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Fontes Míticas e Históricas do Hermetismo

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Thiago Tamosauskas

Hermes Trimegisto é dito como a pedra fundadora da alquimia, do hermetismo e uma das fontes fundamentais do ocultismo ocidental. As diversas tradições míticas que tentam dar uma explicação para suas origens usualmente são diferentes versões sobre quem escreveu a Tábua Esmeralda e  o Corpus Hermeticum. Seu autor é uma figura tão antiga que foi associada aos deuses Thoth e Hermes (e Mercúrio) e posteriormente relacionado aos profetas Enoque pelos judeus e cristãos e Idris pelos muçulmanos.

Os Pilares de Thoth

Ruinas de um templo de Thoth em Sheikh Abada

Seja como for, os antigos concordam no testemunho de que a Tabua Esmeralda e demais escrituras herméticas faziam parte de um cânone extraído de dois grandes pilares supostamente antediluvianos que podiam foram encontrados no Egito. O primeiro pilar, teria sido encontrado próximo a Heliópolis e o segundo nas proximidades de Tebas e, repletos de inscrições hieroglifas, receberam primeiramente o nome “Pilares dos Deuses da Luz do Amanhecer” para posteriormente serem chamados simplesmente de “Pilares de Thoth”.

A existência destas colunas é controversa, mas foram descritas pergaminhos que contam após serem encontradas foram reunidos no Templo de Amon, em Siwa eram periodicamente expostos ao público. Este pergaminhos que datam aproximadamente à 1550 a.C, ou seja do segundo milênio antes de Cristo já se tratavam dos Pilares de Thoth como relíquias do passado.

As “Colunas de Thoth” também foram mencionadas por Sólon, o legislador e escritor grego que supostamente teria as estudado em primeira mão e observou que eles comemoravam a destruição de uma antiga civilização. Há também o relato de Heródoto, historiador grego do século V a.C que os descreveu dizendo que  “Um pilar era de ouro puro “e o outro era de esmeralda, que brilhava à noite com grande brilho”. Foi Herotodo que fez a ligação com o deus grego chamando-os de “Pilares de Hermes” devido a correlação popular entre os dois deuses. O escriba alexandrino de nome Manetho registrou ainda que estes pilares continham 36.525 manuscritos escritos por Thoth. Outros testemunhos sobre os Pilares de Hermes foram deixados por Alexandre, o Grande, Aquiles Tácio, Dio Crisóstomo e Laércio.

O que não se tem a mesma comprovação é que os pilares continham em seu interior um número fabuloso de manuscritos em formas de tábuas de argila. Uma delas se destacava por sua forma e conteúdo. Era uma tábua verde e cristalina que continha o resumo da filosofia de Thoth.

Alexandre, o Grande e a Biblioteca de Alexandria

Seja como for apenas os faraós e sacerdotes de Amon podiam entrar no templo e consultar os manuscritos. Um ponto a favor desta teoria é que existem frases da Tábua de Esmeralda que podem ser encontradas no  Papiro de Berlim N3024 (2.000 a.C.), nos Livro dos Mortos (1.500 a.C.) e no Papiro de Ani (1250 a.C.) e principalmente em papiros do egito helênico, como no “Uma Invocação a Hermes”.  Quando Alexandre, o Grande conquistou o Egito ele tornou-se faraó e teve acesso aos manuscritos. Quando partiu em direção a Mesopotâmia, Alexandre teria transferido os Pilares e seu conteúdo em uma caverna na Capadócia com exceção da Tábua Esmeralda que teria sido separada da coleção. Alexandre morreu em 323 a.C e pediu para ser enterrado em Siwa, mesma região do templo de Amon. Contudo a localização exata de sua tumba e da tumba dos Pilares de Hermes permanecem sendo descobertas arqueológicas reservadas ao futuro.

O consenso entre os estudantes da história do ocultismo é que embora as tábuas tenham se perdido seu conhecimento e conteúdo foram levados pelos escribas de Alexandre, o Grande para serem preservadas e estudadas na famosa biblioteca de Alexandria junto com a Tábua Esmeralda. O pesquisador e mistico canadense Manly P. Hall, encontrou fragmentos de uma carta de um viajante do período helenista que havia visto a Tábua de Esmeralda em Heliópolis.

“É uma pedra preciosa, como uma esmeralda na qual esses caracteres são representados em baixo-relevo, não gravados na pedra. Estima-se que tenha mais de dois mil anos. Claramente, a matéria dessa esmeralda já esteve em um estado fluido como vidro derretido, e foi moldada em um molde, e a esse fluxo o artista deu a dureza de uma esmeralda natural e genuína, por sua arte.”

Manetho e Apolônio de Tiana

Gravura sobre Apolônio de Tiana

Em particular os registros de um de seus escribas chamado Manetho nos chama atenção. Ele é o autor do Aegyptiaca em grego, uma importante fonte cronológica para os reinados dos reis do antigo Egito. Segundo Manetho os escritos tinham não dois, mas nove mil anos e continham em si toda soma de conhecimento dos povos que viveram antes da história registrada. Em Sothis, um de seus livros, Manetho escreveu que:

“Depois do Grande Dilúvio, os textos hieroglíficos escritos por Thoth foram traduzidos da língua sagrada para o grego e depositados em livros nos santuários dos templos egípcios.”

É um mito popular que a grande Biblioteca de Alexandria tenha sido incendiada e destruída em seu auge. Na verdade ela degenerou gradualmente ao longo dos séculos, começando com a repressão de intelectuais durante o reinado de Ptolemeu VIII. O incêndio em 49 a.c foi apenas seu atestado de óbito e seja como for tanto as cópias doa manuscritos dos Pilares de Thoth como a maior parte da obra de Manetho estão hoje perdidas.

Após aproximadamente um século de silêncio ouvimos novamente falar da Tábua Esmeralda quando um rapaz chamado Balinas, explorando as cavernas próximas a cidade de Tyana, na Capadócia teria redescoberto em 32 d.C o tesouro cultural escondido por Alexandre. O jovem estuda seu conteúdo em silêncio e posteriormemente cresce para se tornar conhecido como Apolônio de Tiana. Ele teria preservado a Tabua Esmeralda consigo por toda sua vida e a trouxe para Alexandria onde escreveu a maioria dos seus livros.

Em um desses livros, que hoje só temos acesso pela tradução árabe “O Sirr al-khalīqa wa-ṣanʿat al-ṭabīʿa” (“O Segredo da Criação e a Arte da Natureza”) também conhecido como Kitāb al-ʿilal (“O Livro das Causas”) Apolônio conta ao leitor como descobriu seus manuscritos em um cofre abaixo de uma estátua de Hermes em Tiana, e que, dentro do cofre, um velho cadáver em um trono dourado segurava a Tábua de Esmeralda. Além de transcrever o texto da Tábua o livro é uma verdadeira enciclopédia de filosofia natural contendo, entre outras coisas a mais antiga versão da teoria do enxofre-mercúrio como princípios fundamentais da criação.

Com a morte de Apolônio em 97 d.C a Tábua Esmeralda teria sido preservada em um caixa de ouro e escondida no santuário interno em um templo em Hermópolis. Uma irmandade chamada “Filhos de Hórus” teoricamente foi criada para proteger este e outros manuscritos bem como as obras restantes de Manetho e Apolônio. Esta é a última vez que ouvimos falar de alguém tendo alegando ter tido acesso a este material original. Depois disso o silêncio.

Traduções da Tábua Esmeralda

Como vimos, a mais antiga tradução da Tábua de Esmeralda esta em árabe. Esta tradução foi feita aproximadamente no ano 700 e só chegou a Europa após a conquista moura da Espanha. A primeira tradução em Latim só surgiu trezentos anos depois em 1140 em um livro de João de Sevilha chamado “Liber Secretorum Creationis” (Livro dos Segredos da Criação).

A popularização da Tábua veio pelas mãos do alquimista Albertus Magnus que publicou sua própria tradução em 1200. A partir de então ela passou a ser considerada uma chave contendo os principais segredos da alquimia.

Tradução Árabe

حق لا شك فيه صحيح
إن الأعلى من الأسفل والأسفل من الأعلى
عمل العجائب من واحد كما كانت الأشياء كلها من واحد بتدبير واحد
أبوه الشمس ، أمه القمر
حملته الريح في بطنها، غذته الأرض
أبو الطلسمات، خازن العجائب، كامل القوى
نار صارت أرضا اعزل الأرض من النار
اللطيف أكرم من الغليظ
برفق وحكم يصعد من الأرض إلى السماء وينزل إلى الأرض من السماء
وفيه قوة الأعلى والأسفل
لأن معه نور الأنوار فلذلك تهرب منه الظلمة
قوة القوى
يغلب كل شيء لطيف، يدخل في كل شيء غليظ
على تكوين العالم الأكبر تكوّن العمل
فهذا فخري ولذلك سمّيت هرمس المثلّث بالحكمة

Tradução Latina

Verum sine mendacio, certum et verissimum:
Quod est inferius est sicut quod est superius, et quod est superius est sicut quod est inferius, ad perpetranda miracula rei unius.
Et sict omnes res fuerunt ab Uno, mediatione unius, sic omnes res natæ fuerunt ab hac una re, adaptatione.
Pater ejus est Sol, mater ejus Luna;
portavit illud Ventus in ventre suo; nutrix ejus Terra est.
Pater omnes Telesmi totius mundi est hic.
Vis ejus integra est, si versa fuerit in Terram.
Separabis terram ab igne, subtile a spisso, suaviter, cum magno ingenio.
Ascendit a terra in cœlum, interumque descendit in terram et recipit vim superiorum et inferiorum.
Sic habebis gloriam totius mundi.
Ideo fugiet a te omnis obscuritas.
Hic est totius fortitudinis fortitudo fortis: quis vincet omnem rem subtilem omnemque solidam penetrabit.
Sic mundus creatus est.
Hinc erunt adaptationes mirabiles quarum modus est hic.
Itaque vocatus sum Hermes Trismegistus, habens tres partes philosophiæ totius mundi.
Completum est quod dixi de Operatione Solis.

Tradução em Português

É verdade, certo e muito verdadeiro:
O que está embaixo é como o que está em cima e o que está em cima é como o que está embaixo, para realizar os milagres de uma única coisa.
E assim como todas as coisas vieram do Um, assim todas as coisas são únicas, por adaptação.
O Sol é o pai, a Lua é a mãe, o vento o embalou em seu ventre, a Terra é sua nutridora;
O Pai de toda Telesma do mundo está nisto.
Seu poder é pleno, se é convertido em Terra.
Separarás a Terra do Fogo, o sutil do denso, suavemente e com grande perícia.
Sobe da terra para o Céu e desce novamente à Terra e recolhe a força das coisas superiores e inferiores.
Desse modo obterás a glória do mundo.
E se afastarão de ti todas as trevas.
Nisso consiste o poder poderoso de todo poder:
Vencerás todas as coisas sutis e penetrarás em tudo o que é sólido.
Assim o mundo foi criado.
Esta é a fonte das admiráveis adaptações aqui indicadas.
Por esta razão fui chamado de Hermes Trismegisto, pois possuo as três partes da filosofia universal.
O que eu disse da Obra Solar é completo.

Corpus Hermeticum

Aproximadamente na mesma época em que Apolônio de Tiana morreu e diga-se de passagem no mesmo local (Alexandria) a história começa a dar testemunho de tratados que diziam trazer em si o antigo conhecimento de Hermes Trimegisto.  Diversos manuscritos foram escritos nessa época em grego koné e há testemunhos o suficientes para acreditarmos que se tratava de uma literatura bastante apreciada pelos cristãos do primeiro séculos. Justino Martir, Clemente de Alexandria e Lactâncio são alguns dos pais da igreja que o mencionam.

Destes manuscritos apenas apenas 17 chegaram aos dias de hoje:

I. Discurso de Poimandres a Hermes Trismegisto
II. Discurso de Hermes a Asclépio
III. Um discurso sagrado de Hermes
IV. Um discurso de Hermes a Tat: A Cratera e a Mônada
V. Um discurso de Hermes a Tat, seu filho: O deus invisível e inteiramente visível
VI. Hermes a Asclépio: Que o bem está somente em Deus e em nenhum outro lugar
VIII. Nada se perde e por ignorância as mudanças são chamadas de morte
IX. Sobre a intelecção e a sensação
X. A Chave
XI. Discurso de Nous a Hermes
XII. Sobre a Inteligência comum
XIII. Sobre renascimento e o silêncio
XIV. Sobre a Saúde da Alma
XVI. De Asclépio para o Rei Ammon
XVII. Sobre os entraves que são gerados na alma e decorrentes do corpo

Estes manuscritos foram reunidos pela primeira pelo erudito, historiador e teólogo bizantino Miguel Psellos no século XI. A primeira versão em latim surgiu quatro século depois pelas mãos do italiano Marsilio Ficino em 1471. Ficcino traduziu os primeiros 14 manuscritos e outro italiano Lodovico Lazzarelli traduziu o restante logo em seguida.

O Corpus Hermeticum, como passou a ser chamado teve um impacto gigantesco entre os pensadores renascentistas e são em boa parte responsáveis pelo florescimento da alquimia e da magia dos séculos seguintes sendo uma influência direta nos travalhos de Pico della Mirandola, Giordano Bruno, Francesco Patrizi,  Cornelius Agrippa, Paracelso, Issac Newton, Robert Fludd só para citar alguns.

O Corpus Hermeticum foi traduzido em diversos idiomas desde então. Em português temos ela presente na Coletânea Hermética, traduzida da versão inglesa de William Wescott e a edição da Editora Polar, feita com bastante capricho e direto do grego. Uma tradução francesa feita pelo frei dominicano André-Jean Festugière, colocou em cheque a origem alexandrina dos manuscritos. Suas criticas receberão ampla aceitação do meio acadêmico até que os Manuscritos de Nag Hamadi. Estes treze treze códices de papiro embrulhados em couro encontrados no Egito 1945 nos tiraram qualquer dúvidas de que o contéudo do Corpus Hermeticum remonta no mínimo até o século II.

O Caibalion

Tido hoje como um texto fundamental do hermetismo, a verdade é que o Caibalion fui um livro publicado apenas em 1908. A culpa disso recai sobre o próprio autor. Ele se identifica como “Os Três Iniciados”, aproximando sua da figura de Hermes Trimegistro. O título original era “The Kybalion: A Study of the Hermetic Philosophy of Ancient Egypt and Greece” (Caibalion: um Estudo da Filosofia Hermética do Antigo Egito e Grécia). Mas embora o título seja claro a se colocar não como uma obra de Hermes e sim como um estudo dos ensinamentos herméticos no seu conteúdo há a afirmação de que se trata de uma recompilação de um antigo livro iniciático de mesmo nome.

Contudo, se tratado como um documento hermético moderno o Caibalion é parcialmente bem sucedido em propor uma codificação sistemática do hermetismo, traduzindo a Tábua Esmeralda e o Corpus Hermeticum na forma dos seus sete princípios herméticos. Seu principal mérito está em tornar mais acessível estes ensinamentos mas não substitua a leitura e meditação sobre as fontes mais antigas. Existem hoje diversas traduções do Caibalion, inclusive para kindle na tradução de Raph Arrais, que  aliás faz uma excelente reflexão sobre o mérito e desmérito do livro em em seu blog.


Thiago Tamosauskas autor do Principia Alchimica, um manual simples e direto dos principais conceitos e práticas da alquimia.

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