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“Não consigo descobrir por que ele é chamado Lúcifer”, afirmou Shelley em seu engenhoso ensaio sobre o Diabo, “exceto por uma passagem de Isaias erroneamente interpretada”. Não podemos encontrar “Lúcifer” mesmo que examinemos cada página dos livros apócrifos e das pseudo-epígrafes. Lúcifer – como o nome do Diabo – não está nas Escrituras. Lúcifer, na verdade, não é nome de ninguém, significa apenas “o que leva a luz”. Lúcifer é a estrela da manha, o planeta Vênus, que aparece antes do alvorecer. Ovídio menciona que cada novo dia começa quando “Lúcifer brilha radiante no céu, chamando a humanidade para seus afazeres diários. Lúcifer excede em brilho as estrelas mais radiantes”.
A identificação de Lúcifer com Satã vem de Isaias (14,13): “Como caíste do céu, ó Lúcifer, filho da alva!” Isaias não estava falando do Diabo. Usando imagens possivelmente retiradas de um antigo mito cananeu, Isaias referia-se aos excessos de um ambicioso rei babilônico que caiu no mundo dos mortos. Suas palavras passaram a significar uma referencia ao Diabo ao longo de quatro etapas: um rei tirânico é descrito em uma metáfora (o rei = uma estrela brilhante); e a expressão hebraica helel bem shahar = o que brilha) ou a grega eosphorus são traduzidas para o latim como a estrela da manha, Lúcifer, posteriormente, o rei tirânico é identificado com o Diabo; ergo Lúcifer torna-se outro nome para o Diabo. A resposta à questão de por que esse rei foi identificado com o Diabo é que isso resolvia o incomodo problema da natureza do Diabo. Origines, teólogo do século III não se esquivou ao problema: “Ninguém pode saber a origem do mal”, escreveu ele, “sem ter entendido a verdade sobre o chamado diabo e seus anjos, e quem ele era antes de tornar-se um diabo e como ele se tornou um diabo”. Se Deus criou o Diabo e este é em si mau, então Deus criou o mal. As implicações poderiam ser perturbadoras (em especial porque, como salientou Espinosa, o Diabo tenta as pessoas a fazer o mal, pelo que elas são punidas depois). Se o Diabo houvesse nascido mal, poderíamos dizer que ele pecou? Ele não teria opção, a não ser fazer o mal. Mas se Deus não criou o Diabo, Deus não é onipotente, e assim mergulhamos em um mundo maniqueísta, marcado pelo conflito entre bem e mal cujo resultado é inerentemente inconclusivo.
Os padres cristãos do século XV resolveram o problema em duas etapas. Sim, Deus criou o Diabo, mas o Diabo não era inerentemente mau, quando foi criado; ele escolheu tornar-se mal. Portanto, Deus permanece onipotente, mas não é responsável pelo mal. Essa solução exigiu fundamento nas Escrituras, e o modo como esse fundamento foi providenciado explicará por que Lúcifer tornou-se um nome para o Diabo. O argumento de santo Agostinho, principal pensador cristão do inicio do século V, é instrutivo.
Santo Agostinho foi muito mais influente do que Origines (que ele detestava). Podemos avaliar seu temperamento quando ele afirma que, embora homens bons e maus sofram igualmente, existe uma diferença crucial: “No mesmo fogo, o ouro brilha e a palha fumega, a borra não é confundida com óleo porque saíram da mesma prensa(..)A mesma agitação que faz a água fétida exalar mal cheiro faz o perfume emitir um odor mais agradável”. Na terceira parte de A Cidade de Deus, sua principal obra, santo Agostinho explica a origem das duas cidades, a cidade de Deus e a cidade do Diabo. Originalmente, diz ele, todos os anjos eram seres da luz, criados “para viver na sabedoria e felicidade. Alguns anjos, porem, afastaram-se dessa iluminação”. Se o Diabo é um anjo caído, ele tem de ter caído. Entretanto, a primeira epístola de João, assevera que “aquele que comete o pecado é do demônio, porque o demônio é pecador desde o principio. Para isto é que o Filho de Deus se manifestou: para destruir as obras do demônio. Todo aquele que nasceu de Deus não comete pecado, porque sua semente permanece nele; e não pode pecar porque nasceu de Deus” (3,8-9). Isso implica que o Diabo não foi criado por Deus? O Diabo de são João e o de santo Agostinho não parecem ser o mesmo, mas santo Agostinho tinha uma resposta. João de fato escreveu que “o Diabo vive pecando desde o princípio”, admite santo Agostinho, mas isso “deve ser entendido no sentido de que ele pecou não desde o princípio de sua criação, mas desde o principio do pecado, pois o pecado principiou no orgulho”. Essa manipulação conduz à resposta para nossa questão inicial.
Os maniques não entendem que, se o Diabo é mau por natureza, não se pode absolutamente falar em pecado. Eles não têm como objetar o testemunho dos profetas, por exemplo, quando Isaias, representando figurativamente o Diabo na pessoa do príncipe da Babilônia, pergunta:
Como caíste do Céu, ó Lúcifer, filho da alva? Isto indica que: o Diabo esteve por algum tempo sem pecado.
A explicação de santo Agostinho mostra que, na época em que ele esta escrevendo, Lúcifer não era um nome comum do Diabo. É bem verdade que, dois séculos antes, Origines interpretara partes do Levítico, Êxodo, Ezequiel e Isaias como referencias às manifestações do Diabo. Mas ninguém tentara obter as deduções minuciosas a respeito do Diabo com base nessas passagens, nem identificar o Diabo com o nome de Lúcifer. Origines estava tentando entender a natureza do mal. O objetivo de santo Agostinho era outro: queira identificar os hereges. Quem eram os anjos que seguiram Lúcifer? Eram hereges, assegurou santo Agostinho, o Diabo não possui poderes próprios, não possui território próprio e não é uma autocriação. Não existe um principio oposto a Deus que tenha criado o Diabo. O que aconteceu, explica, foi que originalmente o Diabo não tinha pecado, porem mais tarde (alguns dizem uma hora, outros, mais de uma semana) ele se afastou da verdade, como prova o Lúcifer citado por Isaías. Com efeito, Lúcifer tornou-se o nome do Diabo como parte do raciocínio usado para fundamentar a idéia de que o Diabo foi originalmente um anjo criado por Deus, mas que recusou a graça e deu as costas à verdade. A motivação por trás da interpretação de Isaías por santo Agostinho foi à luta deste contra “os maniqueus e semelhantes hereges venenosos que asseveram que o Diabo derivou sua natureza singularmente perversa de algum principio oposto a Deus”. (Oito séculos mais tarde, são Tomas de Aquino diria o mesmo sobre o Diabo e os Maniqueus).
Para combater o Diabo e defini-lo com mais clareza a passagem de Isaías foi entremeada com a quarta parte do Apocalipse (cap 12), onde é visto como um grande dragão vermelho: …sua cauda arrastava um terço das estrelas do Céu, lançando-as para a terra… Houve então uma batalha no Céu: Miguel e seus anjos guerrearam contra o dragão. O dragão batalhou, juntamente com seus anjos, mas foi derrotado… Foi expulso o grande dragão, a antiga serpente, o chamado Diabo ou Satanás, sedutor de toda a terra habitada – foi expulso para a terra, e seus anjos foram expulsos com ele(12,4 e 7-9).
Satã tornou-se o anjo rebelde. Embora Satã, o Diabo e Lúcifer fossem o mesmo, sem a fusão de Isaias e Apocalipse, Dante no último canto do “Inferno”, nunca poderia ter escrito a respeito de Lúcifer que:
S’el fu si bello com’ elli è or brutto, se ele já foi belo como hoje é feio,
E contra ‘I suo fattore alzà le ciglia, e ainda assim contra seu Criador ergue a mão,
Bem dee da lui procedere ogni lutto. Verdadeiramente toda aflição deve proceder dele.
Medonho e repulsivo como é Lúcifer na Divina Comédia, o anjo rebelde fizera da terça parte das estrelas do céu sua aliada, tendo um potencial para a transformação ausente no insignificante Satã hebreu e no Maligno do Novo Testamento. Embora Lúcifer fosse um nome adicionado ao de Satã, para Dante e a maioria da cristandade, Lúcifer precedeu Satã. Como o monge mundano dos Contos de Canterbury, de Chaucer, explicou em sua narrativa:
Ó Lúcifer, de todos o mais brilhante anjo,
És agora Satã, não podes escapar
Da desgraça em que caíste.
Lúcifer já foi belo como hoje é feio, lembrou Dante a seus leitores, mas somente a feiúra e maldade de Satã estiveram na mente dos crentes, pensadores, escritores e artistas durante mais de mil anos. Ate mesmo Botticelli, amante da beleza, desenhou uma fera repulsiva para ilustrar o Lúcifer de Dante. É verdade que o fez para ser condizente com o texto de Dante, mas ainda assim quase todas as pinturas e manuscritos iluminados da Idade Média e Renascença mostram um Satã hediondo.
Miguel matando o medonho Satã em forma de dragão é um tema comum, mas Miguel lutando contra anjos rebeldes, não. A queda dos anjos rebeldes raramente é representada; quando o é, Satã e seus anjos aparecem como espíritos grotescos. O Lúcifer “belo”, Satã antes da queda, é praticamente desconhecido. Uma notável exceção é a iluminura dos irmãos Limbourg do inicio do século XV. Deus e suas hostes estão no alto. Os anjos rebeldes são jogados para baixo em duas colunas, à esquerda e à direita, formando um V que culmina com Lúcifer entrando no inferno.
Essas colunas de anjos rebeldes são mostradas em primorosos tons de azul e ouro; a disposição formal conduz a um olhar pelas duas colunas convergentes até o clímax da cena, apresentando Lúcifer no vértice. Esse movimento é reforçado pelo aumento gradual no tamanho dos anjos rebeldes à medida que caem em nossa direção, dirigindo-se ao Inferno.
As proporções de Lúcifer são maiores do que as de Deus; ele é belo, o primeiro Lúcifer “belo” na historia da arte. Coube a Milton, no século XVII, imaginar um Satã no Inferno que mesmo assim conservasse o brilho do Lúcifer que ele fora outrora. E os românticos do século XIX recriaram o anjo Lúcifer reinterpretando as razões de sua queda. Mas a maioria das pessoas não sabe que foram os padres da Igreja do século V os responsáveis pela primeira e decisiva reinterpretação do motivo por que o anjo Lúcifer foi expulso de Céu.
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Por Parsiphal666
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