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Sitra Achra

O terceiro pólo – Satanomicon

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O desafio é o grande fator humano. Através do desafio, advém a felicidade, o êxtase, após a vitória, que é o fluxo transbordante do Self. Para ilustrar melhor essa idéia, baseei-me numa reportagem,[1] que trata da ida ao Monte Everest, considerado o Terceiro Pólo, só escalável durante poucas semanas do ano e contando com tempestades de proporções gigantescas.

Segundo a reportagem, “Clientes pagam até 65000 dólares (sem contar a passagem aérea até o Nepal e o caro equipamento pessoal de cada um) por seis semanas (tempo que o organismo leva, em média, para se adaptar à crescente falta de oxigênio) de agudas privações físicas e psicológicas, exaustão, alucinações, vômitos e edemas, hipotermia, necroses e excitação.”  A trilha ao cimo do Monte é repleta de cadáveres. Basta um erro e toda a expedição fica por lá mesmo. Na verdade, a média diz que, em cada quatro alpinistas, apenas um retorna com vida.  É uma aventura de risco calculado, mas não controlável.

A morte por exaustão, ou congelamento, é perigosamente agradável. Assemelha-se a uma sonolência gostosa.  Quem assistiu ao filme Sonhos de Akira Kurosawa, viu um trecho onde os alpinistas estavam perdidos na neve e um deles vê uma alucinação, que lhe dá um cobertor aconchegante e o convida ao sono. Isso realmente acontece.

Luiz Makoto Ishibe, um alpinista brasileiro, dá a sua opinião:  “Como descrever a sensação de completa exaustão, de medo controlado, do risco, da dúvida, do prazer físico, da beleza ou das proporções? É como querer explicar uma paixão ou um orgasmo. Não é azul, nem azedo, nem líquido. Com um pouco de ousadia na cabeça e muita disciplina, o homem pode se transformar num animal de olhar selvagem, obsessivo, que acaricia o diabo e desafia suas forças. E, quando isso lhe acontece, só ele pode saber o quanto lhe custou chegar lá.” Continua: “Se é que existe um destino, eu me sinto grato por não ter de morrer como mais um geólogo. É estranho que os humanos chamem de morte natural a morte por velhice. Nunca vi, no meio natural, um animal morrer de velho. Mesmo o leão, quando começa a perder a força, acaba vítima dos companheiros na luta pela soberania territorial. Ou acabará como presa de um bando de hienas. Não consigo imaginar um leão de óculos e dentadura, caçando. Nem uma zebra com marcapasso. Ou gazelas instalando alarmes antipredatores em seu território. A meu ver, a morte por velhice, que nós humanos praticamos, deveria chamar-se morte artificial.” Para Makoto, morte natural encontram os alpinistas no Everest.

É óbvio que há duas classes de pessoas envolvidas: os alpinistas que estão envolvidos existencial e economicamente na tarefa e os turistas que pensam apenas em termos de emoção. Parece muito tênue o limite entre uma atividade perigosa e uma grande estupidez, porém isto também é reflexo da vida, sempre de mãos dadas com a morte. O que leva a pessoa a um tipo de objetivo como este é se superar.

Um cristão, num forum de discussão, disse que ia rezar para passar nos estudos da faculdade. Um adepto da magia wiccana, num mail list, perguntou se havia algum feitiço bom para tirar notas altas. De fato, há processos mágicos que auxiliam quaisquer atividades, mas o melhor feitiço ainda é o estudo. Pessoalmente, nunca aceitei nada de mão beijada. Quando terminava a aula, ia para a biblioteca e pesquisava os principais tópicos nas prateleiras, reunindo inúmeros livros ao meu redor, pois os dois grandes auxiliares de qualquer estudo são o questionamento baseado na dúvida e a pesquisa de todas as posições sobre o assunto, INCLUSIVE as contrárias. Depois, fazia uma redação própria sobre o assunto, citando os autores e o que me levava à conclusão por vezes diversa da do professor. O primeiro resultado foi um histórico escolar excelente, sem a necessidade de memorizar arduamente os temas para a prova, já que é muito mais fácil fazê-lo quando se escreve de próprio punho, no seu próprio estilo. O segundo resultado foi passar no primeiro concurso público que surgiu e ganhar o respeito profissional.

Alguém, neste momento, me dirá: Noto que você teve tempo suficiente para estudar, mas eu trabalho o resto do dia…  Respondo eu que ninguém trabalha 24h por dia, sempre é possível um escalonamento de valores. A pessoa pode abrir mão de alguns prazeres, como beber chope numa roda de amigos, para estudar e lutar pela sua independência financeira, sem que seja preciso depois alimentar a máquina dos cursinhos. Eu estudava em todos os momentos ociosos, inclusive nas conduções. Quem estuda apenas para passar nas provas, corre o risco de se formar um engenheiro fazendo confusão nas vias de tráfego, ser um médico receitando remédio errado para o paciente, ser um advogado copiando petições de outros profissionais etc. etc. etc. Não estranhe, caro leitor, isto é mais regra do que exceção. O desenvolvimento do ser humano é árduo. Sem que a pessoa exija o máximo de si, ela se torna apenas morna, quando realmente deveria se tornar quente, fervendo mesmo, um excelente profissional que imponha respeito não pela sua aparência de bonzinho, mas pelo seu amor-próprio revelado na sua honra profissional.

Outro fator é se você mistura a fome com a vontade de comer. Se você necessita realmente ter sucesso no seu objetivo e, ao mesmo tempo, sente imenso prazer pelo que faz, já possui a chance de competir com qualquer um. Não se espante com o número de pessoas inscritas num concurso público, porque elas estão sob o peso do quantitativo dos concorrentes, enquanto você preocupa-se com o qualitativo de si. Você está, na verdade, preocupado em romper as suas limitações, além da simples decoreba, contando com o auxílio destes dois aliados importantes, que citei no chavão.

A ida ao Monte Everest é, portanto, a metáfora de quem aceita os riscos e procura ir além de si mesmo. O alpinista aceita o desafio, com a ajuda da audácia, disciplina e determinação férrea, rompendo os limites da sua natureza. Exemplifiquei longamente apenas o aspecto profissional, mas poderia fazê-lo também com a vida amorosa, social, religiosa e muitas outras. O importante é você se tornar um verdadeiro alpinista não lá no Everest, mas aqui mesmo, atingindo o terceiro pólo dentro de si.

 

 


[1] Revista Veja n. 1526, de 17.12.97, intitulada No Limite da Vida.

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