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Segundo as instruções do Bardo Thödul, se o espírito do morto mentir no estado de chönyid, Yama, o Senhor da Morte, “colocará uma corda em volta do teu pescoço e te puxará adiante; ele cortará a tua cabeça, extrairá teu coração e arrancará teus intestinos, devorará teu cérebro, beberá teu sangue, comerá tua carne e roerá teus ossos”.[1] No mesmo livro lemos que Yama é antecedido pelos vinte e oito detentores do poder e pelas cinqüenta e oito deusas sinistras bebedoras de sangue. Desde que creia nelas o moribundo delirante poderá ver tais entidades, como ocorreu no momento de agonia de um policial hindu, na casa dos quarenta anos, que sofria de tuberculose pulmonar. Osis e Haraldsson compilaram um testemunho recente bastante curioso:
De sua cama no hospital, ele gritava: “O Yamdoot (mensageiro da morte) está vindo para me levar. Tirem-me desta cama para que o Yamdoot não me encontre”. Apontando para a janela, ele disse: “Lá está ele”. Naquele momento, como se alguém tivesse disparado um tiro, “um bando de corvos em cima de uma árvore, vista da janela, voou em disparada”. A enfermeira ficou “aterrorizada” e correu para fora, mas não viu nenhum motivo para aquele tumulto, concluindo que “até os corvos pressentiram algo terrível”. Alguns minutos após essa experiência negativa, o paciente entrou em coma profundo e morreu.[2]
Desde a mais alta divindade até o mais insignificante fantasma, todas as entidades hindus relacionadas à morte apreciam sangue e carne. E, mesmo em nossos dias, toda e qualquer divindade pode se converter num agente da morte em circunstâncias especiais. Assim, por exemplo, Prabhupada narra uma parábola onde o maligno Hiraņyakaśipu viu Kŗşņa como a morte personificada enquanto o devoto Prahlāda contemplou-o como seu Senhor querido, pois “aqueles que desafiam Deus irão vê-lo sob Seu aspecto horroroso, mas aqueles que se dedicam a Ele, irão vê-lo sob Sua forma pessoal”.[3]
Por vezes até pessoas comuns podem ser elevadas ao status de espectro da morte. Em maio de 1973 cadáveres de mendigos surgiram misteriosamente nos becos de Calcutá. Tinham marcas de mordidas no pescoço, aparentemente produzidas por aparelhos mecânicos (a polícia não esclareceu de que tipo). Conforme o repórter André Machado, “assim que soube da onda vampiresca, a população ficou em pânico e saiu às ruas armada de tacapes e estacas de madeira”.[4] Cinco maltrapilhos com aparência suspeita acabaram linchados pela multidão enfurecida, e outros vinte saíram feridos.
Noutro caso, investigado por Idries Shah, em 1956, difundiu-se a história de que uma viúva inglesa que vivia em Bombaim teria sugado o sangue de uma das vítimas de um acidente na estrada. Ela morreu alguns meses depois do acidente, sendo que a lenda da vampira continuou e cresceu. Diziam que comia carne crua e bebia sangue humano sempre que possível. Shah encontrou uma amiga da viúva, que lhe explicou o incidente:
Quando circulava o rumor de que era vampira – contado por algum dos sobreviventes do acidente e não por mim – ela me procurou para “confessar” que ia voltar à Inglaterra para tratamento. Perguntei-lhe se ela era vampira e ela disse que não. A verdade é que, quando criança, ela tinha sofrido de uma doença e tinha de comer sanduíches de carne crua. Ela se acostumou tanto com isso que nunca comia carne cozida. Seu médico via isso como um estado psicológico mais ou menos inofensivo. E assim continuou ela com a dieta. Ao ir para a Índia, ela descobriu que era difícil conseguir carne crua, apesar de sentir muita vontade e, finalmente, ela conseguiu arranjar fornecedor. Mas ela se “controlava”, tanto quanto possível. Na noite do acidente, ela me contou que não comia carne crua há semanas e que, ao se curvar sobre um ferido, aquilo foi demais para ela e então encostou seu rosto no dele como para beijá-lo. Um indiano que estava presente, conhecendo talvez o seu gosto por carne sangrenta, deu início aos rumores.[5]
O consumo de sangue e carne é uma constante no folclore da Índia e Tibet. Isto deixa os escritores ocidentais completamente desnorteados sempre que tentam produzir estudos de religiões comparadas sobre o mito do vampiro. Todos os que se prendem ao elemento isolado “beber sangue” acabam catalogando infinitos hematófagos: Rakshasa, jigarkhwar, hanh saburo, hant-pare, hantu-dor dong, mah’anah, pacu-pati, penanggalan, pisacha, vetala, etc. Matthew Bunson registra que muitos folcloristas elegeram o bhuta como o vampiro indiano por excelência, ao passo que outros o catalogam apenas como uma variante.[6] Gordom Melton, acrescenta as entidades femininas yatu-dhana, churel e chedipe à lista e confessa sua incapacidade de esgotar o tema num único artigo:
Em toda a Índia, entre os vários grupos étnicos e lingüísticos, havia uma multidão de fantasmas, demônios e espíritos malignos que viviam dentro ou perto dos cemitérios e dos locais de cremação e que tinham alguma semelhança com os vampiros da Europa. Muitos enganavam os outros assumindo a forma de uma pessoa viva. Transformavam-se, assumindo uma aparência terrivelmente demoníaca pouco antes de atacar suas vítimas.[7]
Para facilitar as pesquisas eu gostaria de propor padrão de busca. O vampiro não pode ser qualquer bebedor de sangue ou até os piolhos, pulgas, pernilongos e lombrigas se enquadrariam perfeitamente na descrição. Ele não pode ser um deus porque possui corpo humano nem se deverá rotular como vampiro a qualquer pessoa que consuma sangue com regularidade, pois neste caso englobaríamos todos os membros da tribo Massái (povo do Quênia e da Tanzânia cuja dieta diária inclui uma mistura de sangue e leite extraído do gado bovino). Ele não deve ser qualquer morto que ressuscitou, pois na Índia e Tibet se conta que diversos santos e devotos morreram voluntariamente e voltaram à vida, a exemplo de Sri Chaitanya Mahaprabhu. Ou seja: Não existe vampiro vegetariano! E não existe vampiro que não queira ser vampiro.
Partindo daí excluímos Kālī, Yama e inúmeros outros inumanos, apesar de manter ressalvas sobre determinados elementos de seu séqüito. Excluímos o bhuta, pois como anotou corretamente Marcos Torrigo, “os bhuta se alimentam de fezes e intestinos encontrados em corpos decompostos”, promovendo doenças nos seres humanos como “uma forma de gerar o seu alimento”.[8] Logo, não é um vampiro.
Não é preciso beber sangue ou ter asas de morcego para se ser um rakshasa (lit. malvado, perverso). O adjetivo também se aplica a um homem vivo comum que comete um ato de crueldade como, por exemplo, atirar uma criança ao fogo. (Isso significa que alguns vampiros podem ser rakshasas, mas nem todo rakshasa será necessariamente um vampiro e nem todo vampiro será um rakshasa). A chedipe (lit. prostituta) também não precisa montar um tigre ou ter patas de animal. Pode ser uma prostituta de verdade. As bruxarias das ḍākinīs da vida real funcionam tão bem quanto as mandingas das mães de santo de nossos terreiros, mas elas nem sequer incorporam entidades. Apenas para o vetalā não há exceção. Ele deve ser sempre um cadáver reanimado por seu próprio espírito ou pelo de outrem. É o equivalente perfeito do vampir europeu conforme descrito das fontes datadas desde 1732 até a reforma de Ane Rice.
Referências:
[1] EVANS-WENTZ, W. Y. (org.) O Livro Tibetano dos Mortos. Trd. Jesualdo Correia Gomes de Oliveira. São Paulo, Pensamento, 1998 p 127.
[2] HABERMAS, Gary R. e MORELAND, J. P. Immortality: the other side of death. Nashville, Thomas Nelson Publishers, 1992, p 41. In: RAWLINGS, Dr. Maurice S. Eles Viram o Inferno. São Paulo, Multiletra, 1996, p 113.
[3] PRABHUPADA, A. C. Bhaktivedanta Swami. Pequeno Tratado Sobre Karma. Brasil, Fundação Bhaktivedanta, 1998, p 57.
[4] MACHADO, André. Vampiros de Carne e Osso. Em: INCRÍVEL, nº 13, agosto de 1993, p 8-11.
[5] SHAH, Idries. Magia Oriental. Trd. José Rubens Siqueira. São Paulo, Editora Três, 1973, p 155-156.
[6] BUNSON, Matthew. The Vampire Encyclopedia. New York, Three Rivers Press, 1993, p 133.
[7] MELTON, J. Gordon. Op cit., p 403.
[8] TORRIGO, Marcos. Vampiros: Rituais de Sangue. São Paulo, Madras, 2002, p 9.
Shirlei Massapust
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