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Lucas Oltmann de Oliveira
No livro O Demônio do Deserto, um dos conceitos fundamentais desenvolvidos é o da Ashurmani-pá, um termo usado para descrever uma experiência de magia sexual, um dos sacramentos da tribo nômade Karänay. Segundo o relato do livro, é um ato sexual realizado entre duas pessoas que, durante o ápice (orgasmo) pode culminar em uma experiência mística, na qual o eu e o outro se aniquilam durante o ato, dissolvendo o mundo das aparências e permitindo o acesso à realidade ultimal – o D’Ashr – através da dissolução egóica.
Na concepção atribuída ao Ashurmani-pá, o desejo sexual, longe de ser compreendido somente como uma atração carnal, é entendido enquanto manifestação de um desejo por dissolução dos contrários: o “Eu”, que só existe a partir do referencial ao “Outro”, no ato do desejo, passa a desejar mesclar a si mesmo no objeto do seu desejo, a fundir-se na experiência de não mais possuir um eu, de ao outro pertencer – de penetra-lo e deixar ser penetrado. No mundo dicotômico do eu e do outro, em que cada pessoa se vê isolada daqueles ao seu redor, o Ashurmani-pá (união sexual) é entendido enquanto um desejo por abdicar da solidão existencial, da soberania egóica, para se mesclar no Outro, para fundir consciências. Neste sentido, o desejo (Eros) é entendido enquanto uma porta de entrada para o Nirvana – a aniquilação egóica.
Na linguagem Karanay, o Ashurmani-pá produz a experiência do D’Ashr, que é a manifestação da realidade como ela realmente é, em si e para si. Sem um “Eu” para interpretá-la, sem um “Outro” para defini-la, a natureza pura e simples por detrás de todos os fenômenos se torna manifesta. A aniquilação do eu no ato de misturar-se, na união pelo desejo de pertencer ao corpo de outro e lá existir, produz a experiência da unidade pura, que é o próprio D’Ashr. O Eros é concebido, neste sentido, enquanto desejo pela unidade, pelo reintegrar-se, pela dissolução do múltiplo na unidade.
O ato sexual torna-se uma imagem mítica da experiência mística máxima e vice- versa. A sexualidade é concebida como uma forma de samádhi, de aniquilação do sujeito no objeto de meditação – para utilizar-se uma nomenclatura extraída dos Yoga Sutras de Patanjali. O desejo-pela-dissolução, que é a marca central da Ashurmani-pá, se torna sinônimo de desejo-pela-união: ao buscar unir-se ao corpo desejado, o sujeito busca participar de um mundo diferente do seu, de existir para além do seu círculo mágico pessoal, abraçando a totalidade. Só há união verdadeira, no entanto, onde as restrições do eu estão ausentes: por este motivo, é preciso abdicar de si mesmo, se mostrar nu, e de tocar ao outro, para que a experiência da dissolução-união possa tomar corpo.
Esta dissolução-união, na filosofia de O Demônio do Deserto, é uma imagem da própria divindade (D’Ashr), em seu papel de criação e dissolução de toda a realidade. Por este motivo, nesta imagem mágica do D’Ashr (durante o ato sexual) uma vida nova pode ser criada – um novo espírito pode vir à Encarnação, o nascimento de uma nova consciência pode emergir. O ato sacramental de produzir uma vida, portanto, é um reflexo da totalidade que emerge durante o Ashurmani-pá, o mesclar-se de uma vida na outra, produzindo senso de unicidade.
O Ashurmani-pá, entendido enquanto um nirvana-dinâmico, desejo-de-união que é desejo-por-dissolução, acaba por dar centralidade ao objeto de desejo: a pessoa por quem o sujeito se erotiza torna-se uma imagem mágica da sua dissolução, uma espécie de ícone do D’Ashr. Neste sentido, o Outro-Desejado, que na linguagem Karänay é o “Ashar”, torna-se como uma espécie de objeto-meditação no qual a consciência do seu amante deve submergir. Esta imersão meditativa, que pode se dar durante o próprio ato sexual, no qual as identidades são fundidas em uma unidade aniquiladora, é o próprio Ashurmani-pá enquanto samádhi, unificação do amante no objeto amado.
No livro nos é dito, citando a experiência de dois importantes personagens:
“No ápice do gozo, no cume do ato, ambos experimentaram o Ashurmani-pá, o transe, no qual, para os Karänay, o mundo do Espírito é revelado, pois a alma, fundida com seu Ashar, recupera sua natureza original. Retorna para antes da cisão dos Espíritos. Mas, por algum motivo, que só os deuses sabem, o Ashurmani-pá dos dois foi tão intenso que mudou suas vidas para sempre. Durante o ato, aniquilaram-se, pararam de existir como indivíduos, morreram na totalidade, tudo aniquilado, destruído na realidade divina. A Ashurmani-pá realizou a caída do véu: o hímen dos céus se rompeu e ambos experienciaram o transe da unidade. (p. 125)
A experiência sacramental do Ashurmani-pá dilui os opostos, realizando o aniquilamento das consciências individuais e da percepção do mundo em dualidade. Durante o Ashurmani-pá categorias como macho-fêmea, espírito- matéria, alto-embaixo, anjo-demônio, sagrado-profano são aniquiladas: o mundo se manifesta como uma unidade, como um ponto único de confluência de todos os contrários. O Ashurmani-pá é entendido, nesta lógica, como um “veneno”, pois seu potencial principal é o de destruir (envenenar) a consciência da separação, a natureza egóica, dissolvendo tudo na unicidade não-dual. É um catalizador da experiência venenosa da dissolução.
E é a este Veneno, que é o próprio Elixir Sagrado, o Néctar dos Néctares, o Vinho Santo da Verdadeira Iniciação, que o Livro Negro, escritura sagrada dos Abrukirianos (uma das quatro cidades presentes em O Demônio do Deserto), se refere aos proclamar os seus versos numinosos:
A Serpente se enrosca na Totalidade,
E sua Língua traz o Fogo onde serão queimados,Enroscados,
Anjos e Demônios,Como Um,
Como Nenhum.
Do seu Veneno bebem os Anjos Celestes,
Tombando dos Céus à Terra,
Perdendo as Asas.Do seu Veneno bebem os Demônios,
Que ardem em chamas na forma de asas,
Enquanto ascendem aos céus.
E Todos os Seres,
Do Cálice do seu Veneno,Bebem.
E tombam,
Nas Duas Terras Emaranhadas.Enrolados,
Tombados,
Aniquilados,
Em Um,
Em Nenhum.
Lucas Oltmann de Oliveira (@odemoniododeserto) é escritor, historiador e professor. Autor dos livros “A Festa das Máscaras” e “O Demônio do Deserto“.
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