Categorias
Queer Magic

Sodomia e Feitiçaria

Leia em 8 minutos.

Este texto foi lambido por 176 almas essa semana.

Eu me lembro muito bem da primeira vez que fui fodido. Exausto e relaxado depois de uma tarde inteira de sexo, eu estava esparramado nu na cama do meu namorado e expressei aquelas fatídicas palavras: “faça o que quiser comigo.” Pelo canto do olho eu o vi pegar uma garrafa de vidro com formato de chifre de unicórnio, cheia com um líquido amarelado (óleo de amêndoa), e eu sabia o que estava para acontecer. Eu não tive medo, apenas uma sensação de relaxamento profundo. Não doeu, mas no momento da penetração, um ego morreu e um outro renasceu. Uma “iniciação” certamente; uma iniciação que me deu insights que agora tentarei reunir neste artigo.

Ao ser fodido, que tipo de sentimentos despertam dentro de mim? Com duas palavras talvez consiga descrevê-los com mais precisão – abandono e posse. Ao ser fodido eu abandono as defesas do meu ego, me abro de forma profunda para outra pessoa, e sou capaz de deixar de lado as “máscaras” sociais que uso para lidar com o mundo. Eu me deixo levar pelo prazer total e pelo prazer do meu amante. Eu fico cruzando a fronteira entre o êxtase e a agonia até estar gemendo e chorando sem controle nenhum; fogo líquido macio em meu estômago e uma sensação feroz de formigamento quase real nas pontas de meus dedos. Até hoje eu não cheguei ao orgasmo sendo apenas fodido, mas até ai, gozar e esporrar são experiências distintas para mim na maior parte do tempo, e a ejaculação peniana perde toda a importância quando é comparada com todas as sensações que parecem ameaçar rasgar meu corpo ao meio, quando tenho um amante dentro de mim. Quando um amante atinge o orgasmo comigo, mergulho em uma sensação profunda de paz e satisfação. Me sinto revitalizado e posso seguir com a vida trazendo um brilho dentro de mim. Lamento profundamente nesses tempos de AIDS não poder receber dentro de mim o esperma de um amante. Ainda assim, é como se, ao me entregar completamente para outra pessoa, eu reafirma meu senso de individualidade.

No exato momento que me entrego, entre em um estado de possessão. É mais dificil de descrever isto, mas está ligado, acredito, a um erro comum de compreensão sobre as relações sexuais – o conceito de “ativo” e “passivo”. Pessoalmente eu prefiro as expressões “doador” e “receptor”. Nosso miserável condicionamento patriarcal deu origem à concepção de que “ativo” = “masculino” e “passivo” = “feminino”. Tenho rejeitado cada vez mais este tipo de raciocínio. Só porque uma pessoa (masculina ou feminina) recebe o pênis de um amante em seu corpo, não significa necessariamente que seja automaticamente “passiva”. Isto é claramente ilustrado nos ícones Tântricos de Shiva montado por Kali. O condicionamento social é forte o suficiente para fazer com que alguns homens gays sintam que qualquer pessoa que dê o cu é de alguma forma menos “homem”, pois abandonar-se ao prazer que não é um comportamento “masculino” apropriado. Por que não? Pessoalmente acredito que ser fodido é uma celebração da minha masculinidade. Eu dificilmente sinto que tenha deixado de lado o meu poder pessoal e o entregado para o outro (a menos que, evidentemente, que a “entrega do poder para o outro” faça parte do jogo sexual).

Eu geralmente sinto que tenho um certo poder sobre o amante que me fode. O prazer que ele sente e sua ejaculação de certa forma reafirmam meu próprio poder interior. Em algum lugar de seus diários mágickos, Aleister Crowley diz algo sobre pensar que “quando um homem me fode, é porque eu sou belo”. Os registros exaustivos de Crowley sobre trabalhos sexuais (como o Trabalho Paris – Paris Working) mostram que ele preferia ser o agente passivo quando se engajava em atividades homossexuais de magia sexual. Mesmo assim a importância de sua magia  sexual com parceiros como Victor Neuburg tende a ser deixada de lado por aqueles que herdaram sua filosofia mágicka. Alguma idéia do porquê?

A intensidade desses sentimentos – de se perder com o prazer e possuir outra pessoa, e ao mesmo tempo, de ser possuído – eu encontrei em outra situação; nas brumas do transe, experimentando desde o envultamento de minha consciência por um espírito até a possessão completa por um espírito durante o ritual e a dança. O transe de possessão é visto com certo desdém pelos ocultistas ocidentais, assim como permitir que o cacete de outro homem os penetre é um anátema para muitos homens. De várias formas, permitir que minha psiquê seja penetrada por um espírito (Deusa, Deus ou seja lá quem for) traz à tona as mesmas sensações e sentimentos de ser fodido fisicamente. A chave parece ser o deslocamento consciente ou mesmo desejado do prórpio ego por outro – de oferecer meu corpo como veículo para a transmissão da energia. Crowley sugere isto em seu texto sobre magi(k)a devocional (Bhakti Yoga), no Liber Astarte (Magick, p460-471). O objetivo final em Bhakti é ser invadido pelo espírito com quem o Mago está trabalhando. Em um Beltane eu invoquei a Deusa Eris, a tirando das alturas, e Pan, tirando-o das profundezas (ou melhor atrás de mim) – eles se encontraram em algum lugar no meio do caminho e eu perdi a consciência quando atingiram o clímax.

Jean Genet sugere que uma relação homossexual “obriga” os homens a descobrir os elementos “femininos” em sua própria psiquê, mas não é necessariamente “o mais frágil ou o mais novo, ou mesmo o mais gentil dos dois que se sobressai; mas o mais experiente, que pode ser o homem mais forte ou mais maduro.” (Querelle os Brest[1]). Existe um elemento de verdade nisto, mas também é verdade que ambos os parceiros podem aproveitar ao permitirem que os aspectos femininos da psiquê assumam o controle ao mesmo tempo ou se alternando. Neste ponto eu posso muito bem aproveitar para discutir o conceito mágico de “polaridade”, que em sua forma mais simplista surge como a idéia conhecida do Deus e da Deusa dentro de nós. O problema com a “polaridade” surge quando confundimos divindade com condicionamento e com o que entendemos como qualidades “masculinas” e “femininas”. Assim, nós ouvimos sempre, e sempre, e sempre, o mesmo discurso de que fogo é masculino e água é feminina; que a capacidade de transparecer emoções e de trabalhar com a intuição é feminina e que a análise intelectual é uma característica masculina. Agora, quem afirma isso? As críticas feministas de condicionamento nos mostram de manira clara que nós apenas sabemos o que masculino e feminino são porque cada um foi definido de maneira específica. Conseguir ir além destas limitações é o primeiro passo no desenvolvimento do processo. Tantas coisas que passam como “leis do ocultismo” não são nada além justificativas “espiritualizadas” do vício e do condicionamento social. Para homens gays as polaridades não precisam ser tão efêmeras, como um parceiro assumindo o papel da mulher – você pode tomar conhecimento do seu aspecto feminino e ainda assim socar o pau em outro homem. Você pode exaltar os elementos masculinos da sua psiquê e ao mesmo tempo ser penetrado pelo cacete de outro homem. Deusas e Deuses não se submetem às mesmas restrições que os humanos – afinal, qual seria o propósito se eles o fizessem? Se você impõe seus limites humanos nos Deuses, apenas está mostrando que não entendeu o objetivo da prática de invocação. Eu invoco para transcender das minhas limitações presentes – para, por um breve momento, me unir a algo maior, externo ao meu ego. Às vezes enxergo meu amante como um Deus, às vezes como uma Deusa – isso é muito esquisito para você?

Um antigo bloqueio condicionado com o qual tive de lidar foi a afirmação equivocada de que sob um ponto de vista tântrico, sexo entre homens não tinha valor. Entretanto, à medida que eu me tornava mais confortável com meus sentimentos e com o desejo crescente por sexo com homens, eu logo me livrei desta opinião. Por experiência própria eu posso dizer que tive com homens experiências tântricas tão intensas quanto as que tive anteriormente com mulheres. Sensações como a “Onda de Felicidade”; ver meu amante banhado em luz dourada; o orgasmo de todo o corpo e elevada sensibilidade à atividade kundalini são tão possíveis em um relacionamento homosexual quanto num heterosexual. Sexo anal é uma forma muito eficaz de estimular o chakra muladhara, mesmo que alguns manuais de magia sexual digam o contrário. Pessoalmente eu diria que as experiências sexuais que tive com outros homens que deram origem às experiências descritas pela Magia Tântrica foram muito mais intensas graças ao elemento óbvio da catarse – estar apto a realizar desejos há muito reprimidos é geralmente uma poderosa fonte de energia que, é claro, pode ser direcionada magicamente.

Trabalhos modernos (pós-Crowley) de magia sexual parecem tratar a homosexualidade de uma forma ou de outra: há a advertência de que isto é errado – fecha seus chakras, “inverte” a kundalini ou “cria um vórtice astral negro” – ou a opinião mais positiva de que o gênero dos parceiros não importa, e que a “energia” é a mesma. Obviamente eu prefiro a última postura, embora eu sinta que as coisas não sejam tão simples assim. Os escritores que partem para esta última opinião tendem a enfatizar que magia sexual só funciona corretamente num relacionamento sério, o que é verdade até um certo ponto, mas claramentre rejeitam todas as facetas da cultura gay que a sociedade heterosexual julga tão perturbadoras – sexo anônimo (dark rooms…), sadomasoquismo, e sexo grupal principalmente. Ao menos no Reino Unido parece haver algumas pessoas ou grupos que estão tentando escrever de maneira inteligente (ou, o que é mais importante, usando seus sentimentos) sobre as possibilidades positivas do Tantra gay, e o único grupo que fornece apoio e abordagens mágicas especificamente desenvolvidas para homens gays é a rede internacional VouDou (international Voudou Network). Talvez, com o amadurecimento das crenças sobre espiritualidade dentro da sempre crescente comunidade gay, isso irá mudar.

Para terminar então, eu ouso declarar que ser fodido é, para mim, uma experiência intensamente sagrada; que a espiritualidade está na celebração do prazer e não na negação do corpo. Entregar meu pau a outro homem também é prazeroso, é claro, mas de uma forma diferente, e minhas reflexões sobre isso terão de aguardar uma próxima oportunidade.

*Este ensaio foi originalmente publicado na Chaos International #11

1- Querelle of Brest (em francês, Querelle de Brest) é uma novela escrita por Jean Genet em 1947 e publicada em 1953.

Traduzido por: Fenix Konstant, Lilith Ashtart Paulo Shina

Deixe um comentário

Traducir »