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Cultos Afro-americanos

Meleagro

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Luis da Câmara Cascudo
trecho de Meleagro

O Catimbó, no Nordeste do Brasil, permanece inalterado na confiança popular, espalhando receitas vegetais, fazendo “despachos”, tecendo amor, provocando a morte. Macumbas e Candomblés, sonoros de danças, músicas, festas de iniciação atraindo povo e ampliando prestígio, levando suas melodias e ritmos aos microfones, seus babalorixás dando conversa nos jornais, com fotografias nas revistas e livros, não fazem recuar o velho Catimbó, clandestino, humilde, obstinado na sua existência secular.

O “mestre” do Catimbó é uma constante etnográfica de supreendente poderio psicológico. Mantém seu ambiente, simpatias, adeptos e confianças. Não há indumentária bonita, bailado cutucando os nervos, negras balançando na cadência entorpecedora dos atabaques. O Catimbó vai vivendo, apesar de tudo, com a segurança de uma predileção popular irresistível.

Nome, organização, funcionamento, tudo está escuro, misturado, confuso. É uma soma de influência e convergência, como todos os cultos. A feição mais decisiva é da feitiçaria européia, o “mestre” e seu prestígio, a consulta sem obrigação de adesão. Ausência de iniciação, reuniões festivas, aprendizado ostensivo e sistemático. Os brasis deram sua flora, tuxauas cheios de mistérios, ensinando remédios ou indo flechar os inimigos, com flechas invisíveis que matam. O negro trouxe a parte mais triste e dolorosa. Seus “mestres” foram todos catimbozeiros mortos, ex-escravos, vidas sem história, tornados soberanos nos reinos do Vajucá e de Juremal. Viveram, como a maioria dos colegas vive ainda, nas casinhas de palha,  de taipa oscilante, fugindo, tremendo das visitas policiais, arrastados como bichos curiosos diante das máquinas fotográficas para a identificação criminal e jamais atendendo curiosidade elegante e jornalística.

A bruxa européia não recebia espíritos do outro mundo, orientadores. Nem mesmo lhes citava a existência. Havia Satanás, mestre de encantamentos, presidente do Sabat, ou ninguém mais. A bruxa ouvia a consulta e respondia, aconselhando, receitando. Quando trabalhava, era sozinha, nos filtros de amor, nas figurinhas de cera para o envultamento, a água clara e doce que mataria prelados e príncipes. Passara o tempo ornamental em que as pitonisas mastigavam folhas de loureiro e entravam em transe, estrebuchando nas trípodes abertas em cima das bocarras fumegantes de onde subia para sua garganta a voz assombrosa do deus oracular.

Negros e indígenas têm seus deuses falando pela boca dos sacerdotes, mais compreensiva e claramente que as outras castas e colegiadas sacras. Não possuímos documentação para conhecer a existência desse processo na África quinhentista. Já se podia ter dado uma influência européia. O pé europeu batia areia do setentrião africano desde tempo velho imemorial. O século XVI é O da penetração portuguesa regular, as entradas brancas. O árabe, espalhador de lendas e complexos do Oriente, andava na terra negra como familiar antes do branco. Até onde influiu o árabe? Até onde espalhou o branco a semente de sua projeção? Até onde desceu o romano? Ninguém sabe. Há muita afirmativa que é intuição ou intenção. Na literatura oral, hoje tão sistematizada e sabida, encontra-se estória popularíssima em Londres também popularíssima nas tribos mais antigas e metidas do sertão africano. Vezes um viajante traz conto africano, todo cioso da preciosidade, e descobre que é uma fábula de Esopo ou um episódio do Romance da Raposa, que toda Europa sabe dormindo contar e repetir. Aconteceu a Buttner, a Callaway, a Ellis, a Bleek. “African folklore is not a tree by itself, but a branch of one universal tree“, sentenciou Heli Chatelain, veterano no desertão negro.

O Catimbó reúne, reconhecíveis na sua união como veios num mesmo bloco de mármore, as participações de brancos, negros, ameríndios. A bruxaria de Gregos e  de Romanos revive processos perpétuos de encantamento disfarçados em rezas católicas usadas pelo português de casa armoriada e pelo preto fiel a Xangô. O envultamento, o eterno totum ex parte, registrado nos Diálogos de Luciano de Samosata, encontrados nos tijolos assírios que estão no Museu Britânico, vivo em todos os períodos da magia goeciana, a magia negra, segue fiel a si mesmo, como foi fixado em Grécia e Roma, e como está presentemente nos outros continentes. A Pajelança amazônica não é um elemento decisivo para o Catimbó como não o é o cerimonial da bruxa européia com os cartapácios de São Cipriano e da bruxa de Évora, ciência do Pajé americano ou do Quimbanda de Angola. O Catimbó é bruxaria sem recorrer ao diabolismo medieval. É a parte não-oficial, não-ritualística das religiões negras, americanas e européias, Está condenado pelos concílios da Igreja Católica, pelas instruções de todas as Polícias. Também um Pai-de-Terreiro que se preze não dá a um “mestre” de Catimbó o tratamento de colega, nem mesmo a simples tolerância de quem exerce atividade paralela, a distância entre um chaujfeur de caminhão e um piloto de Constellation. Uma Mãe-de-Santo não verá uma catimbozeira com olhos mansos de quem a sabe fiel aos encantos de Iemanjá ou Oxosse. Uns e outras enxergarão o intruso, o adventício, hostil, desconfiado, zombeteiro, um culto irregular e maldito, sem ligação e coerência, sem hierarquia e gradações, vivendo pela exploração do Medo, origem dos deuses petronianos. O Catimbó é o melhor, é o mais nítido dos exemplos desses processos de convergência afro-branco-ameríndia, As três águas descem para a vertente comum, reconheciveis mas inseparáveis em sua corrida para o Mar.

Catimbó, sinônimo de feitiço, de muamba; catimbozeiro, pseudônimo popular do feiticeiro e do bruxo, é título de quem mestra a “mesa”, usando a “marca” tumegante ou isoladamente atende aos clientes, vendendo “orações fortes”, fazendo muambas na intenção do amor e  da morte, Com ou sem o pequenino ritual do Catimbó, o nome continua, ligado à profissão ou à celebridade do “mestre”. Ofuscado pelo Candomblé e pela Macumba, o Catimbó reside no meio dos mocambos pernambucanos, baianos e cariocas. Restringe o “espaço vital”, economizando as “forças”. Mas não se confunde nem abdica. Certamente os orixás aparecem, vez por outra, com sem-cerimônia notável, numa “mesa” de Catimbó. Mas a ação é mais literária e, muito confidencialmente, creio que o orixá gegê-nagô num Catimbó é um índice negativo de sinceridade e boa técnica. Não sei o que pensará Mestre Carlos, Pinavaruçu ou Xaramundi olhando para Xangô, Omolu ou Oxosse. E se as Meninas de Saia Verde compreenderão Iemanjá. Sei que Nanã, Anamburucu, aderiu ao Catimbó porque não lhe deram alegrias nos bailados oblacionais do Candomblé.

Ensinam os sabedores que a lei da Contigiiidade Simpática, formulada por Huber e Mauss, fundamentada no totum ex parte, explica a Feitiçaria, pai e mãe do Catimbó, O que pertenceu ao Todo continua a ele idealmente ligado mesmo depois da separação. A coisa-feita, ebó, muamba, canjerê, mandinga, para eficácia segura não dispensará parte do todo humano, roupa, cabelo, unha, dente, saliva, sangue, suor, urina.

A segunda lei é que o Efeito é semelhante à Causa que o produziu. Imitando-se o fenômeno, reproduz-se a causa originária. São as Simpatias, universais e poderosas na superstição, a Magia Imitativa de Frazer.

Essas duas leis justificam a técnica da Transferência, do Transporte, do Transplante. E possível transmitir sofrimentos físicos e morais aos vegetais, animais e minerais. Tanto é possível fixar a febre malárica numa árvore, como esquecer uma mágoa contando-a à terra, tronco de pau, buraco aberto na estrada, talqualmente ocorreu ao cabeleireiro do rei Midas. Assim um objeto terá o segredo alheio e mesmo a vida humana. Nas estórias populares há muito gigante que guarda sua vida num recanto misterioso, dentro de um ovo, deniro de uma ave, dentro de um peixe, dentro de uma caixa, no fundo do mar. Quando abrirem a caixa, tirarem o  peixe, agarrarem a ave e quebrarem o ovo, o gigante morerá.

Os folcloristas ingleses e norte-americanos chamam-na, External Soul, Life External, tema conhecido em todas as literaturas orais do Mundo, desde a Rússia, onde o feiticeiro Koshchéi tinha sua imortalidade escondida num Ovo, até o Brasil, onde o Bicho Manjaléu ocultava a vida numa vela acesa.

Toda ciência feiticeira, toda essência do Catimbó reside nesses princípios. Fixar a vida, transferi-la, completa ou parcial, para um objeto, torná-lo a representação integral da sensibilidade, da vontade humana, comandada, dirigida, anulada pelo “mestre de mesa”, feiticeiro, “mestre” do Catimbó, é a essência, fim, realidade.

Meleagro, príncipe etólio, teve ao nascer à vida ligada a um tição que ardia na lareira. Altéia guardou a acha, que escondia a existência do filho, tornando invulnerável, insensível, imortal. Anos depois o Herói, companheiro de Jasão na conquista do Velocino de Ouro, matou. o javali gigantesco que Minerva mandara devastar a terra de Calidon. Atalanta, princesa da Arcádia, dera o primeiro golpe e o etólio ofereceu-lhe a cabeça do monstro, como troféu. Plexipo e Toxeu, tios maternos do Herói, protestaram e foram abatidos pela lança do sobrinho. Altéia, sabendo do massacre dos irmãos, arrebatada, pela cólera, atirou ao fogo o tição que era à vida do filho. Quando a acha se consumiu, Meleagro faleceu… Homero, ILÍADA, IX, conta o fato de um modo, e Ovídio, METAMORFOSES, VIII, de outro. Comum, tradicional e popular é a versão ovidiana, fixada em moedas e bronzes. E, além dos versos lindos, na oralidade que não desapareceu, perpetuou-se.

Quem matou Meleagro foi a Magia que vive no Catimbó.

Desde 1928 estudo esse mundo de catimbozeiros. Alguma relação foi publicada, com os enganos é deduções iniciais. Anos repassei informação e convívio na espécie.  Dou aqui o resultado final, serviço de confronto, diagrama de percurso, um depoimento sem imaginação, de bonne foy, lecteur…

Luis da Câmara Cascudo
Ay. Junqueira Aires, 377.
Cidade do Natal,
Dezembro de 1949.


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