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Lucas Oltmann de Oliveira [1]
(Confira o curso Iniciação ao Platonismo)
“Pois as cores são muitas, mas a luz é só uma.”
(Liber LXV)
“Pois vontade pura, desembaraçada de propósito, livre da ânsia de resultado, é toda via perfeita.”
(AL I:44)
“Pois produzir (criar) é fazer uma forma existir – isto é, preencher todas as coisas com contemplação.”
(Plotino. Eneada III:8)
Neste texto irei propor uma reflexão sobre a noção de Verdadeira Vontade para além da obra de Aleister Crowley e de outros thelemitas contemporâneos, procurando fazê-la a partir dos ensinamentos do filósofo neoplatônico Plotino. A reflexão, longe de ser impessoal, traduz um elemento importantíssimo na minha própria jornada dentro de Thelema, que procura, acima de tudo, dialogar o meu entendimento do Liber AL com filosofias e pensamentos de outros tempos, com paradigmas culturais completamente diferentes dos nossos.
De fato, considero que Thelema transcende em muito a obra do Mestre Therion, podendo ser percebida, através de diversos prismas diferentes, através de inúmeros sistemas filosóficos, místicos e espirituais. Desta maneira, em minha caminhada pessoal, Plotino se transformou em uma referência importante, um catalisador na minha compreensão de mundo, principalmente na relação existente entre a via contemplativa (espiritual) e a via da práxis (estar no mundo). Relação esta importantíssima, a meu ver, para o desenvolvimento da noção de Verdadeira Vontade, entendida principalmente enquanto manifestação do potencial divino-criativo do indivíduo no cosmos a sua volta.
Entendo a Verdadeira Vontade, portanto, a partir de Plotino e de Mestre Therion, como o engajamento contemplativo do ente no mundo – a transformação incandescente da vida no mais sublime sacramento, ou, na linguagem neoplatônica, no mais perfeito ato de Theurgia (θεουργία).
Para tanto, também deixarei subentendido neste texto a importância da noção de “transcendência na imanência”, ao meu ver, tão cara à obra do Mestre Therion, e um elemento fundamental da filosofia neoplatônica, escola da qual Plotino foi um dos mais ilustres representantes. Em um tempo caracterizado pela dessacralização excessiva da jornada da vida, considero o diálogo com a tradição sacra dos antigos um elemento importante para um remodelar da nossa autopercepção enquanto sujeitos no cosmos e, portanto, participantes do drama sagrado universal. Para tanto, necessito iniciar este texto com uma breve explicação do sentido de “filosofia” para os antigos, de modo que possamos desconstruir os nossos pré-conceitos em relação a este termo e às práticas a ele vinculadas.
Filosofia como modo de vida
A filosofia antiga, diferente do que entendemos hoje por “filosofia” (isto é, um conjunto de explicações ou saber teórico sobre o mundo), era para os gregos, um modo de vida (τεχνη του βιου), uma maneira de experienciar o mundo e de interagir com os múltiplos elementos da existência. Aderir a um movimento filosófico era exemplificado pelo termo ἐπιστροφή (conversão/retorno) no sentido não de uma aderência a um sistema de crenças ou grupo, mas de mudança radical na própria estrutura da vida, transmutação da personalidade, renascimento.
Para Platão, Pitágoras e os filósofos da Era Imperial, a filosofia era a verdadeira “iniciação”, o descortinar dos mistérios, a transformação completa e total da vida do indivíduo. Para os neoplatônicos, em especial, a conversão filosófica era a conversão (retorno) à unidade divina, existente (mas esquecida) na psique humana. Como Ulisses, o filósofo era um amante de Atena (a Sabedoria), em sua eterna busca marítima pelo retorno à sua própria casa, ao amago essencial de seu ser.
Dentre os inúmeros termos empregados pelos filósofos para se referir aos diversos elementos e práticas da vida filosófica, encontramos referência à dialética, à terapia da alma (ψυχοθεραπεία), à theurgia (práticas rituais dedicadas a ampliar a unicidade com o divino), ao cultivo da atenção (προσοχή), assim como à inúmeras práticas ascéticas e exercícios filosóficos-espirituais.
Theoria e Práxis
O mais importante deles, no entanto, entendido no platonismo não como uma prática, mas como a consecução de todas elas, é a θεωρῐ́ᾱ (theoría) termo grego que se aproxima de “visão”, mas que é traduzido para o latim e, consequentemente para o português, como “contemplação”. A theoría (contemplação) do primeiro princípio de toda a realidade é a experiência máxima da vida filosófica neoplatônica, considerada um caminhar em direção à níveis cada vez mais intensos de contemplação. A contemplação é suprarracional, transcendendo os limites da linguagem, da razão discursiva, da individualidade. É uma experiência numinosa, que só pode ser compreendida justamente por aquele que contempla. É uma dádiva, segundo Plotino, do Deus Eros, e a consecução de décadas de treinamento filosófico-espiritual.
Esta visão/contemplação que caracteriza a experiência máxima da filosofia neoplatônica não pode ser entendida como uma visão literal, o presenciar de alguma imagem ou objeto de concentração. Ela é a transcendência de todo objeto, assim como a aniquilação de qualquer sujeito no ato de contemplar. Um professor de neoplatonismo que tive comentou certa vez conosco que só pôde ter um entendimento do que seria a contemplação neoplatônica dez anos depois da conclusão de seu doutorado sobre o assunto – isto é, cerca de vinte anos depois de iniciar seu aprofundamento/estudo no tema. A theoría é divina e filosófica, sendo, segundo Platão, o modo de vida/existência (ζωή) dos Deuses, assim como das partes mais elevadas da alma humana.
Em níveis mais profundos, no entanto, todos nós já estamos em contemplação, unidos e aniquilados no princípio primeiro, basta apenas tomarmos consciência deste processo que se dá no atempo – αἰών (aíon/eternidade). O processo então envolve uma transformação gradual da atenção que, antes focalizada meramente nos objetos da sensação (os cinco sentidos), através da vida filosófica, pode abstrair dos sentidos e dos objetos das representações mentais para mergulhar em contemplação profunda. No linguajar platônico, o filosofo assim assemelha-se à Deus, pois participa da forma (essência) da sua divindade, que é experienciar o mundo em contemplação (theoría).
Durante toda a história da filosofia grega houve, contudo, uma oposição forte entre a noção de theoría (contemplação) e práxis (ação). A vida contemplativa do filósofo se distanciava da vida prática do artesão, do guerreiro e do artista. O repouso contemplativo se opunha, no pensamento grego, à atividade criativa no mundo. É em Plotino, no entanto, que essa dualidade será desfeita, e estes conceitos encontrarão sua expressão máxima: pois para o filósofo greco-egipcio, theoría e práxis são as duas faces de um mesmo processo – são, em muitos casos, quase sinônimos.
Plotino entendia que o ato de contemplação realizado pelos Deuses (ou, mais especificamente, pelo Nôus, a essência de todas as divindades) criara, automaticamente, o nosso mundo, a totalidade do real. O mundo é, portanto, uma criação contemplativa. Ao contemplar a beleza do Uno, o Demiurgo criou, sem motivo aparente, a existência, apenas para gozar do ato de sua contemplação. O cosmos é uma oferenda do Demiurgo e dos Deuses ao Uno.
Práxis e Theoría são, para Plotino, os dois lados de uma mesma moeda. Nossa ação criativa no mundo é uma contemplação da parte mais profunda de nossa alma; e nosso contemplar implica sempre em uma ação (criação) em nossa existência. Por este motivo, os grandes contempladores são aqueles que, como demiurgos, produziram grandes obras para o mundo – obras de arte, grandes sistemas espirituais e filosóficos, entre outros. Do mesmo modo, a ação criativa do artesão, do escultor, do tecelão, do guerreiro, do amante, são obras de contemplação.
Elas evidenciam e externalizam a contemplação interna que já jaz em nosso âmago. Nossa ação no mundo expressa a nossa contemplação mais íntima. Não há cisão entre o mundo do espírito (noético, contemplativo) e o mundo da criação material (práxis). Ambos são partes de um todo contínuo – interno e externo se expressam como manifestações de um mesmo real. Tudo é theoría, tudo é contemplação. Em nós, seres humanos, nossas maiores ações contemplativas são aquelas, no entanto, que fazemos pelo próprio ato de fazer – desembaraçadas de sentido, livres de ânsia de resultado, são ações que contém em si a própria finalidade do fazer.
A manifestação da Verdadeira Vontade
O verdadeiro artista que cria não para vender, tendo por finalidade o lucro da venda, mas sim para o próprio ato de criar, o faz de modo contemplativo. A obra criativa de sua vida é o resultado material de sua contemplação mais interna, assim como esse mundo – com todos os seus componentes – são frutos da ação contemplativa do Demiurgo Universal.
O pensamento plotiniano evidencia a sacralidade demiúrgica da vida. Não cinge a contemplação e a práxis em dois hemisférios separados, mas percebe-os como fundamentos de um mesmo existir. As ações dos deuses no mundo são suas contemplações; assim também as nossas. Nossas vidas, fragmentadas no tempo e vividas um momento de cada vez, com todas as suas cores e jogos de luz e sombra, são nossas oferendas particulares ao Deus que habita em nós (e que nós habitamos).
Cabe a nós percebermos a particularidade do nosso agir no mundo, aquilo que Eros nos convida a realizar, a obrar, desinteressadamente, renunciando aos frutos, mas simplesmente pelo gozo de realizar e ceder uma oferenda à divindade. Assim como a obra de arte contém sua finalidade em si mesma, em seu próprio ato de ser, que assim também a nossa vida possa ser um fim em si mesmo, uma dança contemplativa aos Deuses – o manifestar da Verdadeira Vontade que arde em nossos corações.
Plotino, apesar de genial, está, no entanto, apenas externalizando uma característica natural do pensamento grego e antigo de um modo geral. As tarefas da vida humana são atos contemplativos por excelência; os Deuses são contemplados em cada ato de ser. Deste modo, a atividade do artesão é uma contemplação à Atena, assim como as danças militares manifestam a theoría da Deusa.
O ato de beber vinhos e festejar é a práxis-contemplativa de Dioniso, o embriagar no néctar que nasce do bosque de Sua divindade; amar eroticamente alguém é um desejo interno por contemplar Afrodite e Eros; tocar a lira e declamar oráculos é um anseio pela contemplação de Apolo; emigrar no oculto, pelas encruzilhadas do mistério, é a oferenda humana à Hermes, produto da nossa contemplação.
Com a alienação do trabalho pós revolução industrial, tão bem descrita pelos autores marxistas, nós perdemos a capacidade de nos conectar contemplativamente com o nosso potencial criativo no mundo. Os Deuses não abandonaram os bosques – nós que paramos de procurá-los. Que, assim como nos ensina Plotino, possamos viver uma vida contemplativa, em que cada ato de Vontade não seja outra coisa senão um retorno aos Deuses, às essências inomináveis do Ser.
Que possamos ser cálices para a manifestação da Verdade Vontade no mundo, Demiurgos embriagados com o néctar da nossa criação-contemplação. Que nossa vida seja o nosso grande Ritual Theurgico aos Deuses, nossa própria obra de arte no mundo, o grande ato de amor sob vontade – o beijo do Santo Anjo Guardião.
Bibliografia:
BARACAT, Junior. Plotino, Enéadas I, II e III; Porfírio, Vida de Plotino. Introdução, tradução e notas. Tese de Doutorado. Universidade Estadual de Campinas. 2006
BRANDÃO, Bernardo. Ascensão e Virtude em Plotino. Tese de Doutorado em História da Filosofia. UFMG.
_________________. Mística e Filosofia em Plotino. Tese de Mestrado em História da Filosofia. UFMG.
CROWLEY, Aleister. Magical and Philosophical Commentaries on The Book of the Law.
HADOT, Pierre. Exercícios Espirituais e Filosofia Antiga. Ed. É Realizações. 2014.
REALE, Giovanni. Renascimento do Platonismo e do Pitagorismo. Edições Loyola. 2008.
______________. Plotino e Neoplatonismo. Edições Loyola. 2008.
UZDAVINYS, Algis. Philosophy as a Rite of Rebirth: From Ancient Egypt to Neoplatonism. 2008.
Lucas Oltmann de Oliveira (@oltmannsmask) é escritor, historiador e professor. Autor dos livros “A Festa das Máscaras” e “O Demônio do Deserto“.
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