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Vampirismo e Licantropia

Sangrentos Olhos Vermelhos

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Shirlei Massapust

Se os demônios de baixa hierarquia do seriado televisivo Supernatural (2005-2020) tem escleras pretas, populares ao ponto de inspirar transumanos a tatuarem os próprios olhos, é porque as fotos publicitárias em jornais e revistas do filme Dracula: Prince of Darkness (1966) surpreenderam uma horda de jovens fãs de horror com sua tecnologia inovadora. Os olhos de Christopher, o maior Drácula desde Bela Lugosi, estavam assustadoramente escuros. Hoje já existem lentes de contato coloridas, mas à época em que Terence Fisher dirigiu tal filme nada era assim tão simples.

Segundo o blogueiro Miguel Andrade, “o efeito era conseguido com lentes de acrílico, duras, que se encaixavam no glóbulo ocular. Nas imagens dos bastidores desse filme dá pra ver o maquiador colocando no Lee e claro, imaginar o desconforto dele. E nesse mundão de filmes posteriores de vampiros, monstros e zumbis a coisa continuou assim! Só a partir da década de 80 que chegaram as lentes coloridas gelatinosas que conhecemos hoje e foi uma revolução!”[1]

Eu, que constava entre as inumeráveis pessoas que recortavam artigos de jornais e revistas para colecionar em pastas catálogo, antes da internet, na segunda metade do século XX, nunca esquecerei as escleróticas com poder de fascínio hipnótico do Conde Drácula, que pareciam pretas em numerosos impressos em preto e branco. Descobrir que a cor real era vermelha no filme colorido (cuja fita VHS só poderia ser obtida com dificuldade) era como achar diamante no minério kimberlítico (e não como se decepcionar com as feias escleróticas vermelhas dos demônios de estrada na quinta temporada de Supernatural).

Isso nos parecia exatamente com algo que deveria haver sido tal como era desde o início dos tempos. Por mera consulta ao inconsciente coletivo a gente intuitivamente sabia, sem necessitar ler urdu turco, que em algum lugar haviam casos como os do folclore Khatukay anotado por Evliya Çelebi, em 1666, onde “existem velhos circassianos respeitados, bem nascidos e de aparência sábia (…) que podem reconhecer os oburs. Parentes de moribundos os pagam para (…) verificar que um obur realmente saiu de seu túmulo na noite anterior, conforme vestígios do solo remexido. Então, as pessoas vêm e cavam a sepultura do obur (…) seus olhos estão cheios de sangue e seu rosto é vermelho carmesim, o que indica que ele bebeu sangue humano” (Seyāatnāme VII, ff 151b-152a).[2]

O problema é que vermelhidão na parte branca dos olhos parece menos com o misterioso desconhecido e mais com algo banal, que existe na realidade; como quando cai sabão ardido dentro de nossos olhos. Rubor facial e avermelhamento das conjuntivas por contração de vasos sanguíneos são sintomas da ausência de quebra de moléculas do acetaldeído, quando o indivíduo alérgico ou intolerante a álcool ingere bebida alcoólica.

Christopher Lee em Dracula: Prince of Darkness (1966) e olho humano reagindo ao alérgeno.

Christopher Lee em Dracula: Prince of Darkness (1966) e olho humano reagindo ao alérgeno.

 

O avermelhamento de uma ou ambas as conjuntivas também pode ser sintoma de conjuntivite, doença transmissível comum, sobretudo entre crianças e adolescentes.

 O crioulo de olhos vermelhos

Em 1949-1950, quando minha mãe era criança, aluna do internato Instituto Brasil de Paquetá, as inspetoras negras Elsa e Aída divertiam e assustavam as crianças que demoravam a dormir com a ameaça de atividade dum vilão fantástico: “O crioulo dos olhos vermelhos vai te pegar”. Não ficou claro se o personagem seria um criminoso, o fantasma dum albino ou um tipo de morto-vivo. Minha mãe lhe deu um nome: “Zong”.

Quem seria esse crioulo que concorria com a cuca e com o bicho papão no ofício da coleta noturna de crianças malcriadas? Como ele é? Como se parece? Uma cabocla que antigamente narrava o mito com certa constância respondeu-me: “Muito feio”. Mas o que é ser feio? Fiquei sem uma resposta razoável. Feio é feio, um conceito autossuficiente, subjetivo e vazio. Quando visto à noite, o crioulo encantado parece um fantasma, muito branco, e assusta os negros de tal modo que quem o vê corre de medo. Também assustaria brancos, índios, caboclos e toda a gente, se estes encontrassem ocasião de vê-lo.

No tempo da colonização das américas os aristocratas europeus, em especial os espanhóis, chamavam de criollo aos seus descendentes nascidos no continente americano. Estes eram geralmente brancos pobres ou filhos de casamento inter-racial. O termo “crioulo” é uma braquilogia lusófona de raiz espanhola. Segundo Aurélio Buarque do Holanda, crioulo é o “indivíduo de raça branca nascido nas colônias europeias de além-mar, particularmente da América” ou o “negro nascido na América”[3].

No Brasil, quando o branco, recém-chegado à roda de samba, se misturava com os negros, sem saber dançar, ele realizava movimentos aleatórios desengonçados. Daí a expressão popular para algo mal feito: “Parece o samba do crioulo doido”.

O fabuloso crioulo de olhos vermelhos não era nada disso. Ele pareceria um tipo físico muito raro, adjetivado “ácido”, que não é a dita pessoa ácida (mal-humorada e/ou sarcástica). Também não é alguém deformado por queimadura nem quem tomou chá de cogumelo. O nascido “ácido” seria filho de negros. Não de pardos ou mestiços. Só negros de “raça pura” gerariam o acidente genético. Sarará é o termo tupi guarani para designar o cabelo crespo. No caso do Homo sapiens nascido “ácido” o bebê teria cabelo sarará e todos os traços étnicos dos pais, porém é mais branco do que um branco caucasiano.

Diferente do europeu, o afrodescendente “ácido” seria o “verdadeiro branco”, característica que o faz “feio, muito feio mesmo” (conforme o padrão estético subjetivo da pessoa que me narrou a história). Sendo assim a pessoa real chegaria a parecer um crioulo dos olhos vermelhos, mas sem os olhos vermelhos e sem vontade de comer gente no jantar.

Na zona norte do Rio de Janeiro os narradores de estórias sobre o crioulo de olhos vermelhos se dividem entre os que o descrevem embriagado, com avermelhamento bilateral nas membranas conjuntivas, ou como um autêntico possuidor de íris vermelhas. Quem fala em conjuntivas avermelhadas, racionaliza a questão com base na experiência empírica mais comum. Os demais juram que viram o sobrenatural em carne e osso. Ou então é amigo do amigo de quem viu.

A beleza dos olhos vermelhos

Animais, como coelhos e gatos, vendidos em pet shop, comumente apresentam olhos com íris vermelhas. Sendo o albinismo tão apreciado em bichos de estimação, a característica não assusta crianças no sucesso nacional Coelhinho, composto e gravado em 1995, no 3º álbum de estúdio da cantora e apresentadora de programa infantil Eliana: “De olhos vermelhos, / De pelo branquinho, / De orelhas bem grandes. / Eu sou coelhinho”.

O Homo sapiens raramente desenvolve tal característica, porém, o preconceito contra humanos nascidos com íris vermelhas é tanto que lhes dificulta a sobrevivência. Atualmente, íris vermelhas ocorrem mais frequentemente em negros albinos africanos. Em todos os casos, o que avermelha a íris é sua translúcida transparência que nos permite enxergar a cor real de nossa carne. “A falta de melanina também pode fazer com que a íris fique transparente o suficiente para permitir que os vasos sanguíneos apareçam, dando a impressão de que os olhos são vermelhos ou rosas”.[4]

Olho humano naturalmente despigmentado.

É curioso como um mitologema entra na sua casa e na sua vida sem que você sequer suspeite o que está acontecendo, nem como se deu a origem da narrativa fantasiosa. Eu cresci sob ameaça da perseguição do Zong. Acumulei um monte de bonecos de olhos vermelhos e cabelo branco, apenas seguindo a estética dos rasetsu (羅刹), personagens de videojogos e minisséries da franquia Hakuoki (薄桜鬼), entre outros modelos de vampiros orientais onde o branco é a cor do luto. Enfim, fui atrás de retratos falados do que deveria ser pura magia, sem fazer a mais remota ideia de que aquela aparência ideal talvez estivesse fundada num equívoco ante certas pessoas que não são nada mais que pessoas, gente como a gente, dentre os quais alguns afirmam sofrer preconceito racial.

Olho humano naturalmente despigmentado.

Seria o medo da diversidade a real origem da lenda do crioulo de olhos vermelhos, o papão com força de mana, sobrenatural materializável nas encruzilhadas, à meia noite, que imita a aparência de um Homo sapiens albino? A visão noturna do crioulo provoca um susto tão grande que pode fazer o observar urinar e/ou evacuar nas calças, sair correndo gritando, ter um ataque cardíaco. Se correr o bicho pega, se ficar o bicho come. O lobisomem luso-brasileiro é também o “amarelão”, o que descoloriu.

Diante do exemplo da realidade me custa crer que alguém os ache tão feios, mesmo batucando ponto de exu caveira no cemitério. Definitivamente não se acha albinos ocultos dentro de armários para fazer barulho de estalo de madeira à noite, nem aguardando o sono da criança, debaixo da cama, esperando para puxar seu pé com mãos geladas. 😊

Notas

[1] ANDRADE, Miguel. O Avesso da cena: Olhos hipnóticos de Drácula. Em: LA DOLCE VITA. URL: <https://cidadaoquem.blogspot.com/2017/03/o-avesso-da-cena-olhos-hipnoticos-de.html>. Posto online em 22/03/2017 as 18h41.

[2] YAŞAR, Murat. Evliya Çelebi in the circassian lands: vampires, tree worshippers, and pseudo-muslims. Em: Acta Orientalia Academiae Scientiarum Hung. Volume 67 (1), 2014, p 81-83.

[3] FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo Dicionário da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, não datado, p 401.

[4] OLHOS VERMELHOS EM ALBINOS. Em: CERP Oftalmologia, postado em 08/07/2015. URL: <http://www.cerpo.com.br/olhos-vermelhos-em-albinos/>.

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