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Inteligência Artificial pode sonhar?

Leia em 7 minutos.

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Shirlei Massapust

O cientista belga Luc Steels é uma das grandes autoridades vivas em inteligência artificial do mundo. Fundou o Laboratório de Inteligência Artificial da Vrije Universiteit Brussel (VUB), em 1983. Saindo de lá fundou o Laboratório de Ciência da Computação da Sony em Paris, em 1996. Depois se tornou professor pesquisador do Institute for Evolutionary Biology (UPF/CSIC). Ele escreveu uns poucos livros e artigos dentro de sua especialidade, incluindo The Talking Heads Experiment (1999), no qual descreveu um experimento pioneiro onde humanos interagiram com agentes robóticos presencialmente ou remotamente, através da Internet, influenciando a evolução das ontologias e linguagens da I.A. Após a conclusão da pesquisa, em 2001, o autor escreveu outro livro, Experiments in Cultural Language Evolution (2011), e atualizou o projeto anterior cujos resultados conclusivos foram postos online em 2015.[1] Então passou a trabalhar como artista.

Em dezembro de 2016 o brasileiro Alexey Dodsworth assistiu a uma conferência com Luc Steels voltada ao público leigo. Em uma hora de palestra, algo chamou a atenção: O algoritmo das redes sociais é um princípio de inteligência artificial que realiza um esforço consistente para oferecer ao usuário uma constante autoconfirmação. “É como se o mundo virtual se convertesse num imenso espelho, ou como se a pessoa estivesse gritando no abismo e o eco lhe permitisse ouvir o retorno de sua própria voz”.

Digamos que você em algum momento tenha demonstrado que gosta de música coreana, seja pesquisando no Google, seja curtindo coisas em redes sociais. Os próximos resultados de pesquisas e próximos conteúdos que aparecerão no feed de notícias de redes sociais irão seletivamente oferecer a você as postagens de quem confirma a sua preferência.

Outro exemplo: Se eu pesquisar no Google sobre política as primeiras relações que surgirão sobre o tema terão o objetivo de confirmar os meus pensamentos. Contudo, se outra pessoa com posicionamento político diferente do meu fizer a mesma pesquisa, os resultados serão substancialmente diferentes. Luc Steels afirmou que testes de I.A. teriam dois objetivos, um mais evidente e comercial, e outro de segurança dos governos. “Esse algoritmo considera o microfone e as câmeras de nossos computadores e celulares?”, perguntou uma pessoa. A resposta? “Muito provavelmente sim. Não em todos os casos, mas em muitos. Tecnologia para isso existe”. (Imagino que foi por tamanha ousadia que o medalhão foi aposentado do ótimo emprego que tinha e virou artista).

Coisas estranhas ocorreram de lá para cá. Eleitores de viés político de direita, que nunca antes tiveram oportunidade de se conhecer, reunir e organizar, foram postos juntos e inspirados. Manifestantes de direita atacaram o Capitólio dos Estados Unidos em 6 de janeiro de 2021. Outro bando de manifestantes de direita resolveu imitá-los, no Brasil, de modo que em 8 de janeiro de 2023 ocuparam a rampa e a laje de cobertura do Palácio do Congresso Nacional, enquanto parte do grupo conseguiu invadir e depredar o Congresso, o Palácio do Planalto e o Palácio do Supremo Tribunal Federal.

Se hoje a fúria dos insatisfeitos com o resultado de eleições causa espanto, confesso que antes espantavam-me as manifestações de outras multidões dos mais variados vieses políticos quebrando lojas e queimando transporte público (as vezes por justa indignação, as vezes só porque um time perdeu um jogo). A verdade é que os prejuízos causados pelo uso inadequado das tecnologias digitais – seja pela exacerbação de militantes políticos, seja pelo crime organizado – parecem deveras pequenos quando comparados com tudo que a humanidade tem a ganhar com a inclusão digital e o desenvolvimento destas maravilhosas máquinas pensantes; que antes somente povoavam o imaginário da ficção-científica destinada ao entretenimento de nossos avós.

Mesmo quando erra, uma I.A. é encantadora. Recentemente um amigo desenhista testou suas habilidades usando a Leonardo I.A. Ele programou o desenho de um sapo na lagoa, tocando bandolim. Ficou bastante realístico exceto por um detalhe: Dois dedos do pé esquerdo estavam fundidos e pareciam escorrer como água. Ora, as pontas dos dedos dos sapos parecem bolinhas. Para a reflexão da I.A., pequenas bolinhas na rocha logo acima da lagoa são gotas d’água. E quando gotas se encostam elas se fundem e deformam.

Devo descrever um erro de I.A. agindo e pensando totalmente por conta própria. Em 24/11/2023 às 11h18 a fisioterapeuta Raquel Menezes, de Minas Gerais, publicou em sua conta no Twitter a foto de um pote de queijo muçarela contaminado por micélio aéreo, mofo com longos filamentos de aspecto felpudo, obviamente impróprio para consumo. Junto à foto, Raquel Menezes fez um comentário sarcástico, com erro ortográfico: “E essa mussarela que ficou esquecida no fundo da minha geladeira, será que ainda presta?”[2] Rapidamente o hilário tweet ultrapassou as cento e dezoito mil curtidas, sendo repostado por mais de quatro mil perfis na mesma plataforma. Foi manchete na CNN Brasil, na sessão de jornalismo do UOL e noutros sites de notícias.

Em 04/12/2023 às 15h24 a internauta NiLú Ga Mimo’s republicou e impulsionou a piada em seu perfil na rede social Facebook; vindo a obter mais de três mil e quinhentas reações com emoticon e mais de dois mil e setecentos comentários.[3] Em 09/12/2023 às 15h minha amiga Monique Pereiraz compartilhou a repostagem de NiLú Ga Mimo’s  acrescendo o comentário cômico: “Queijo na minha geladeira era assim antes de eu contratar alguém para limpar. Eu compro comida, mas peço Ifood”.[4]

Dessa vez apenas doze pessoas reagiram com emoticon e quatorze comentaram. Eu falei: “Serve para fazer peruca”. Monique Pereiraz leu meu comentário e reagiu com emoticon de riso.

Como utilizamos a rede social para comunicação, não somente nós, mas também a própria I.A. estava “lendo” tudo isso. O Sr. Facebook quis me deixar feliz com mais anúncios de seus patronos. O algoritmo acertou muitas vezes relacionando as variadas coisas que pesquiso e reajo, porém dessa vez ele não soube interpretar “mussarela” (sic.) como sendo a muçarela de nosso jargão oficial. O algoritmo procurou e achou para mim algo curioso que parecia caber na esdrúxula descrição dedutível da literalidade dos textos.

Em 22/11/2023 às 21h a conta Nifty & Thrifty publicou e impulsionou o vídeo “The process of hand-pulled cotton candy” (O processo de produção artesanal de algodão-doce) que, em dezessete dias, recebeu mais de dezenove mil reações de emoticons e trezentos e vinte comentários. Isso apareceu para mim no feed de notícias do Facebook, em 09/12/2023.[5] Não havia nenhum motivo aparente para algo assim ser direcionado a mim, porém vi o vídeo e reparei no aspecto da guloseima em sua fase de preparação:

O mofo e o algodão-doce.

Marquei com “amei” pela genialidade do pensamento da I.A. porque o algoritmo deduziu que gosto de comidas cabeludas com determinada cor e textura. Tipo, não veio nada sobre macarrão cabelo de anjo composto de fios mais grossos, pois o robô que não ri pensa que eu quero alimentos de filamentos ultrafinos e suaves para fazer perucas. E eu tenho muitas perucas de bonecos fotografadas, especialmente brancas e loiras. Elas são feitas de kanekalon e lã de ovelhas, mas a máquina não sabe disso.

O erro é o sonho do robô?

Pensando bem, os erros de I.A. parecem bastante com os nossos sonhos, onde as coisas mudam de forma constante embora pareçam guardar suficiente relação de similitude ou pertinência temática para nos dar a ilusão da continuidade. Um exemplo: Em 04/12/2023 reli os dois primeiros volumes da coleção de romances gráficos Sailor Moon traduzida por Arnaldo Massato Oka e lançada pela JBC, em 2014. À noite sonhei que eu estava trajando o vestido branco que Usagi Tsukino usou para ir ao baile na embaixada no reino D., no Ato 4. Uma voz sem corpo sugeriu que aquele era o vestido da primeira comunhão da minha irmã e que eu não poderia usar chinelos Havaianas fora de casa. O vestido da minha irmã é bem mais curto, não podendo ser o mesmo. Contudo eu estava mesmo de chinelos. Troquei por calçados brancos de salto alto e acordei.

Será que um sonho tão doido possuía alguma função ou objetivo? Na vida real eu havia acabado de ganhar bonitos tamancos. Em 07/12/2023 fui ao Supermercado Mundial na Rua Conde de Bonfim, nº 7. Inesperadamente o pé direito dos tamancos desmanchou e tive de comprar chinelos Havaianas brancos (algo que eu não faria em circunstâncias normais porque prefiro a cor preta). Os chinelos Havaianas brancos eram os únicos calçados disponíveis para meu número naquele estabelecimento comercial.

Notas

[1] STEELS, Luc L. The Talking Heads experiment: Origins of words and meanings. Berlin, Language Science Press. 392p. Disponibilizado para download gratuito pela Freie Universität Berlin. URL: <https://langsci-press.org/catalog/book/49>.

[2] Publicação de Raquel Menezes em sua conta no Twitter, posta online em 24/01/2023 às 11h18. URL: < https://twitter.com/quel_am/status/1617889599770226690>.

[3] Publicação de NiLú Ga Mimo’s em seu perfil no Facebook, posta online em 04/12/2023 às 15h24. URL: <https://www.facebook.com/photo/?fbid=1339763093569543&set=gm.1006395983799629&idorvanity=707756643663566>.

[4] Publicação de Monique Pereiraz em seu perfil no Facebook, posta online em 09/12/2023 às 15h. URL: <https://www.facebook.com/permalink.php?story_fbid=pfbid0RonT74ot9Fi374NTJM2umKAyEigej15S7aLQEy9uECBLoUCwdYDQidH33n4wzF9jl&id=100089769633419&comment_id=1504944256741751>.

[5] Nifty & Thrifty. The process of hand-pulled cotton candy. Publicado no Facebook, posto online em 22/11/2023 às 21h. URL: <https://www.facebook.com/watch/?v=304359639182885>.


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