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O Ponto Para Além do Infinito (Despertar dos Mágicos)

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Excerto de o Despertar dos Mágicos de Louis Pauwels e Jacques Bergier

Nos capítulos anteriores pretendi dar uma ideia dos possíveis estudos sobre a realidade de outro estado de consciência. Nesse outro estado, se existe, todo o homem possesso do demónio do conhecimento encontrará talvez uma resposta à pergunta seguinte, que ele acaba sempre por pôr a si próprio:

“Não haverá um sítio a descobrir, em mim próprio, desde o qual tudo o que me acontece seria imediatamente explicável, um sítio de onde tudo o que vejo, sei ou sinto seria imediatamente decifrado, quer se tratasse do movimento dos astros, da disposição das pétalas de uma flor, dos movimentos da civilização de que faço parte, ou dos mais secretos movimentos do meu coração? Será que essa imensa e louca ambição de compreender, que eu passeio, como que a despeito de mim próprio, através de todas as aventuras da minha vida, não poderia ser, um dia, inteiramente e de uma só vez satisfeita? Será que não existe no homem, em mim próprio, um caminho que conduza ao conhecimento de todas as leis do mundo? Será que não repousa no fundo de mim a chave do conhecimento total?”

André Breton, no segundo manifesto do Surrealismo, julgava poder definitivamente responder a esta pergunta: “Tudo leva a crer que existe um certo ponto do espírito de onde a vida e a morte, o real e o imaginário, o passado e o futuro, o comunicável e o incomunicável, o alto e o baixo cessam de ser vislumbrados contraditoriamente”.

É evidente que não pretendo, por minha vez, dar resposta definitiva. Aos métodos e ao aparelho do surrealismo quisemos substituir os métodos mais humildes e o aparelho mais pesado daquilo a que nós chamamos, eu e Bergier, o “realismo fantástico”. Vou portanto fazer apelo, para estudar este assunto, a vários planos do conhecimento. À tradição esotérica. Às matemáticas de vanguarda. E à literatura moderna insólita. Elaborar um estudo sobre planos diferentes (aqui, o plano do espírito mágico, o plano da inteligência pura e o plano da intuição poética), estabelecer comunicações entre eles, verificar por comparação as verdades contidas em cada fase e fazer finalmente surgir uma hipótese na qual se achem integradas essas verdades, tal é exactamente o nosso método. O nosso volumoso livro hirsuto não é senão um começo de defesa e ilustração desse método.

*

A frase de André Breton: “Tudo leva a crer…” data de 1930. Teve um êxito extraordinário. Não deixou ainda de ser citada, comentada. É que, de facto, uma das características da actividade do espírito contemporâneo é o interesse crescente pelo que se poderia chamar: o ponto de vista para além do infinito.

Este conceito está vivo nas tradições mais antigas, assim como nas matemáticas mais modernas. Ele preenchia o pensamento poético de Valéry, e um dos maiores escritores vivos, o argentino Jorge Luís Borges, consagrou-lhe a sua mais bela e surpreendente novela, dando a esta o título significativo: O Aleph[1]. Este nome é o da primeira letra do alfabeto da língua sagrada[2]. Na Cabala, ela designa o En-Sof, o sítio do conhecimento total, o ponto de onde o espírito distingue de um só golpe a totalidade dos fenómenos, das suas causas e dos seus sentidos. Numerosos textos dizem que essa letra tem a forma de um homem que mostra o céu e a Terra, para indicar que o mundo de baixo é o espelho e o mapa do mundo de cima. O ponto para além do infinito é esse ponto supremo do segundo manifesto do surrealismo, o ponto Ómega do P.e Teilhard de Chardin e a finalidade da Grande Obra dos Alquimistas.

Como definir claramente esse conceito? Tentemos. Existe no Universo um ponto, um sítio privilegiado, de onde todo o Universo se desvenda. Nós observamos a criação com instrumentos, telescópios, microscópios, etc. Mas, ali, bastaria ao observador encontrar-se nesse sítio privilegiado: num ápice, o conjunto dos factos aparecer-lhe-ia, o espaço e o tempo se revelariam na totalidade e a última significação dos seus aspectos.

Para fazer compreender aos alunos do primeiro ano o que poderia ser o conceito de eternidade, o padre jesuíta de um célebre colégio servia-se da seguinte imagem: “Imaginai que a Terra seja de bronze e que uma andorinha, de mil em mil anos, a roce com a sua asa. Quando desta forma a Terra tiver desaparecido, só então começará a eternidade…” Mas a eternidade não é apenas a infinita lentidão do tempo. É outra coisa que a duração. É preciso desconfiarmos das imagens. Servem para transportar a um nível de consciência mais baixo a ideia que não poderia respirar senão noutra altitude e entregam um cadáver no rés-do-chão. As únicas imagens capazes de transportar uma ideia superior são aquelas que criam um estado de surpresa na consciência, de expatriação, próprias para elevar essa consciência até ao nível onde vive a ideia em questão, onde é possível captá-la na sua frescura na sua força. Os ritos mágicos e a verdadeira poesia não têm outra finalidade. Eis porque não procuraremos dar uma “imagem” desse conceito do ponto para além do infinito. Será mais eficaz que dirijamos o leitor para o texto mágico e poético de Borges.

Borges, na sua novela, utilizou os trabalhos dos Cabalistas; dos Alquimistas e as lendas muçulmanas. Outras lendas, igualmente antigas como a humanidade, evocam esse Ponto Supremo, esse Sítio Privilegiado. Mas a época em que vivemos tem de particular isto: o esforço da inteligência pura, aplicada à investigação afastada de toda a mística e de toda a metafísica, foi dar a concepções matemáticas que nos permitem racionalizar e compreender a ideia de transfinito.

Os mais importantes, e os mais singulares trabalhos, são devidos ao genial Georg Cantor, que viria a morrer louco. Esses trabalhos são ainda discutidos pelos matemáticos, entre os quais alguns pretendem que as ideias de Cantor são logicamente indefensáveis. Ao que os partidários do Transfinito replicam: “Do Paraíso aberto por Cantor ninguém nos expulsará!”

Eis como se pode resumir, grosseiramente, o pensamento de Cantor. Imaginemos dois pontos sobre esta folha de papel: A e B, distantes de 1 cm. Tracemos o segmento da direita que une A a B. Quantos pontos há sobre esse segmento? Cantor demonstra que há mais do que um número infinito. Para preencher completamente o segmento é necessário um número de pontos maior que o infinito: o número aleph.

Esse número aleph é igual a todas as suas partes. Se se dividir o segmento em dez partes iguais, haverá tantos pontos numa das partes como em todo o segmento. Se construiremos, a partir do segmento, um quadrado, haverá tantos pontos sobre o segmento como na superfície do quadrado. Se se construir um cubo, haverá tantos pontos no segmento como em todo o volume do cubo. Se construiremos, a partir do cubo, um sólido de quatro dimensões um tessaract, haverá tantos pontos no segmento como no volume de quatro dimensões do tessaract. E continua assim até ao infinito.

Nesta matemática do transfinito, que estuda os aleph, a parte é igual ao todo. É perfeitamente demencial, se nos colocarmos no ponto de vista da razão clássica, e no entanto é demonstrável. Também é demonstrável o facto de que, se se multiplicar um aleph por qualquer número, chega-se sempre ao aleph. E eis as altas matemáticas contemporâneas a juntarem-se à “Tábua de Esmeralda” de Hermes Trismegista (“o que está em cima é igual ao que está em baixo”) e à intuição dos poetas como William Blake (todo o Universo contido num grão de areia).

Só existe um único processo de passar para além do aleph, é elevá-lo a uma potência aleph (sabe-se que A potência B significa A multiplicado por A, B vezes e, da mesma forma, aleph à potência aleph é outro aleph).

Se se chamar ao primeiro aleph zero, o segundo é aleph um, o terceiro aleph dois, etc. Aleph zero, já o dissemos, é o número de pontos contido num segmento de direita ou num volume. Demonstra-se que o aleph um é o número de todas as curvas racionais possíveis contidas no espaço. Quanto ao aleph dois, ele corresponde a um número que seria maior do que tudo o que se pode conceber no Universo. Não existem no Universo objectos em número suficientemente grande para que ao contá-los se chegue a um aleph dois. E os aleph estendem-se até ao infinito. O espírito humano consegue portanto ultrapassar o Universo construir conceitos que o Universo jamais poderá preencher. É um atributo tradicional de Deus, mas jamais se imaginara que o espírito pudesse apoderar-se desse atributo. Foi provavelmente a contemplação dos aleph para além de dois que tornou Cantor louco.

Os matemáticos modernos, mais resistentes ou menos sensíveis ao delírio metafísico, manipulam conceitos dessa ordem, e deles chegam a deduzir certas aplicações. Algumas dessas aplicações são de natureza a desconcertar o bom-senso. Por exemplo, o famoso paradoxo de Banach e Tarski[3].

Segundo esse paradoxo, é possível tomar uma esfera de dimensões normais, as de uma maçã ou de uma bola de ténis, por exemplo, cortá-la em fatias e reunir em seguida essas fatias de forma a ter uma esfera mais pequena que um átomo ou maior que o sol.

Não se pode executar fisicamente a operação, porque o corte deve fazer-se segundo superfícies especiais que não têm plano tangente e que a técnica não pode realizar efectivamente. Mas a maior parte dos especialistas acham que esta inconcebível operação e teoricamente admissível, pois embora as superfícies pertençam ao universo manejável, os cálculos relativos a elas revelam justos e eficazes no universo da física nuclear. Os neutrões deslocam-se nas pilhas descrevendo curvas que não têm tangente.

Os trabalhos de Banach e Tarski chegam a conclusões que se aproximam, de forma alucinante, dos poderes que se atribuem os iniciados hindus da técnica Samadhi: eles declaram que lhes é possível dilatar-se até à dimensão da Via Láctea ou contrair-se até a dimensão da mais pequena partícula possível. Mais perto de nós, Shakespeare faz Hamlet gritar:

“Ó Deus, eu desejaria estar contido todo numa casca de avelã e no entanto brilhar sobre os espaços infinitos!”

É impossível, segundo nos parece, não ficar impressionado pela semelhança entre esses longínquos ecos do pensamento mágico e a lógica matemática moderna. Um antropólogo participante de um colóquio de parapsicologia em Royaumont, em 1956, declarava: “Os sidis yogicos são extraordinários, pois entre eles figura a faculdade de se tornar tão pequeno como um átomo, ou tão grande como um sol ou um universo! Entre essas pretensões extraordinárias encontramos factos positivos, que temos a presunção de supor autênticos, e factos como estes, que nos parecem incríveis e para além de qualquer lógica.” Mas é preciso acreditar que esse antropólogo ignorava simultaneamente o grito de Hamlet e as formas inesperadas que acabam de enriquecer a lógica mais pura e mais moderna: a lógica matemática.

Qual a significação profunda dessas correspondências? Como sempre neste livro, limitamo-nos a formular hipóteses. A mais romanesca e excitante, mas a menos “integrante”, seria admitir que as técnicas Samadhi são reais, que o iniciado consegue efectivamente tornar-se tão pequeno como um átomo e tão grande como um sol, e que essas técnicas derivam de conhecimentos provenientes de antigas civilizações que dominavam perfeitamente as matemáticas do transfinito. Para nós, trata-se de uma das aspirações fundamentais do espírito humano, que encontra a sua expressão tanto no yoga samadhi como nas matemáticas de vanguarda de Banach e Tarski.

Se os matemáticos revolucionários têm razão, se os paradoxos do transfinito têm bases, abrem-se extraordinárias perspectivas diante do espírito humano. Pode conceber-se que existam no espaço pontos aleph como o descrito na novela de Borges. Nesses pontos, todo o contínuo espaço-tempo se acha representado e o espectáculo estende-se do interior do núcleo atómico a galáxia mais longínqua.

Pode-se ir mais longe ainda: pode-se imaginar que após manipulações que implicariam ao mesmo tempo a matéria, a energia e o espírito, qualquer ponto do espaço possa tornar-se um ponto transfinito. Se tal hipótese corresponde a uma realidade físico-psico-matemática, temos a explicação da Grande Obra dos Alquimistas e do êxtase supremo de certas religiões. A ideia de um ponto transfinito de onde todo o Universo seria perceptível é prodigiosamente abstracta. Mas as equações fundamentais da relatividade não o são menos, de onde derivam no entanto o cinema falado, a televisão e a bomba atómica. Aliás o espírito humano faz constantes progressos em direcção a níveis de abstracção cada vez mais elevados. Paul Langevin já fazia notar que o electricista de bairro maneja perfeitamente a noção tão abstracta e delicada de potencial e até criou para ela um termo de calão.

Pode-se ainda imaginar que, num futuro mais ou menos longínquo, tendo o espírito humano dominado essas matemáticas do transfinito, poderá, auxiliado por determinados instrumentos, construir no espaço “aleph” pontos transfinitos de onde o infinitamente pequeno e o infinitamente grande lhe aparecerão na sua totalidade e máxima verdade. Desta forma, a tradicional busca do absoluto teria enfim alcançado o seu objectivo. É tentador pensar que a experiência já resultou parcialmente. Nós evocámos, na primeira parte desta obra, a manipulação alquimica durante a qual o adepto oxida a superfície de um banho fundido de metais. Quando a película de óxido se quebra, a tradição afirma que aparece sobre um fundo opaco a imagem da nossa galáxia com os seus dois satélites, as nuvens de Magalhães. Lenda ou realidade? Tratar-se-ia, em todo o caso, da evocação de primeiro “instrumento transfinito” capaz de tomar contacto e o Universo por outros processos além dos fornecidos pelos instrumentos conhecidos. Talvez seja com uma aparelhagem dessa espécie que os Maias, que ignoravam o telescópio, descobriram Urano e Neptuno. Mas não nos deixemos despistar pelo imaginário. Contentemo-nos em notar essa aspiração fundamental do espírito, desprezada pela psicologia clássica, e notar também, a esse respeito, as relações entre antigas tradições e uma das grandes correntes matemáticas modernas.

*

Eis a seguir o excerto da novela de Borges: L’Aleph.

Rua Garay, a criada pediu-me o favor de esperar. O senhor estava, como de costume, na cave, a revelar fotografias. Perto da jarra sem flores, sobre o piano, inútil, sorria (mais intemporal que anacrónico) o grande retrato de Beatriz, de colorido desajeitado. Como ninguém me podia ver, num movimento de ternura desesperada, aproximei-me do retrato e disse-lhe:

“Beatriz, Beatriz Elena, Beatriz Elena Viterbo, querida Beatriz, perdida para sempre, sou eu, eu, Borges.”

Carlos entrou pouco depois. Falou asperamente: percebi que era incapaz de pensar noutra coisa sem ser a perda do Aleph.

– Um copito de pseudoconhaque – ordenou – e descerás à cave. Sabes que o decúbito dorsal é indispensável. A obscuridade, a imobilidade, uma certa adaptação visual são-no igualmente. Deitas-te no chão, sobre o ladrilho, e fixas o olhar sobre o décimo-nono degrau da escada indicada. Eu saio, fecho o alçapão e ficas sozinho. Se algum rato te incomodar, mata-o, não te importes. Após alguns minutos vês o Aleph. O microcosmo dos alquimistas e dos cabalistas, o nosso concreto e proverbial amigo, o multum in parvo!

Ao chegar à sala de jantar, acrescentou:

– É evidente que se o não vês, a tua incapacidade não invalida o meu testemunho… Desce; muito em breve poderás empreender um diálogo com todas as imagens de Beatriz.

Desci rapidamente, fatigado daquelas palavras ocas. A cave, pouco mais larga do que a escada, assemelhava-se muito a um poço. Com o olhar procurei em vão a mala de que Carlos Argentino me falara. Alguns caixotes com garrafas e alguns sacos de tela grosseira amontoavam-se a um dos cantos. Carlos pegou num saco, dobrou-o e colocou-o num determinado lugar.

– O travesseiro é modesto – explicou -, mas se o alteio um só milímetro não verás nem uma migalha e sentir-te-ás confuso e envergonhado. Estende a tua carcaça no chão e conta dezanove degraus.

Acedi às suas ridículas exigências; por fim, foi-se embora. Fechou cuidadosamente o alçapão; a obscuridade, apesar de uma fenda na parede que pouco depois distingui, pareceu-me total a princípio. De súbito, compreendi o perigo; deixara-me sepultar por um louco, depois de beber veneno. As fanfarronadas de Carlos deixavam transparecer o terror dissimulado de que o prodígio não se realizasse: Carlos, a fim de defender o seu delírio, a fim de não saber que era louco, devia matar-me. Senti um mal-estar confuso que tentei atribuir à rigidez e não ao efeito de um narcótico. Fechei os olhos, depois abri-os.

Vi então o Aleph.

Chego agora ao centro inexprimível da minha história; principia aqui o meu desespero de escritor. Toda a linguagem é um alfabeto de símbolos, cujo uso pressupõe um passado dividido pelos interlocutores; como transmitir aos outros o Aleph infinito que a minha memória receosa mal contém? Os místicos, em semelhante caso, esbanjam os símbolos: para significar a divindade, um Persa fala de um pássaro que de certa maneira, é todos os pássaros; Alanus de Insulis, de uma esfera cujo centro está em toda a parte e a circunferência em parte alguma; Ezequiel, de um anjo com quatro rostos, virado simultaneamente para oriente e ocidente, norte e sul. (Não é sem motivo que recordo estas analogias inconcebíveis; têm uma certa relação com o Aleph.) Talvez os deuses não me recusassem a descoberta de uma imagem semelhante, mas esta narrativa ficaria então misturada com literatura, falseada. De resto, o problema central e insolúvel: não se poderia enumerar, mesmo parcialmente, um conjunto infinito. Nesse instante gigantesco vi milhões de acções deleitosas ou atrozes, nenhuma me espantou tanto como o facto de que todas ocupavam o mesmo ponto, sem sobreposição e sem transparência. Aquilo que os meus olhos viram foi simultâneo: o que descreverei, sucessivo, porque a linguagem o é. Quero no entanto relatar algumas coisas de tantas que vi.

Por baixo do degrau, para a direita, vi uma pequena esfera com um brilho quase intolerável. A princípio supus que girava sobre si própria; depois compreendi que esse movimento era uma ilusão produzida pelos espectáculos vertiginosos que ela continha. O diâmetro do Aleph devia ser de dois ou três centímetros, mas o espaço cósmico estava dentro, sem redução. Cada coisa (o vidro do espelho, por exemplo) era uma infinidade de coisas, pois eu via-a nitidamente de todos os pontos do Universo. Vi o mar populoso, vi a madrugada e a noite, vi as multidões da América, vi uma teia de aranha prateada no centro de uma pirâmide negra, vi um labirinto quebrado (era Londres), vi olhos intermináveis fixos em mim, imediatos, como num espelho, vi todos os espelhos do planeta e nenhum reflectia a minha imagem, vi num pátio traseiro da Rua Soler o mesmo ladrilho que vi há trinta anos numa casa de Fray Bentos, vi cachos, neve, tabaco, minas de metal, vapor de água, vi desertos convexos sob o Equador, e cada um dos seus grãos de areia, vi em Inverness uma mulher que não esquecerei, vi a cabeleira violenta, o corpo altivo, vi um cancro no seio, vi um círculo de terra seca sobre um passeio, no lugar onde estivera uma árvore, vi numa casa de campo de Adrogué um exemplar da primeira tradução inglesa de Plínio, a de Philémon Holland, vi ao mesmo tempo cada letra de cada página (em criança, assombrava-me sempre o facto de as letras de um livro fechado não se misturarem, até se perderem, durante a noite), vi a noite e o dia contemporâneo da noite, vi um pôr do Sol em Queretaro que parecia reflectir a cor de uma rosa de Bengala, vi o meu quarto de dormir sem ninguém, vi num gabinete de Alkmaar um globo terrestre entre dois espelhos que o multiplicavam sem fim, vi cavalos com crina esvoaçante sobre uma praia do mar Cáspio, de madrugada, vi a delicada ossatura de uma mão, vi os sobreviventes de uma batalha a enviarem postais, vi numa montra de Mirzapur um baralho de cartas espanholas, vi sombras oblíquas de fetos no solo de uma serra, vi tigres, pistões, bisontes, vi vagas e exércitos, vi todas as formigas da Terra, vi um astrolábio persa, vi numa gaveta de escritório (e a letra fez-me estremecer) cartas obscenas, incríveis, precisas, que Beatriz dirigira a Carlos Argentino, vi um monumento adorado no cemitério da Chacarita, vi a relíquia atroz do que fora deliciosamente Beatriz Viterbo, vi a circulação do meu sangue obscuro, vi a engrenagem do amor e as alterações da morte, vi o Aleph, de todos os pontos, vi no Aleph a Terra e na Terra de novo o Aleph e no Aleph a Terra, vi o meu rosto e as minhas vísceras, vi o teu rosto, e senti vertigens, e chorei, porque os meus olhos tinham visto esse objecto secreto e conjectural, cujo nome os homens empregam indevidamente, mas que nenhum homem viu: o inconcebível Universo.

Senti uma veneração infinita, um desgosto infinito.

– Deves estar apavorado de tanto te imiscuires no que te não diz respeito – disse uma voz detestada e jovial. – Por mais que te rompas a cabeça, nem em cem anos me pagarias esta revelação. Que formidável observatório, Borges, não achas?!

Os pés de Carlos Argentino ocupavam o degrau mais alto da escada. Na brusca escuridão consegui erguer-me e balbuciar:

– Formidável. É verdade, formidável.

O tom indiferente da minha voz espantou-me. Ansioso, Carlos Argentino insistia:

– Viste tudo bem, a cores?

Nesse instante idealizei a minha vingança. Benevolente, manifestamente apiedado, nervoso, evasivo, agradeci a Carlos Argentino Daneri a hospitalidade que me dera na sua cave, e aconselhei-o a aproveitar a demolição da sua casa para se afastar da perniciosa capital que não perdoa a ninguém, acredita, a ninguém! Recusei-me, com energia suave, a discutir o Aleph; abracei-o, ao despedir-me, e repeti-lhe que o campo e a serenidade eram dois grandes médicos.

Na rua, na escadaria da Constitución, no metropolitano, todos os rostos me pareciam familiares. Receei que não houvesse mais nada no Mundo capaz de me surpreender; receei nunca mais me libertar do sentimento do já visto. Felizmente, após algumas noites de insónia, o esquecimento apoderou-se novamente de mim.

1 Publicada pela revista Les Temps Modernes em Junho de 1957 e traduzida do espanhol por Paul Bénichou. Ler-se-á um excerto no final deste capítulo.

2 E do alfabeto hebreu. Pronuncia-se aléf. (N. da T)

3 Matemáticos polacos contemporâneos. Banach foi assassinado pelos alemães em Auschwitz. Tarski ainda é vivo e traduz actualmente para francês o seu monumental tratado de lógica matemática.

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