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Vampirismo e Licantropia

Os Incorruptos

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Shirlei Massapust

No dia em que o lama Dashi-Dorzho Itigilov (1852-1927) sentiu que ia morrer ele escreveu um testamento e iniciou a cerimônia do seu funeral ao estilo antigo, à revelia dos outros monges. Então expirou sentado em posição de lótus. Quando os fatos provaram que Itigilov não estava blefando seus companheiros de ofício deram prosseguimento ao rito funerário. Foi customizado um caixão de pinho quadrado para que o lama pudesse ser enterrado na pose meditativa que havia escolhido para ser lembrado pela posteridade. Uns e outros ainda imaginavam que o ato de ultima vontade era apenas um capricho quando houve a primeira exumação e ficou constado que o lama logrou êxito na pretensão de se transformar em múmia natural.

De acordo com a tradição budista aqueles que realizam este rito não morrem de fato: Eles vivem em estado de nirvana. Peritos russos que avaliaram o corpo de Itigilov em 2002 atestaram que o lama se encontra congelado no tempo, num limiar paradoxal. Há quem questione se o morto ainda pode sonhar. Inclusive, seus velhos amigos e discípulos afirmam se comunicar com ele por telepatia.

A última vez em que eu tive notícias de Itigilov foi em 2015, quando seu corpo incorrupto ainda se encontra no Mosteiro de Ivolga, na Buriátia, e participava da vida social normalmente, como se fosse apenas mais um religioso a meditar no recinto. A conferência budista reconheceu-o como objeto sagrado e um novo templo estava começando a ser construído em sua homenagem. Talvez um dia alguém cumpra a última etapa do ritual milenar e este homem seja transformado numa estátua dourada.

Existem ao menos vinte e cinco múmias de monges budistas banhados em metal. A última descoberta se deu em janeiro de 2015, quando um corpo de duzentos anos foi encontrado na posição de lótus. Pesquisadores do Museu Drents, na Holanda, acreditam que os monges mumificavam a si mesmos fazendo uma dieta de mil dias apenas de nozes, sementes e frutas, enquanto se exercitavam intensamente para livrar seus corpos de toda a gordura. Depois passavam por outra dieta de raízes e chás tóxicos, que tinham o objetivo de preservar o corpo e expelir parasitas.

Depois dessas fases completas – que duravam cinco anos e meio, – o monge era trancado na posição de lótus em uma tumba de pedra, com um pequeno tubo pelo qual respirava. Enquanto estivessem vivos eles sinalizariam tocando um sino. Quando o sino parava de tocar outros mil dias eram contados e a tumba era aberta para que outros monges verificassem se a mumificação foi bem sucedida. Se sim, apregoavam que o incorrupto atingiu o estado da graça suprema e o exibiam num templo.[1]

Assim dizem as fontes primárias. Contudo, o ritual parece exagerado pelos documentos históricos e muito mais ainda pela pop arte, como vemos na luta dos personagens protagonistas contra estátuas com esqueletos internos representadas na animação de Gantz (ガンツ), série japonesa de mangá escrita por Hiroya Oku.

Afinal, Dashi-Dorzho Itigilov nunca ingeriu veneno nem cometeu suicídio. Ele apenas sabia que todo homem é mortal, percebeu que uma doença incurável lhe causava risco de vida, meditou durante poucas horas e obteve um sucesso impecável.

Monge Liu Liquian, personagem histórico mumificado e transformado em estátua. Seus órgãos vitais foram substituídos por papéis escritos em mandarim. Atualmente jaz exposto no Naturhistorisches Museum, em Viena, Áustria.

Rezar por toda a eternidade não era um ideal restrito ao oriente. A Catedral de Santiago de Bilbao (em Vizcaya, País Vasco, Espanha) e a capela do convento de Saint-Gildard (em Nevers, França) contém relicários de cristal onde jazem, respectivamente, os corpos incorruptos da beata Margarida Maria Lópes de Maturana (1884-1934) e da Santa Bernadette Soubirous (1844-1879), ambos revestidos com uma camada de cera pintada. As duas tem as mãos juntas na posição de oração habitual entre os católicos. Certa vez um monge fez este relato a J. Moschus:

Tínhamos um dia subido ao monte Amanus e encontramos aí uma gruta. Ao entrarmos vi um eremita de joelhos, com as mãos erguidas ao céu e os cabelos caídos até o chão. Pensei que estava vivo e curvei-me, dizendo-lhe: “Reze por mim, padre…” Como não respondeu, ergui-me e aproximei dele para o abraçar. Quando lhe pus a mão em cima, descobri que estava morto e, largando-o, fui-me embora. Estava já a certa distância quando vi outra gruta. Entrei e vi um monge. Disse-me ele: “Fizeste bem em vir, meu irmão. Entraste na gruta do outro monge?” Eu respondi: “Não…” Acrescentou então: “Na verdade, meu irmão, o monge está morto há quinze anos…” Ora, estava conservado como se tivesse adormecido uma hora antes.[2]

Uma lenda católica sustenta que a jovem cristã Lúcia de Siracusa (283-304) fez voto de castidade, contrariando a vontade do noivo pagão a quem estava prometida. O homem rejeitado denunciou-a às autoridades romanas. Tentaram jogar a santa num prostíbulo, mas nem uma junta de bois conseguiu fazer a mulher se mover. Um soldado arrancou os olhos de sua face, mas ela ganhou olhos novos. Lúcia foi decapitada e cremada, mas o corpo permaneceu em perfeito estado de conservação.

Deus não cura os amputados fazendo crescer olhos ou ossos novos nos dias de hoje e com certeza não elegia privilegiados para desfrutar dum tal tratamento diferenciado no passado. O verdadeiro significado das alegorias da lenda áurea é compreendido por analogia, observando provas materiais de outros casos concretos, a exemplo das relíquias de Santa Aurélia Petronilla, expostas na Basílica de São Pedro, em Roma. O martírio de Ágape, em 304; Silvano, em 305; Cândida, em 309; e doutros santos do cristianismo primitivo foi seguido da reconstituição dos corpos em cera.

Ou seja, nos primeiros anos do cristianismo foi necessário reconstituir aqueles corpos desfigurados, mortos hediondamente, para que os injustiçados tivessem ao menos um velório condigno. Muitos finados transformados em estátua ainda existem para provar o talento dos artistas que faziam secretamente este trabalho.

Com o passar do tempo a Igreja Católica acrescentou a incorruptibilidade aos requisitos necessários à santificação. Contudo, foram criadas regras inatingíveis para o reconhecimento da circunstância como miraculosa; conforme lemos no capítulo De Cadaverum Incorruptione, do tratado De servorum dei beatificatione et beatorum canonizatione (1734), escrito pelo Cardeal Lambertini (que depois seria o Papa Bento XIV). Enfim, hoje é considerado incorrupto um corpo que se menteve sem ajuda da ação humana. Isso significa que primeiro “deus” precisa fazer sua parte saponificando, liofilizando ou produzindo outro tipo de mumificação natural. Então alguns corpos são expostos assim mesmo, horrendos e caindo aos pedaços. Mas até o século XIX, quando o clero constatava o “milagre” era feita arte sobre o fado para exposição em relicários (caixões de cristal) sem ferir a dignidade da pessoa humana.

Restos mortais de Vincent de Paul (1581-1660) reconstituído em cera, exposto para visitação na Capela de São Vicente de Paula, em Paris. Seu coração jaz num relicário na Capela Nossa Senhora da Medalha Milagrosa.

Restos mortais da Beata Ana Maria Taigi (1769-1837) expostos para visitação na Basílica de San Grisogono, em Roma. (Foto © Paulo R. Campos).

Desde 1925 uma bonita Santa Bernardete (1844-1879) jaz exposta na Igreja de Saint Gildard, em Nevers, França, porque as freiras cobriram todas as partes expostas com uma camada de cera e depois pintaram. Em certos casos até as roupas de personalidades importantes foram consideradas incorruptas. Casemiro, (1458-1484) filho da rainha Isabel da Áustria e de Casimiro IV da Polônia, santificado e incorrupto, levou coroa e paramentos para o túmulo. A Beata Mafalda Sanches (1184-1257), infanta de Portugal e rainha de Castela, até parece usar batom vermelho incorrupto. Seu corpo íntegro jaz ricamente vestido e exposto no Mosteiro de Arouca.

Restos mortais do Beato Stefano Bellesini (1774-1840) em exposição para visitação numa capela da Basílica-Santuário da Mãe do Bom Conselho, em Genazzano.

Existe pelo menos um caso de incorrupto que rejuvenesceu. O jesuíta Cláudio La Colombière (1641-1681) era o típico nobre que não queria ser padre, mas o foi porque a mãe mandou; então ele se acostumou ao ofício religioso e confessou sua verdadeira vocação. Após a morte virou santo e suas relíquias estão depositadas em La Colombière Chapel, França. Lá o visitante constata que a reconstituição em cera o fez parecer mais moço e belo. O couro cabeludo calvo e castanho foi substituído por cachos loiros ornados com imitação de coroa de louro e auréola dourada. Abaixo do pescoço uma chaga discreta, porém dramática, lhe deu ares de mártir sofredor.

Corpos reconstituídos podem ser esplêndidos, mas eles não parecem pessoas vivas. Eles realmente dão a impressão de serem estátuas realistas. Em todo caso não deveríasmos esperar pela ocorrência de membros flexíveis, exalação de perfume floral e outros sinais miraculosos relatados em muitas narrativas de santos e vampiros. Um morto antigo com ausência de rigidez cadavérica já está tão degradado que as partes rígidas se romperam. Ou então haveriam corpos reconstituídos com juntas de boneco, semelhantes às articulações dos esqueletos postos a dançar nas festividades do mundo Maia ou no tema alegórico da dança macabra, comum na Europa.

Embonecamento funerário

Graças à demanda, a transformação do corpo humano em algo menos humano e mais divino – ou pelo menos mais belo, em relação ao aspecto natural do cadáver – acabou se tornando acessível aos profanos.

A associação entre os bonecos de coleção e suas donas foi fortalecida durante o séc. XVII, quando os holandeses passaram a confeccionar perucas de cabelo humano para bonecas de louça com olhos de vidro. As mechas podiam ser fornecidas pelas clientes e, em caso de óbito, era comum enterrar a boneca junto com a falecida.[3] Esta seria seu corpo incorrupto em versão econômica, como uma figura shabti egípcia.

O alto índice de mortalidade infantil na Era Vitoriana propiciou o surgimento de mercado para um tipo muito específico de artesanato na Inglaterra. A boneca de luto (mourning doll) era feita de cera, em tamanho real, usando cabelo raspado durante o velório e roupas vestidas pela criança durante a vida. Tal boneca era deitada em moldura de madeira e vidro igual a um relicário. Algumas vezes a parte traseira da cabeça era plana para parecer afundar no travesseiro. A boneca era exposta no velório e depois guardada no local da sepultura, com função de corpo alternativo que não apodrece. Algumas mães preferiam ficar com a boneca. Para crianças mais velhas era feito apenas um busto com costas planas, a fim de economizar cera.

Boneca de cera com cabelo e roupas de um bebê falecido. (c. 1860).

Com a invenção da parafina industrial, ex votos passaram a ser vendidos em vários países. Em 1935, Marie Tussaud montou a primeira exibição permanente dum Museu de Cera em Baker Street, Londres, retratando celebridades vivas e mortas, de aspecto realístico, ainda que sem nenhum fio de cabelo e nem um pingo de santidade.

Essas xerocópias incomodaram os religiosos que não desejavam que suas relíquias sagradas parecessem com os abortos e brinquedos de burguesas, muito menos com algum show de horrores circense. Então o clero católico simplesmente abandonou o antigo costume de restaurar cadáveres com uso de cera.

A sorte dos incorruptos não reconstituídos é que o público alvo de tais exposições é pouco exigente em matéria de fatos probatórios. Por exemplo, São Francisco Xavier morreu em 1552, passou dois meses e meio dentro dum caixão cheio de cal viva e foi transportado para a Igreja de São Paulo, em Goa, onde permanece exposto. O corpo antiqüíssimo se encontra severamente desfigurado; contudo os habitantes desta localidade não enxergam defeitos. Estão acostumados a venerar o vetāla e consideram incorrupto qualquer esqueleto que não haja sido cremado.

O crime mais estranho do novo milênio

Você pensa que já viu de tudo até encontrar um colecionador de falsas santas customizadas! O historiador Anatoly Moskvin, nascido em 1966, doutor em cultura celta, homem fluente em treze línguas, autor de numerosos livros, costumava ser considerado a maior autoridade em cemitérios da Rússia até a época em que resolveu estudar a técnica usada no embalsamamento de Lenin e exercer o passatempo de abrir covas, mumificar meninas mortas, inserir olhos de vidro, caixinhas de som, pontos de articulação, revestir em cera e agrupar em seu apartamento.

Em dois anos Moskvin furtou vinte e oito corpos de raparigas com idade entre dois e quinze anos na intenção de fazer arte, bonecas de coleção. Foi acusado de vilipêndio a cadáver e profanação de túmulo (itens 1 e 2 do artigo 244 do Código Penal russo). O réu alegou insanidade ao defender-se durante o julgamento:

O fato é que eu sou especialista no povo Celta e, aprendendo essa cultura, eu notei que os druidas mantinham relações com os mortos. Eles chegavam às sepulturas e dormiam sobre elas… Então comecei a dormir sobre as sepulturas das crianças e seus espíritos apareceram para mim. Eu já fazia isso por cerca de vinte anos; dormia nas sepulturas e olhava, com ou sem contato. Primeiramente eu cevava as sepulturas daquelas com quem tinha contato, mas depois comecei a cavar todas. Em casa eu falava com elas. Tínhamos o destacamento. Tínhamos a líder, a anti-líder, tínhamos uma hierarquia. Tínhamos uma linguagem própria, nossas próprias músicas, nossas férias, ou seja, tínhamos nosso mundo particular. Depois descobri que cheguei a um impasse, da mesma forma que cheguei a um impasse após dez anos de estudos de magia branca. (…) Talvez eu tenha exaurido o tema da pesquisa. (…) Lenin viveu. Lenin está vivo. Lenin vai viver. Como assim? O avô Lenin morre e renasce para adorar crianças? Assim o Estado nos mostrou o exemplo de que em nosso mausoléu deita-se um boneco.[4]

Num de seus artigos acadêmicos Moskvin descreve como os povos do alto do rio Volga produziam bonecas e como elas eram usadas em rituais em meados do século XIX. Produziam-se principalmente figuras humanas de sexo feminino com pano forrado de palha, areia, etc. O cabelo, muitas vezes, era cabelo humano verdadeiro:

Quando saíam de casa durante o dia, os pais deixavam as crianças aos cuidados das bonecas. Com elas, eles sabiam que nada de ruim aconteceria aos seus filhos. Assim bonecas eram utilizadas como brinquedos e até mesmo como talismã… Para os agricultores, bonecos também tinham um significado adicional. Na Rússia, até o século XX, eles mantiveram seu valor mágico, eram usados em rituais e feitiços… Nas províncias centrais eram comuns bonecos skeleki; uma característica importante desses bonecos era uma imitação de um movimento das juntas através de um dispositivo. Era um esforço para dar vida às suas bonecas. Eram dispositivos simples para movimentos simples: Dobradiças, mecanismos nos olhos, rodas de equilíbrio com manivelas, alavancas e rolos com lâminas. Estes dispositivos eram geralmente inseridos em uma boneca oca.[5]

Quando os policiais realizaram busca e apreensão no apartamento de Moskvin, situado no distrito de Leninsky, em Nizhny Novgorod, na noite do dia 02/11/2011, as múmias já ocupavam três quartos. Não era possível caminhar pelos cômodos sem pisar e se esgueirar pelas pilhas de livros acumulados que preenchiam o apartamento. As múmias embonecadas estavam vestidas em diferentes trajes, sentadas ou deitadas sobre os livros.

Notas:

[1] GALASTRI, Luciana. Exames revelam que estátua de mil anos abriga corpo de monge. Em: Galileu. Última atualização dia 23/02/2015 às 12h. URL: <http://revistagalileu.globo.com/>.

[2] AMBERLAIN, Robert. O Vampirismo. Trad. Ana Silva e Brito. Lisboa, Livraria Bertrand, 1977, p 109.

[3] A RAINHA DOS BRINQUEDOS, objeto feito à imagem e semelhança do ser humano, sempre ao lado do homem em todas as civilizações – a boneca. Artigo publicado no blog do Museu dos Brinquedos, em 12 de September de 2010 – 2:59 PM. URL: <https://museudosbrinquedos.wordpress.com/>

[4] O APRENDIZ. “Crimes Históricos: A Casa de Bonecas”. Publicado no blog O Aprendiz Verde, em 08/11/2011. URL: <http://oaprendizverde.com.br/2011/11/08/grandes-crimes-a-casa-das-bonecas/>.

[5] MOSKVIN, Anatoly. “Fabricação de bonecas da região de Nizhny Novgorod e do alto do Volga em meados do século XIX e início do século XX”. Citado e traduzido no artigo “Crimes Históricos: A Casa de Bonecas”. Publicado no blog O Aprendiz Verde, em 08/11/2011. URL: http://oaprendizverde.com.br/2011/11/08/grandes-crimes-a-casa-das-bonecas/

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