o cargo e ficou com demência, segundo a carta do frei Manoel de Almeida enviada aos inquisidores.

Ainda em 1735, o comissário do Santo Ofício Frei Diogo da Trindade enviou uma carta aos inquisidores em Lisboa. Ele descreveu Ludovina e suas discípulas, que moravam todas juntas na mesma casa, onde faziam bailes com canções em línguas estranhas e viagens noturnas a descampados para realizar pactos implícitos com o Diabo. O comissário acrescentou que Ludovina fazia aparecer uma figura em forma de bode e que ela coabitava com ele e, por isso, ele estava inconformado de Ludovina ter sido solta da prisão, pois para ele tudo estava provado e, assim, solicitou que os inquisidores enviassem editais para serem publicados na igreja. 

Em 1736 Josefa Maciel e Luísa de Jesus denunciaram Ludovina ao comissário Manoel de Almeida e afirmavam que ela após ter muito contato com os pajés, ficava quase morta e que os pajés indicavam quem poderia se curar ou quem iria morrer, como foi o caso da irmã de Luísa, que morreu no mesmo dia que Ludovina havia informado. Além disso, Luísa descreveu uma ocasião em que uma cobra ao se aproximar delas, foi impedida por Ludovina, que conversando com a cobra, fez com que ela fosse embora. Luísa afirmou que Ludovina era uma “insigne feiticeira”, pois além de tudo isso, ela presenciou um ritual com cantos, que a casa chegou a tremer, e que Ludovina pedia aos espíritos que lhe trouxessem Lourenço, irmão de Luísa, o qual logo bateu em sua porta. Impressionada, Luísa ainda ouviu Ludovina lhe explicar que era bom ter trato com os espíritos, já que eles informavam e revelavam tudo e que, por isso, ela não tinha medo da justiça, pois eles, os espíritos, logo viriam avisá-la e livrá-la da perseguição. Segundo Luísa, Ludovina ainda disse que não era bom ter trato com Deus e que todo esse ritual foi com o objetivo de provar a ela o poder dos espíritos. 

Ludovina descobria coisas ocultas, era protegida pelos espíritos, curava pessoas e adivinhava os indivíduos que faziam malefícios e causavam doenças, tudo com ajuda dos espíritos, descritos por Luísa como demônios ou pajés, os “bons medianeiros”, como afirmava Ludovina. Além disso, ela foi denunciada por diversas pessoas, até 1764, que afirmavam os seus poderes e descreviam os seus rituais, em que a Dança, as in-corporações e a presença dos espíritos ficavam evidentes, levando-nos a acreditar que o corpo de Ludovina engendrava relações entre esferas, a partir do estado de êxtase, similar ao estado xamanístico no sabá das bruxas. 

Por meio da Dança, ela criou e recriou repertórios que se somavam a movimentos, gestos, cantos, músicas, horários apropriados (meia-noite), hábitos rituais e elementos diversos de natureza performática ritual que alterava o estado de sua consciência. A dimensão corporal, indicou um entrelaçar da matéria com o além, poder que perpassa os corpos extra-humanos e permite o acesso ao incognoscível, alterando a realidade. Essas performances com danças possuíam caráter liminar e estavam presentes dentro dessas práticas mágicas, assegurando a importância da presença do corpo e da dança nos rituais de magia.

Ludovina incomodava tanto os comissários do Santo Ofício e a igreja, os quais entendiam tudo aquilo como escandaloso que, na visão católica, esse corpo que transitava entre os mundos precisava ser reprimido e castrado, pois era uma ameaça à ordem cristã e à fé. Mas, isso não aconteceu com Ludovina. Ela, mesmo tendo sido presa, perseguida e ter enfrentado os burburinhos a seu respeito, exerceu a sua liberdade corporal dentro de seus rituais por décadas, praticando as suas magias, não se submetendo, e permitindo que seu corpo pulsasse, dançasse, experimentasse e atravessasse portais da existência, acessando espíritos, transformando a realidade e, sobretudo, colocando em dúvida o poder do Deus católico e de sua equipe catequizadora. Como se pode notar, Ludovina foi uma personagem feminina ativa e incrível, que oferecia outras formas de cura, adquiridas com outros espíritos, que não era a forma convencional executada pela igreja. Resistindo, assim, ao processo de colonização e a toda perseguição feita sobre ela, tornando-se um diferencial na cidade de Belém, uma mulher subversiva para a sua época, digna de nota. 


Gilmara Ígnea. Pesquisadora de Práticas Mágicas e Feitiçaria no Brasil Colonial, com Graduação e Mestrado em História concluídos e Doutorado em conclusão na USP. Autora do livro “Práticas mágicas de feitiçaria: o caso de Maria Gonçalves Cajada”. Além disso, Gilmara é investigadora da relação corpo/ritual/oculto, sendo professora e orientadora desde 2006, e é criadora do conceito de Dança Performágicka e do Coven All The Witches Dance, além de outros diversos trabalhos. Veja mais em: http://www.gilmaraignea.com.br

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