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Tantra: sexualidade e espiritualidade

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Segundo a filosofia hindu, o homem avançou de uma Era Dourada para períodos de progressivo declínio espiritual. Os ensinamentos tântricos seriam uma espécie de Evangelho para os que vivem na atual Era das Trevas e buscam a Iluminação.

Tantra é um termo sânscrito que, como o termo Yoga, tem muitos significados distintos, mas basicamente relacionados. No nível mais mundano, denota teia ou urdidura. Deriva do radical tan, no sentido de expandir. Esse radical também forma a palavra tantu (fio ou cordão). Enquanto um fio é alguma coisa extensiva, uma teia sugere expansão. Tantra pode também representar sistema, ritual, doutrina e compêndio. Segundo explicações esotéricas, tantra é o que expande o jñána, que pode significar conhecimento ou sabedoria. O falecido Agehananda Bharati, um austríaco, professor de antropologia na Syracuse University e monge da ordem Dashanami, argumentava que só o conhecimento pode ser expandido, não a sabedoria imutável. Mas isso não é inteiramente correto. A sabedoria, embora co-essencial com a realidade e, portanto, perene, pode ser expandida no sentido de informar mais e mais o praticante espiritual. Esse processo é como colocar uma esponja num tanque raso de água. Ela suga aos poucos a água e se torna completamente encharcada de umidade. Assim, enquanto a sabedoria é sempre a mesma, ela pode também, paradoxalmente, crescer dentro de uma pessoa. Ou, colocando de modo diferente, uma pessoa pode crescer para refletir cada vez mais a Sabedoria Eterna.

Mas tantra é também a Realidade expansiva, que abrange tudo, desvelada pela sabedoria. Tal como representa continuum, o todo inconsútil que compreende tanto a transcendência quanto a imanência, Realidade e realidade, Ser e tornar-se, Consciência e consciência mental, Infinidade e finitude, Espírito e matéria, transcendência e imanência, ou, na terminologia do sânscrito, Nirvana e samsára, ou Brahman e jagat. Aqui as palavras samsára e jagat representam o mundo familiar do fluxo que experimentamos através de nossos sentidos.

Historicamente, Tantra denota um estilo particular ou gênero de ensinamentos espirituais que começou a ganhar espaço na Índia cerca de 1.500 anos atrás ? ensinamentos que afirmam a continuidade entre Espírito e matéria. A palavra também significa uma escritura na qual tais ensinamentos são desvelados. Por extensão, o termo é freqüentemente aplicado a livros, a textos didáticos e a manuais em geral. A tradição fala de 64 Tantras, embora, juntamente com as 108 Upanishads, essa seja uma cifra ideal, que não reflete a realidade histórica. Conhecemos muitos outros Tantras, embora poucos deles tenham sobrevivido à ação do tempo.

Um praticante do Tantra é chamado de sádhaka (se homem) ou de sádhika (se mulher). Outras expressões são tantrika ou tantra-yogin (se homem) e tantra-yoginí (se mulher). Um iniciado na trilha tântrica é tipicamente conhecido como um siddha (ser consumado, de sidh, significando estar consumado ou alcançar) ou maha-siddha (ser grandemente consumado, ou seja, um grande iniciado). A mulher iniciada é chamada siddha-angana (de anga, significando membro ou parte). A própria filosofia tântrica é freqüentemente chamada de sádhana (do mesmo radical de siddha), e a conquista espiritual dessa trilha é chamada siddhi (tendo o significado dual de perfeição e consumação poderosa). Siddhi pode denominar tanto a obtenção espiritual da libertação, ou iluminação, quanto os extraordinários poderes ou capacidades parapsíquicos atribuídos aos mestres tântricos como conseqüência da iluminação, ou em virtude do domínio dos estágios avançados de concentração. Um preceptor tântrico, esteja ele iluminado ou não, é chamado tanto de acharya (condutor, relacionado a achara, meio de vida) quanto de guru (ser influente).

Um ensinamento para a Idade das Trevas

O Tantra compreende a si mesmo como um Evangelho para a nova Era das Trevas, o Kali Yuga. De acordo com a visão do mundo hindu, a história se desdobra num padrão cíclico que avança de uma Era Dourada para eras de progressivo declínio espiritual, e depois de volta a uma Era de Luz e Fartura. Essas eras são chamadas yugas (cangas), presumivelmente porque elas prendem os seres à roda do tempo (kala chakra), ao fluxo da existência condicionada. Há quatro desses yugas, que se repetem indefinidamente, o tempo todo maturando todos os seres, mas especialmente os humanos. As escrituras falam desse processo de desenvolvimento como cozimento. As quatro eras do mundo são, nesta ordem:

1) O Satya Yuga, no qual a verdade (satya) reina suprema, e que é também conhecido como Krita Yuga, porque tudo nele é bem-feito (krita);

2) O Treta Yuga, no qual a verdade e a virtude são de alguma forma reduzidas;

3) O Dwápara Yuga, no qual verdade e virtude são ainda mais reduzidas;

4) O Kali Yuga, que é marcado por ignorância, fraude e cobiça.

Essas correspondem às quatro eras conhecidas na Grécia clássica e na antiga Pérsia. Significativamente, os nomes em sânscrito das quatro eras do mundo derivam do jogo de dados, um passatempo da população indiana desde os tempos vêdicos. O Rig Veda, que tem pelo menos cinco mil anos de idade, tem um hino (10.34) que foi intitulado “Lamento do Jogador”, porque seu compositor fala poeticamente de seu vício no jogo. Sobre os dados ele diz que, “desprovidos de mãos, eles dominam aquele que tem mãos”, causando perda, vergonha e pesar. A guerra Bhárata, narrada no épico Mahabhárata, foi o mau fruto do jogo, pois Yudhishthira perdeu todo o reino para seu malvado primo Duryodhana com o lançamento de um dado.

Krita significa a sorte ou lançamento bem-feito, dwápara (duque) um lançamento de dois pontos, treta (terno) um lançamento de três pontos, e kali (do radical kal, induzir), a perda total, indicada por um único ponto no dado. A palavra kali não é, como se pensa freqüentemente, uma referência ao nome da muito conhecida deusa Kálí. Todavia, como Kálí simboliza tanto o tempo quanto a destruição, não parece muito forçado ligá-la especificamente ao Kali Yuga, embora, é claro, ela esteja destinada a governar todos os espaços e formas do tempo.

Os Tantras descrevem a primeira Era Dourada como uma era de fartura material e espiritual. Segundo o Mahanirvana Tantra (1.20-29), as pessoas eram sábias e virtuosas e agradavam as divindades e antepassados pela prática do Yoga e dos rituais de sacrifício. Por meio de seu estudo dos Vedas, meditação, austeridade, domínio dos sentidos e atos de caridade, elas adquiriam grande firmeza e poder. Muito embora mortais, eram como as divindades (deva). Os governantes eram altamente sensatos e estavam sempre preocupados em proteger as pessoas confiadas à sua guarda, ao passo que entre o povo não havia ladrões, mentirosos, tolos ou glutões. Ninguém era egoísta, invejoso ou devasso. A psicologia favorável das pessoas refletia-se externamente na farta produção agrícola de grãos, nas vacas fornecendo leite em abundância, nas árvores carregadas de frutos e nas generosas chuvas sazonais fertilizando toda a vegetação. Não existia fome nem doença, nem morte prematura. As pessoas eram generosas, felizes, belas e prósperas. A sociedade era bem ordenada e pacífica.

Na era seguinte do mundo, o Treta Yuga, as pessoas perdiam seu espaço interior e se tornavam incapazes de aplicar adequadamente os rituais vêdicos, embora continuassem ansiosamente apegadas a eles. Compadecido, o deus Shiva trouxe tradições (smriti) úteis para o mundo, pelas quais os antigos ensinamentos poderiam ser mais bem entendidos e praticados.

Mas a Humanidade tendia a perder seu rumo, o que se tornou óbvio na terceira era do mundo. As pessoas abandonaram os métodos prescritos nas Smritis e desse modo só faziam ampliar sua perplexidade e sofrimento. Suas doenças físicas e emocionais aumentaram e, como insiste o Mahanirvana Tantra, perderam metade da lei divinamente apontada (dharma). Mais uma vez, Shiva interveio ao tornar disponíveis os ensinamentos dos Samhitas e outras escrituras religiosas.

Com o surgimento da quarta era do mundo, o Kali Yuga, tudo da lei divinamente apontada estava perdido. Muitos hindus acreditam que o Kali Yuga foi introduzida à época da morte do deus-homem Krishna, que supostamente deixou este mundo em 3102 a.C., ao final da guerra Bhárata. Não há evidência arqueológica para essa data, e é provável que Krishna tenha vivido muito mais tarde. Porém, isso é relativamente insignificante para a presente consideração. O que importa, contudo, é que a maior parte das autoridades profissionais considera o Kali Yuga como sendo lenta demais em progredir. De fato, segundo os cômputos hindus, estamos apenas na fase de abertura dessa Idade de Trevas no mundo, que se acredita ter um alcance total de 360 mil anos. Assim, de uma perspectiva hindu, o atual debate em certos círculos ocidentais de uma promissora nova era – a era de Aquário – é mal orientado. No melhor dos casos, esse é um miniciclo de auto-ilusão que leva ao falso otimismo e à complacência, seguido por piores condições. Isto é, de fato, o que alguns críticos ocidentais do movimento da nova era também sugeriam. Outros críticos argumentaram, inversamente, que o modelo hindu de tempo cíclico é irrealista e ultrapassado.

Qualquer que seja a verdade sobre esse tema, os Tantras enfatizam que seus ensinamentos são destinados àqueles que buscam a espiritualidade, mas estão presos na Idade das Trevas, o que ocorre efetivamente hoje. É assim que o Mahanirvana Tantra (1.36-42), nas proféticas palavras da Deusa, descreve a atual era do mundo:

“Com o progresso pecaminoso do Kali [Yuga], que destrói toda a Lei, que é repleta de meios e fenômenos do mal e que faz surgir atividades malignas, os Vedas se tornam ineficazes, para não falar que relembram o Smriti. E os muitos Puránas, contendo várias histórias e exibindo os muitos meios [para a Libertação], serão destruídos, ó Senhor. Então, o povo se desviará da ação virtuosa e se tornará habitualmente desenfreado, louco de orgulho, versado em más ações, lascivo, confuso, cruel, rude, vulgar, fraudulento, efêmero, maçante, perturbado por doença e pesar, feio, fraco, vil, ligado a comportamento torpe, chegado a más companhias, a ladrões do dinheiro alheio. Eles se tornam trapaceiros empenhados em culpar, caluniar e injuriar os outros e não sentem nenhuma relutância, pecado ou medo em seduzir a esposa de outro. Eles se tornam destituídos, asquerosos, mendigos destroçados que adoecem da sua vadiagem.”

O Mahanirvana Tantra continua sua descrição da fantasia do Kali Yuga ao dizer que mesmo os brâmanes se tornam degenerados e realizam suas práticas religiosas principalmente para enganar as pessoas. Assim, os guardiães da Lei (Dharma) meramente contribuem para a destruição da sagrada tradição e da ordem moral. O Tantra a seguir reitera que Shiva desvelou os ensinamentos tântricos para deter a maré da história e corrigir essa situação trágica. Os mestres do Tantra são profundamente otimistas.

A abordagem radical do Tantra

Os iniciados do Tantra acreditam que é possível alcançar a Libertação, ou Iluminação, mesmo nas piores condições morais e sociais. Eles também acreditam, todavia, que os meios tradicionais delineados ou desvelados em eras anteriores do mundo não são mais úteis ou ótimos, pois eram meios destinados a pessoas de energia moral e espiritual muito maior, que viviam num meio ambiente mais pacífico e útil para o crescimento interior. A Era atual de Trevas tem incontáveis obstáculos que tornam o amadurecimento extremamente difícil. Portanto, são necessárias medidas mais drásticas: a metodologia tântrica.

O que há de tão especial nos ensinamentos tântricos, que deveriam atender às necessidades espirituais da Era das Trevas melhor do que todas as outras abordagens? De muitas maneiras, os métodos tântricos são similares a práticas não-tântricas. O que é admiravelmente diferente a respeito deles é a sua inclusividade e a atitude radical com as quais são perseguidos. Uma pessoa desesperada irá se agarrar a uma palha, e os buscadores no Kali Yuga são, ou deveriam ser, desesperados. Do ponto privilegiado de uma herança espiritual que se estende por vários milhares de anos, os mestres tântricos, no começo da era comum, perceberam que a Era das Trevas necessita de técnicas especialmente poderosas para transpor a letargia, a resistência e o apego a relacionamentos convencionais e coisas mundanas, bem como para lidar com a falta de compreensão. Olhando os meios disponíveis, transmitidos dos mestres para os discípulos ao longo de incontáveis gerações, eles admitiram que estes exigiam uma pureza e nobreza de caráter que as pessoas da Era das Trevas não possuem mais. Para ajudar a humanidade no Kali Yuga, os iniciados no Tantra modificaram os velhos ensinamentos e criaram um novo repertório de práticas. Sua orientação pode ser resumida em duas palavras: tudo passa. Ou, pelo menos, quase tudo.

Os mestres tântricos até mesmo sancionaram práticas que são consideradas pecaminosas a partir de uma moral convencional e de uma estrutura espiritual. Essa feição do Tantra foi denominada antinomianismo, que, como a palavra derivada do grego sugere, consiste em ir contra (anti) as normas aceitas ou leis (nomos). Os textos tântricos usam palavras como pratiloman (contra o grão) e paravritti (inversão) para descrever seus ensinamentos. Alguns iniciados do Tantra fizeram desse princípio de reversão um meio de vida, como pode ser visto no estilo extremista dos avadhutas, que andam nus por toda parte e vivem em meio a monturos de lixo. Eles se moldam a partir do deus-homem Dattatreya, que supostamente viveu no Treta Yuga. Na literatura purânica, ele é celebrado como uma encarnação da Trimurti (a trindade do hinduísmo), a saber, as divindades Brahmá (o Criador), Vishnu (o Preservador) e Shiva (o Destruidor).

Tais iniciados ainda podem ser encontrados hoje em dia, e o iniciado do século 20, Rang Avadhoot (Ranga Avadhuta), de Nareshvar, no Estado de Gujarat, foi venerado como uma forma de Dattatreya. Esse avadhuta foi um pós-graduado que traduziu obras de Tolstói e compôs seus próprios livros em sânscrito, embora vivesse em total simplicidade e inteiramente alheio a qualquer religião formal. Os membros da seita Aghori vão ainda mais longe em seu desprezo pelas convenções e podem ser vistos perto de áreas de cremação, onde, vestidos apenas com as cinzas das piras funerárias, entregam-se às suas meditações solitárias.

O antinomianismo tântrico pode ser visto atuando especialmente nas notórias escolas da “mão-esquerda” do Tantra. Seus membros se beneficiam de práticas ilegais, tais como intercurso sexual ritualizado (maithuna) com outra pessoa que não seu cônjuge, e do consumo de afrodisíacos, álcool e carne (alimento proibido na tradicional cultura vegetariana da Índia), bem como da freqüência a cemitérios para rituais de necromancia.

Compreensivelmente, a ortodoxia religiosa dos brâmanes sempre encarou o Tantra e seus praticantes com desânimo e até mesmo desdém. Mas a sociedade hindu, considerada a mais antiga sociedade pluralística contínua na Terra, traz embutida uma certa tolerância, que por milênios permitiu que todos os tipos de tradições religiosas e espirituais florescessem lado a lado. Outro fator que facilitou a aceitação disseminada do Tantra no espaço de poucas gerações foi a fama dos iniciados tântricos como mágicos poderosos, não importa se na magia branca ou na negra. As pessoas temiam as maldições e feitiços dos tantrikas e não queriam ser vistas a condená-los ou denegri-los, mesmo se considerassem um erro os pontos de vista e as práticas tântricas. Ainda hoje, a população rural da Índia tanto venera quanto teme os ascetas, em especial os que manifestam uma conduta tântrica. Yogins e yoginís sempre foram considerados como manipuladores de poder sobrenatural. No caso dos iniciados tântricos, esse poder é considerado especialmente grande por causa de sua estreita associação com o lado sombrio da vida, principalmente o reino dos mortos.

Ao final do espectro tântrico, temos práticas altamente heterodoxas, tais como a magia negra, que vão contra a índole moral da sociedade hindu (e da maioria das sociedades). No outro extremo, temos os mestres tântricos que execram todas as doutrinas e todos os rituais e, em vez disso, aplaudem o ideal de espontaneidade perfeita (sahaja). A maioria das escolas cai entre esses dois pólos; elas são tipicamente por demais ritualísticas, porém impregnadas com o reconhecimento de que a Libertação brota da sabedoria, que é inata e portanto não pode ser produzida por quaisquer meios externos. Todas as muitas técnicas tântricas servem apenas para limpar o espelho da mente, de modo a refletir com fidelidade a Realidade onipresente, permitindo que a sabedoria nativa brilhe sem distorção.

Copyright © 2002 Georg Feuerstein, Yoga Research and Education Center.


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