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Sitra Achra

Ego: entre a veneração e a destruição

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Uma discussão que tem estado bem presente já há algumas décadas entre os satanistas é aquela voltada ao ego em sua relação com a espiritualidade humana. De uns anos pra cá, contudo, tem-se visto esta discussão se acirrar com a difusão (nem sempre madura e criteriosa) da Corrente Anticosmica 218, que tem se manifestado bastante em artigos de blogs e em algumas tendências musicais, tendo como algumas de suas principais vertentes o black metal, dark ambient e occult rock. Juntamente com este fenômeno, tem-se visto a radicalização de uma postura de rejeição ao ego, que por sua ligação direta com a matéria, tende a ser visto enquanto uma “ilusão” que oculta a verdadeira face caótica e primitiva da natureza. Na contramão deste movimento, há ainda aqueles que, baseando-se no satanismo difundido por Anton Lavey (de forma tão “criteriosa” quanto o anticosmico), apregoam uma espécie de “adoração” ao ego, apoiando-se na ideia de que cada ser humano, individualmente, é seu próprio deus.

 

Partindo destas premissas, percebemos que existe, atualmente, a difusão de dois pólos de pensamento completamente antagônicos e extremistas no interior do satanismo, um que defende a veneração do ego, e outro a sua destruição. Por considerar ambas as formas de radicalismo extremamente insuficientes e calcadas em bases teóricas frágeis e equivocadas, escrevo esta presente reflexão. Não possuo qualquer intenção de esgotar este tema, mesmo porque faltam recursos para tanto, contudo intento fazer uma pequena discussão visando nortear as reflexões e discussões de alguns que tenham interesse nesta questão. Para começar, faz-se necessário antes de tudo saber: o que é o ego?

 

O ego é a esfera mais superficial da nossa psique, aquela que tem vínculo direto com a percepção que temos do mundo à nossa volta. De igual forma, é a esfera onde se forma a nossa “personalidade” (persona = máscara), que é constituída social e culturalmente, a partir das influências que recebemos da nossa realidade externa e de fatores internos. Quanto aos fatores internos, cabe mencionar a existência do “superego” e do “id”. O superego é onde se situam os valores morais construídos de acordo com a sociedade em que vivemos, o sentimento de culpa, pudor ou decência que portamos em nós. O id é a esfera inata e mais profunda de nossa psique, constituída por pulsões instintivas inerentes à nossa natureza, vinculadas ao prazer (Eros) e à morte (Thanatos), uma parte que alguns filósofos e ocultistas chegaram a considerar a portadora de nossa “verdadeira vontade”, a manifestação da “não-existência”. Tanto o superego quanto o id se relacionam diretamente com o ego, e assim influenciam nas atitudes cotidianas e na formação da personalidade, da individualidade.

 

Neste sentido, satanistas agnósticos inspirados por Lavey apregoam a necessidade de cultuar o ego, partindo da máxima thelemita de que “não há nenhum deus senão o homem”. Enquanto isso, aqueles vinculados principalmente ao satanismo anticosmico corroboram que o ego é uma ilusão que oculta a verdadeira natureza (presente no id ou self) e acusam a doutrina de lavey de “falso satanismo” por pregar o “culto ao ego”. Contudo, arrisco dizer que ambos os grupos, ao fazerem tais afirmações, ignoram a verdadeira intenção que Lavey tinha com isto.

 

O satanismo laveyano, desde seu começo, é marcado por um caráter fortemente apóstata e profano, tendo como marcas o enaltecimento do prazer, da matéria e da escuridão enquanto formas de auxiliar o ser humano a superar suas barreiras cristãs. Partiu, para tanto, das concepções presentes em Nietzsche acerca do cristianismo. Para o filósofo, a doutrina cristã, corroborada pelo idealismo platônico, seria o “desprezo à vida”, tendo em vista que pregava a necessidade de se levar uma vida de restrições materiais e morais, apenas aguardando uma recompensa pós-morte. Sendo assim, aqueles que encabeçavam a CoS chegaram à conclusão que o primeiro passo para a libertação espiritual seria a renegação de qualquer expectativa metafísica, passando-se assim a cultuar à “existência vital”. Nisto, criava-se a ideia de que deuses já não podiam valer o ser humano em nenhum aspecto, tendo este que, sozinho e pelo próprio esforço, redimir a si próprio, sendo seu próprio deus e dando vazão aos seus desejos.

Neste contexto, o dito “culto à matéria e ao ego” aparecia enquanto um ímpeto humanista, uma forma de contrapor-se ao culto ao espírito metafísico feito pelo cristianismo, a valorização do “eu” em detrimento de um deus providencial e superior. Apesar do termo conotar uma espécie de “idolatria a si próprio” (egolatria), não era isto que queria expressa, mas sim a necessidade de usufruto responsável, e não compulsivo, dos prazeres da vida. É evidente, entretanto, que o satanismo não é apenas isto, mas esta seria uma “primeira iniciação”, um despertar necessário para a inserção do indivíduo no caminho sinistro. Alimentar o ego seria um passo necessário para posteriormente direciona-lo para atingir o objetivo necessário, e para criar a devida força para que o indivíduo pudesse imergir no caminho sinistro.

Segundo Lord Ahriman, em seu “Satanomicon”, o ego é a esfera em que prepondera o desejo, enquanto o self é onde se encontra a vontade. O ego, neste sentido, possui sua importância enquanto um “meio”, e não um fim, tendo em vista que um indivíduo de desejo fraco é incapaz de atingir qualquer objetivo. No entanto, não se deve se deixar escravizar pelo ego, mas sim controla-lo e delapida-lo para assim haver capacidade de atingir a verdadeira vontade.

Já Morbitvs Vividvs, em seu “Lex Satanicus”, afirma da ineficiência de qualquer luta contra o ego como forma de despertar a divindade, tendo em vista que o ego é uma ilusão, não podendo esta ser destruída pela espada, mas sim pela dança. Segundo o autor,

“No Satanismo se destrói a ilusão compactuando com ela. Transcende-se o ego, pela  vivência do ego. Torna-se Deus, vivendo a mais alta expressão da humanidade. Chega-se ao Todo fazendo parte D’ele. Notou a diferença? Não existe uma batalha contra a ilusão, não se investe força e tempo dando força e poder a algo que quer deixar para trás. Existe  sim uma transcendência, você. sobrepuja, ultrapassa a ilusão, se distinguindo dela.”

A partir das questões citadas, podemos chegar a algumas conclusões. Primeiramente, o ego é realmente uma ilusão passageira, mas ao mesmo tempo é a expressão de nossa humanidade e individualidade, de nossos aspectos únicos que nos distinguem do restante das pessoas. Sendo assim, não é sequer razoável acreditar que o ego possa ser destruído ou eliminado em vida. Enquanto estamos vivos, somos humanos e estamos sujeitos às diversas determinações e limitações inerentes ao ato de ser humano, mas ao mesmo tempo somos presenteados com a dádiva do prazer e da dor, bem como do aprendizado e da experiência que tudo isto nos trás.

Sendo assim, longe de apregoar uma utopia inalcançável, devemos utilizar o ego a nosso favor, ao invés de lutar contra o mesmo. Contudo, isso também não significa qualquer forma de egolatria, pois esta nos tornaria escravos do desejo e sem qualquer objetivo, levando-nos à decrepitude, à decadência. Devemos sim, canalizar o desejo do ego para atingirmos nossa vontade pura e superior, dominando e direcionando nossos desejos. Levando em consideração a influência do Id (self) sobre o ego, é evidente que com o despertar da superior vontade (personificada no arquétipo de Baphomet) haverá a influência da mesma sobre esta camada superficial de nossa psique. Sendo o ego nossa janela para o mundo, isso nos tornaria mais aptos para vivenciar o mundo à nossa volta de forma plena, sadia e influir sobre o mesmo, manifestando assim nossa capacidade divina de criar e transformar nossa realidade até o momento em que a morte, em um abraço forte, nos conduzisse para uma outra dimensão da realidade.

Que possamos, deste modo, refletir sobre nossa condição humana e, longe de querer destrui-la em vida, possamos transborda-la com nossa essência divina e, utilizando-a sempre a nosso favor, encontrar a perfeita harmonia entre o profano e o divino. 666!

Thanatos Daemon

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