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Alguns Documentos Sobre o “Estado de Vigília” (Despertar dos Mágicos)

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Excerto de o Despertar dos Mágicos de Louis Pauwels e Jacques Bergier

Se existe um estado de vigília, falta edificar um andar no edifício da psicologia moderna. Eis, no entanto, quatro documentos que fazem parte da nossa época. Não os escolhemos, por nos faltar o tempo para uma verdadeira escolha. Falta elaborar uma antologia dos testemunhos e estudos modernos sobre o estado de vigília. Seria muito útil. Estabeleceria comunicações com a tradição. Mostraria a permanência do essencial no nosso século. Esclareceria certos caminhos do futuro. Os literatos encontrariam ali uma chave, os investigadores de ciências humanas sentir-se-iam estimulados, os sábios veriam nisso o fio que corre através de todas as grandes aventuras do espírito, e sentir-se-iam menos isolados. Bem entendido, ao reunir estes documentos que estão ao alcance das nossas mãos, as nossas pretensões são mais modestas. Queremos apenas fornecer breves indicações sobre uma psicologia possível do estado de vigília nas suas formas elementares.

Encontrar-se-á portanto neste capítulo:

1.o – Excertos das opiniões do chefe de escola Georges Ivanovitch Gurdjieff, recolhidas pelo filósofo Ouspensky;

2.o – O meu próprio testemunho sobre as tentativas que fiz para me colocar sobre a via do estado de vigília sob a indicação dos instrutores da escola Gurdjieff;

3.o – A história narrada pelo romancista e filósofo Raymond Abellio a respeito de uma experiência pessoal;

4.o – O mais admirável texto, para nós, de toda a literatura moderna sobre esse estado. Esse texto é extraído de um romance desconhecido do poeta e filósofo alémão Gustav Meyrinck, cuja obra, não traduzida à excepção do Visage Vert e Le Golenm, atinge os cumes da intuição mística.

1 – AS OPINIÕES DE GURDJIEFF

“Para compreender a diferença entre os estados de consciência é necessário voltar ao primeiro, que é o sono. É um estado
de consciência inteiramente subjectivos. O homem mergulha nos seus sonhos – pouco importa que deles conserve ou não a recordação. Mesmo se algumas impressões reais atingem o homem adormecido, tais como sons, vozes, calor, frio, sensações do seu próprio corpo, elas só despertam nele imagens fantásticas. Depois o homem acorda. À primeira vista é um estado de consciência completamente diferente. Ele pode mover-se, falar com outras pessoas, fazer projectos, ver perigos, evitá-los, etc. Parece razoável pensar que se encontra numa situação melhor do que enquanto dorme. Mas se nós vemos as coisas um pouco mais a fundo, se lançarmos um olhar ao seu mundo interior, aos seus pensamentos, às causas das suas acções, compreendermos que está quase no mesmo estado que quando dorme. É mesmo talvez pior, porque no sono está passivo, o que quer dizer que nada pode fazer. Pelo contrário, no estado de vigília pode agir sem interrupção e os resultados das suas acções repercutir-se-ão nele e naquilo que o rodeia. E no entanto não se recorda de si próprio. É uma máquina, tudo lhe acontece. Não pode fazer parar a vaga dos seus pensamentos, não pode controlar a imaginação, as suas emoções, a sua atenção. Vive num mundo subjectivo de “eu gosto”, “não gosto”, “isto agrada-me”, “aquilo não me agrada”, “desejo”, “não desejo”, quer dizer, um mundo feito daquilo de que julga gostar ou não gostar, desejar ou não desejar. Não vê o mundo real. O mundo real está-lhe vedado pelo muro da própria imaginação. Ele vive no sono. E aquilo a que chama a sua “consciência lúcida” não é mais que sono – e um sono muito mais perigoso que o seu sono da noite, na cama.

“Consideremos qualquer acontecimento da vida da humanidade. Por exemplo, a guerra. há guerra neste momento. O que quer isto dizer? Isto significa que vários milhares de adormecidos se esforçam por destruir vários milhares de outros adormecidos. Recusar-se-iam a isso, evidentemente, se despertassem. Tudo o que actualmente se passa é devido a esse sono.

Estes dois estados de consciência, sono e estado de vigília vulgar, são tão subjectivos um como o outro. Só quando começa a recordar-se de si próprio é que o homem pode na verdade despertar. Em seu redor toda a vida adquire então um aspecto e um sentido diferentes. Vê-a como uma vida de pessoas adormecidas, uma vida de sono. Tudo o que as pessoas dizem, tudo o que fazem, dizem-no e fazem-no durante o sono. Nada disso portanto, pode ter qualquer valor. Apenas o despertar e o que leva ao despertar pode ter um real valor”.

*

“Quantas vezes já me perguntaram se não seria possível fazer parar as guerras? Evidentemente que seria possível. Bastaria que as pessoas despertassem. Isso parece bem fácil. No entanto nada seria mais difícil, porque o sono é trazido e mantido por toda a vida ambiente, por todas as condições do ambiente.

“Como despertar? Como escapar a esse sono? Estas perguntas são as mais importantes, as perguntas vitais que um homem deve pôr a si próprio. Mas, antes de as pôr, deverá convencer-se da veracidade do seu sono. E só lhe será possível convencer-se tentando despertar. Quando tiver compreendido que não se recorda de si próprio e que a lembrança de si próprio significa até certo ponto um despertar; quando tiver visto por experiência quanto é difícil recordar-se de si próprio, então ele compreenderá que para despertar não é suficiente desejá-lo. Mais rigorosamente, diremos que um homem não pode despertar por si próprio. Mas se vinte homens combinarem que o primeiro entre eles a acordar acordará os outros, já têm uma probabilidade. No entanto, isso também é insuficiente, porque esses vinte homens podem adormecer ao mesmo tempo, e sonhar que despertam. Não é portanto suficiente. É necessário mais ainda. Esses vinte homens devem ser vigiados por um homem que não esteja adormecido ou que não adormeça tão facilmente como outros, ou que vá dormir conscientemente quando seja possível quando disso não resulte qualquer mal nem para ele nem para os outros. Devem procurar um homem desses e contratá-lo para que os desperte e lhes não permita tornar a cair no sono. Sem isso é impossível despertar. É isso que importa compreender.

“É possível pensar durante um milhar de anos, é possível escrever bibliotecas inteiras, inventar teorias aos milhões e tudo isso durante o sono, sem qualquer possibilidade de despertar. Pelo contrário, essas teorias e esses livros escritos ou fabricados por adormecidos terão simplesmente como resultado arrastar outros homens para o sono e assim indefinidamente.

“Não há nada de novo na ideia do sono. Quase desde a criação do mundo, foi dito aos homens que eles estavam adormecidos, e que deveriam despertar. Quantas vezes lemos, por exemplo, nos Evangelhos: “Despertai”, “velai”, “não fiqueis a dormir!” Os discípulos do Cristo, mesmo no jardim de Getsemani, enquanto o seu Mestre rezava pela última vez, dormiam. Isto diz tudo. Mas compreendem-no os homens? Tomam o facto como uma figura de retórica, uma metáfora. Não vêem de forma nenhuma que isto deve ser tomado à letra. E também aqui é fácil compreender porquê. Ser-lhes-ia necessário despertar um pouco, ou pelo menos tentá-lo. De facto, foi-me várias vezes perguntado por que motivo os Evangelhos nunca falam do sono… Fala-se em todas as páginas. Isto apenas prova que as pessoas lêem os Evangelhos a dormir”.

*

“Em regra geral, que é necessário para despertar um homem adormecido? É necessário um bom choque. Mas quando um homem está profundamente adormecido, um único choque não é suficiente. Um longo período de choques incessantes torna-se necessário. Por consequência, é preciso alguém para administrar esses choques. Eu já disse que o homem desejoso de despertar deve procurar o auxílio que se encarregará de o sacudir durante muito tempo. Mas quem pode ele procurar, se toda a gente dorme? Ele procura alguém que o desperte, mas esse também adormece em breve. Qual será a sua utilidade? Quanto ao homem realmente capaz de se manter desperto, recusará provavelmente perder o seu tempo a despertar os outros: pode ter trabalhos a fazer muito mais interessantes.

“Há também a possibilidade de despertar por processos mecânicos. Pode usar-se um despertador. A desgraça quer que nos habituemos, depressa demais, seja a que despertador for: deixamos de o ouvir, muito simplesmente. São portanto necessários vários despertadores, com campainhas diferentes. O homem deve literalmente rodear-se de despertadores que o impeçam de dormir. E aqui surgem mais dificuldades. Os despertadores precisam de corda; para lhes dar corda é preciso lembrar-se, para nos lembrarmos é necessário acordar várias vezes. Mas eis o pior: um homem habitua-se a todos os despertadores e, após um certo tempo, ainda dorme melhor. Por consequência, os despertadores devem ser continuamente mudados, é necessário inventar constantemente novos. Com o tempo, isto pode auxiliar um homem a acordar. Ora, há muito poucas probabilidades de que ele faça todo esse trabalho de inventar, dar corda e mudar todos esses despertadores por si próprio, sem auxílio exterior. É muito mais provável que ao começar esse trabalho ele não tarde em adormecer e que, durante o sono, sonhará que inventa despertadores, que lhes dá corda, que os muda – e, como já disse, cada vez dormirá melhor.

“Portanto, para despertar é preciso uma conjugação completa de esforços. É indispensável que haja alguém para despertar o adormecido; é indispensável que haja alguém para vigiar aquele que acorda; é necessário ter despertadores, e é igualmente necessário inventar constantemente novos.

“Mas para levar a bom termo este empreendimento e obter resultados, devem trabalhar várias pessoas em conjunto.

“Um homem sozinho nada pode fazer.

“Antes de mais nada, precisa de auxílio. Mas um homem sozinho não pode contar com auxílio. Aqueles que são capazes de auxiliar avaliam o seu tempo por um preço muito alto. E naturalmente preferem ajudar, digamos, vinte ou trinta pessoas desejosas de despertar, a uma só. Para mais, como já disse, um homem pode muito bem enganar-se a respeito do seu despertar, tomar como despertar aquilo que não passa de um novo sonho. Se algumas pessoas decidem lutar em conjunto contra o sono, despertar-se-ão mutuamente. Acontecerá muitas vezes que uma vintena de entre elas dormirão, mas a vigésima primeira despertará, e acordará as outras. Dar-se-á o mesmo com os despertadores. Um homem inventará um despertador, um segundo inventará outro, após o que poderão fazer uma troca. Todos juntos podem ser de grande auxílio uns para os outros, e sem esse auxílio mútuo nenhum deles pode conseguir seja o que for.

“Portanto um homem que pretende despertar deve procurar outras pessoas que desejem igualmente acordar, a fim de trabalhar com elas. Mas isto é mais facilmente dito que feito, porque o empreendimento de tal trabalho e a sua organização exigem um conhecimento que o homem vulgar não possui. O trabalho deve ser organizado e deve haver um chefe. Sem essas duas condições, o trabalho não pode dar os resultados esperados, e todos os esforços serão vãos. As pessoas poderão torturar-se mas essas torturas não as farão despertar. Parece que para certas pessoas nada é mais difícil de compreender. Por elas próprias e por sua iniciativa podem ser capazes de grandes esforços, mas os seus primeiros sacrifícios devem ser obedecer a outro: nada no mundo as conseguirá persuadir disso.

“E não querem admitir que todos os seus sacrifícios, neste caso, de nada servem.

“O trabalho deve ser organizado. E só o pode ser por um homem que conheça os seus problemas e os seus objectivos, que conheça os seus métodos, tendo ele próprio passado, no seu tempo, por semelhante trabalho organizado.”

Estas opiniões de Gurdjieff estão insertas na obra de P. D. Ouspensky: Fragments d’un Enseignement Inconnu. Ed. Stock, Paris, 1950.

II – OS MEUS PRIMEIROS TEMPOS NA ESCOLA GURDJIEFF

“Peguem num relógio, diziam-nos, e olhem para o ponteiro grande tentando manter a consciência de vós próprios e concentrar-se neste pensamento: “Eu sou Louis Pauwels e estou aqui neste momento.” Tente pensar apenas nisto, siga os movimentos do ponteiro grande mantendo a própria consciência do seu nome, da sua existência e do local onde se encontra.”

Ao princípio, isto parecia simples e até um pouco ridículo. Evidentemente que posso manter presente no espírito a ideia de que me chamo Louis Pauwels e de que estou aqui, neste momento a ver deslocar-se muito lentamente o ponteiro grande do meu relógio. Depois apercebo-me de que esta ideia não se mantém muito tempo imóvel em mim, que começa a tomar mil formas e a correr em todos os sentidos, como os objectos que Salvador Dali pintava, transformados em lama movediça. Mas tenho ainda de reconhecer que não me pedem que mantenha viva e fixa uma ideia, mas uma percepção. Não me pedem apenas que pense que existo, mas que saiba, que tenha desse facto um conhecimento absoluto. Ora eu sinto que isso é possível e que poderia produzir-se em mim, trazendo-me qualquer coisa de novo e importante. Descubro que mil pensamentos ou sombras de pensamentos, mil sensações, imagens e associações de ideias perfeitamente estranhas ao objecto do meu esforço me assaltam sem cessar e me desviam do esforço que faço. Por vezes é o ponteiro que prende toda a minha atenção e, ao olhá-lo, perco-me de vista. Por vezes é o meu corpo, uma crispação da perna, um pequeno movimento na barriga que me faz deixar a agulha e ao mesmo tempo a minha própria pessoa. Por vezes ainda creio ter feito parar o meu pequeno cinema interior, eliminado o mundo exterior, mas apercebo-me então que acabo de mergulhar numa espécie de sono do qual o ponteiro desapareceu, do qual eu próprio desapareci e durante o qual as imagens continuam a sobrepor-se umas às outras, assim como as sensações, as ideias, como que atrás de um véu, como num sonho que se desbobina por sua conta enquanto eu durmo. Por vezes, finalmente, por uma fracção de segundo, sou eu próprio a olhar esse ponteiro, sou totalmente, completamente. Mas, na mesma fracção de segundo, felicito-me por o ter conseguido; se assim o posso dizer, o meu espírito aplaude, e imediatamente a minha inteligência, apossando-se da vitória para dela se congratular, compromete-a irremediavelmente. Finalmente despeitado mas sobretudo esgotado, fujo à experiência com precipitação, pois parece-me que acabo de viver os minutos mais difíceis da minha existência, que acabo de ser privado de ar até ao limite da resistência. Como aquilo me pareceu longo! Ora não se passaram mais de dois minutos e, em dois minutos, só tive uma verdadeira percepção de mim próprio durante três ou quatro súbitas e imperceptíveis revelações.

Eu devia portanto admitir que nós quase nunca estamos conscientes de nós próprios e que quase nunca temos consciência da dificuldade de ser consciente.

O estado de consciência, diziam-nos, é antes de mais o estado do homem que sabe enfim que não está quase nunca consciente e que, portanto, aprende pouco a pouco quais são os obstáculos que se opõem, nele próprio, aos esforços que faz.

À luz daquele pequenino exercício sabem agora que um homem pode ler uma obra, por exemplo, aprovar, aborrecer-se, protestar ou entusiasmar-se, sem ter a mínima consciência do facto, e portanto sem que nada da leitura se dirija verdadeiramente a ele próprio. A sua leitura é um sonho acrescentado aos seus próprios sonhos, um desbobinamento no perpétuo desbobinar do inconsciente. Pois a nossa verdadeira consciência pode estar e está quase sempre – completamente ausente de tudo o que fazemos, pensamos, queremos, imaginamos.

Compreendo então que há muito pouca diferença entre o estado em que estamos durante o sono e aquele em que nos encontramos no estado de vigília vulgar, quando falamos, agitamos, etc. Os nossos sonhos tornaram-se invisíveis, como as estrelas quando o dia nasce, mas continuam presentes e nós continuamos a viver sob a sua influência. Nós apenas adquirimos, após o despertar, uma atitude crítica para com as nossas próprias sensações, pensamentos mais ordenados, acções mais disciplinadas, maior vivacidade de impressão, de sentimentos, de desejos, mas continuamos na não-consciência. Não se trata do verdadeiro despertar, mas do “sono desperto”, e é nesse estado de “sono desperto” que se desenrola toda a nossa vida. Ensinavam-nos que era possível despertarmos completamente, adquirir o estado de consciência de nós próprios. Nesse estado, como o entrevi durante o exercício com o relógio, era-me possível ter, a respeito do funcionamento do meu pensamento, do desenrolar das imagens, ideias e sensações, dos sentimentos e dos desejos, um conhecimento objectivo. Nesse estado, eu podia tentar e desenvolver um esforço real para examinar, suspender de tempos a tempos e alterar esse desenrolar. E esse próprio esforço, diziam-me, criava em mim uma certa subsistência. Esse próprio esforço não chegava aqui ou ali. Bastava-lhe ser para que se criasse e acumulasse em mim a própria subsistência do meu ser. Era-me dito que poderia então, possuindo um ser fixo, alcançar a “consciência objectiva” e ter assim, não apenas de mim próprio, mas dos outros homens, das coisas e do Mundo inteiro, um conhecimento totalmente objectivo, um conhecimento absoluto.

Monsieur Gurdjieff. Ed. du Seuil, Paris, 1954

III – A NARRATIVA DE RAYMOND AHELLIO

Quando, na atitude “natural” que é a da totalidade dos seres existentes, “vejo” uma casa, a minha percepção é espontânea, é essa casa que eu percebo e não a minha própria percepção. Pelo contrário, na atitude “transcendental” é a minha própria percepção que é percebida. Mas essa percepção da percepção altera radicalmente o estado primitivo. O estado vivido, ingénuo a princípio, perde a sua espontaneidade precisamente pelo facto de a nova reflexão tornar como objecto o que a princípio era estado, e não objecto, e de, entre os elementos da minha nova percepção, figurarem não apenas os da casa como casa, como ainda os da própria percepção como fluxo vivido. E o que importa essencialmente nessa “alteração” é que a visão concomitante que eu tenho, nesse estado birreflexivo, ou antes, reflexo-reflexivo, da casa que foi o meu motivo original, longe de estar perdida, afastada ou embrulhada por essa interposição da “minha” percepção segunda perante a “sua” percepção primária, se encontra paradoxalmente intensificada, mais nítida, mais presente, mais carregada de realidade objectiva do que antes. Achamo-nos aqui perante um facto injustificável para a pura análise especulativa: o da transfiguração da coisa como facto de consciência, da sua transformação, como dizemos depois, em “sobre-coisa”, da sua passagem do estado de ciência ao estado de conhecimento. Este facto é geralmente desconhecido, embora seja o mais impressionante de toda a experimentação fenomenológica real. Todas as dificuldades com que a fenomenologia vulgar esbarra, como aliás, todas as teorias clássicas do “conhecimento”, residem no facto de elas considerarem o conjunto consciência-conhecimento (ou mais exactamente consciência-ciência) capaz de esgotar sozinho a totalidade do vivido, quando na realidade seria necessário considerar a tríade conhecimento-consciência-ciência – a única que permite um verdadeiro enraizamento ontológico da fenomenologia. E, decerto, nada pode tornar evidente essa transfiguração, excepto a experiência directa e pessoal do próprio fenomenologista. Mas ninguém pode pretender ter compreendido a verdadeira fenomenologia transcendental se não tiver praticado essa experiência com êxito e não tiver sido ele próprio “iluminado”. Mesmo que fosse o dialéctico mais subtil, o logístico mais hábil, aquele que a não viveu, e que portanto não viu outras coisas sob a aparência das coisas, só pode fazer discursos sobre a fenomenologia, mas não assumir uma actividade realmente fenomenológica. tomemos um exemplo mais preciso. Tão longe quanto as minhas recordações podem ir, sempre soube distinguir as cores, o azul, o vermelho, o amarelo. A minha vista via-as, tinha a experiência latente. Claro, a “minha vista” não fazia interrogações a respeito delas, e aliás como poderia fazer interrogações?

A sua função é ver, não a de se ver na função de ver, mas o meu próprio cérebro estava como que adormecido, não era de forma nenhuma o olho do olho, mas um simples prolongamento desse órgão. Portanto, eu dizia simplesmente, e quase sem pensar: isto é um belo vermelho, um verde um pouco apagado, um branco brilhante. Um dia, há alguns anos, ao passear pelas vinhas das encostas que dominam o lago Leman e que formam um dos mais belos locais do Mundo, tão belo mesmo e tão vasto que o “Eu”, à força de ali ser dilatado, se sente dissolvido e, bruscamente, se reapossa de si próprio e se exalta, deu-se um súbito e para mim extraordinário acontecimento. O ocre da encosta abrupta, o azul do lago, o roxo dos montes de Sabóia, e ao fundo as geleiras resplandecentes do Grand-Combin, vira-os eu cem vezes. Soube pela primeira vez que nunca os olhara. No entanto vivia há três meses. E, claro, desde o primeiro instante, aquela paisagem deslumbrara-me, mas o que em mim lhe respondia não era mais que uma exaltação confusa. Claro, o “Eu” do filósofo é mais forte que todas as paisagens. O sentimento angustiante de beleza não passa de um assenhoreamento pelo “Eu”, que se fortifica, da distância infinita que dela nos separa. Mas naquele dia, bruscamente, soube que eu próprio criava aquela paisagem, que ela nada era sem mim: “Sou eu que te vejo, e que me vejo a ver-te, e que, ao ver-me, te faço.” Este verdadeiro grito interior é o grito do demiurgo quando da “sua” criação do mundo. Não é apenas a suspensão de um “antigo” mundo, mas a projecção de um “novo”. E nesse momento, de facto, o mundo foi recriado. Nunca eu vira semelhantes cores. Eram cem vezes mais intensas, mais matizadas, mais “vivas”. Senti que acabava de adquirir o sentido das cores, que interpretava as cores, que nunca até ali vira realmente um quadro ou penetrara no universo da pintura. Mas soube igualmente que, por esse chamamento da minha consciência, por essa percepção da minha percepção, conseguira a chave desse mundo da transfiguração que não é outro mundo misterioso, mas o verdadeiro mundo, aquele de que a “natureza” nos conserva exilados. Nada de comum, evidentemente, com a atenção. A transfiguração é completa, a atenção não. A transfiguração conhece-se na sua suficiência certa, a atenção tende para uma suficiência eventual. Não se pode dizer, evidentemente, que a atenção seja vazia. Pelo contrário, é não-vazia. Mas o não-vazio não é a plenitude. Quando regressei à aldeia, nesse dia, as pessoas com que me cruzava estavam na sua maior parte “atentas” ao trabalho: no entanto todas me pareceram sonâmbulas.

Raymond Abellio: Cahiers du Cercle d’Études

Métaphysiques. (Publicação interior – 1954).

IV – O ADMIRÁVEL TEXTO DE GUSTAV MEYRINCK

A chave que nos tornará mestres da natureza interior ficou enferrujada desde o dilúvio.

Ela chama-se: velar.

Velar é tudo.

O homem está firmemente convencido de que vela; mas na realidade, é apanhado numa rede de sono e de sonho que ele próprio teceu. Quanto mais apertada é essa rede, mais poderosamente reina o sono, Aqueles que estão presos nas suas malhas são os adormecidos que caminham através da vida como rebanhos de animais levados para o matadouro, indiferentes e sem pensamentos.

Os sonhadores vêem através das malhas um mundo quadriculado, só distinguem aberturas enganadoras, agem em consequência e não sabem que esses quadros são apenas os fragmentos insensatos de um todo enorme. Esses sonhadores não são, como talvez o suponhas, os lunáticos e os poetas; são os trabalhadores, os sem repouso do Mundo, os possessos da loucura de agir. Assemelham-se a escaravelhos feios e laboriosos que se arrastam ao longo de um cano liso para nele mergulharem ao chegar lá acima. Dizem que velam, mas aquilo que julgam uma vida não é em realidade senão um sonho, determinado antecipadamente nos mínimos pormenores e subtraído à influência da sua vontade.

Existiram e ainda existem alguns homens que souberam que sonhavam, os pioneiros que avançaram até aos baluartes atrás dos quais se esconde o eu eternamente desperto – videntes como Descartes, Schopenhauer e Kant. Mas eles não possuíam as armas necessárias para a tomada da fortaleza e o seu apelo ao combate não acordou os adormecidos.

Velar é tudo.

O primeiro passo para esse objectivo é tão simples que qualquer criança o pode dar. Só aquele que tem o espírito falsificado esqueceu como se caminha, e mantém-se paralisado sobre os seus dois pés, pois não se quer privar das muletas que herdou dos seus antecessores.

Velar é tudo.

Vela em tudo o que fazes! Não te julgues já desperto. Não, tu dormes e sonhas.

Reúne todas as tuas forças e espalha um instante pelo teu corpo este sentimento: agora, eu vejo!

Se o conseguires, reconhecerás imediatamente que o estado no qual te encontravas surge então como uma modorra e um sono.

É o primeiro passo hesitante do longo, muito longo percurso que leva da servidão ao completo poder.

Desta forma avança, de despertar em despertar.

Não existe pensamento tormentoso que desta maneira não possas banir. Ele fica para trás e já não te pode atingir. Estendeste sobre ele como a copa de uma árvore se eleva por sobre os ramos secos.

As dores afastam-se de ti como folhas mortas quando essa vigília se apossa igualmente do teu corpo.

Os banhos gelados dos brâmanes, as noites de vigília dos discípulos de Buda e dos ascetas cristãos, os suplícios dos faquires não são mais que os ritos estereotipados indicando que ali se erguia outrora o templo daqueles que se esforçavam por velar.

Lê as escrituras Sagradas de todos os povos da Terra. Em cada uma delas passa como um fio vermelho a ciência dissimulada da vigília. É a escada de Jacob, que combate toda a “noite” com o anjo do Senhor, até que chegue o “dia” e obtenha a
vitória.

Deves subir, um após outro, os degraus do despertar, se queres vencer a morte.

O degrau inferior já se chama: génio.

Como devemos nós chamar os degraus superiores? Ficam desconhecidos da multidão e são tidos como lendas.

A história de Tróia foi considerada uma lenda, até que finalmente um homem arranjou coragem de investigar por si próprio.

Sobre esse caminho da vigília, o primeiro inimigo que encontrarás será o teu próprio corpo. Ele lutará contigo até ao primeiro cantar do galo. Mas se vislumbrares a luz da vigília eterna que te afasta dos sonâmbulos que supõem ser homens e ignoram que são deuses adormecidos então o sono do teu corpo desaparecerá também e o Universo submeter-se-á a ti.

Então poderás operar milagres, se quiseres, e já não estarás reduzido, como um humilde escravo, a esperar que um cruel e falso deus seja suficientemente amável para te cumular de presentes ou te cortar a cabeça.

Há evidentemente a felicidade do bom cão fiel: servir um amo. Ela deixará de existir para ti – mas sê franco para contigo próprio: gostarias tu, mesmo agora, de trocar o lugar com teu cão?

Não te deixes apavorar pelo medo de não atingires o objectivo nesta vida. Aquele que descobriu este caminho regressa sempre ao mundo com uma maturidade interior que lhe torna possível a continuação do seu trabalho. Ele nasce como “génio”.

O caminho que te mostro está semeado de acontecimentos estranhos: mortos que conheceste hão-de erguer-se e falar-te! São apenas imagens. Silhuetas luminosas aparecer-te-ão para te abençoar. São apenas imagens, formas exaltadas pelo teu corpo que, sob a influência da tua vontade transformada, morrerá de uma morte mágica e se tornará espírito, tal como o gelo, atingido pelo fogo, se dissolve em vapor.

Quando tiveres abandonado em ti o cadáver é que então poderás dizer: agora o sono afastou-se de mim para sempre.

Então dar-se-á o milagre em que os homens não acreditam – porque, enganados pelos seus sentidos, não percebem que matéria e força são a mesma coisa – nem compreendem, esse milagre que, mesmo se o enterrarem, não haverá cadáver no
caixão.

Só então poderás diferenciar o que é realidade ou aparência. Aquele que tu encontrares só poderá ser um dos que seguiram o caminho antes de ti.

Todos os outros são sombras.

Até ali tu não sabes se és a criatura mais feliz ou a mais infeliz. Mas nada receies. Nem um sequer dos que seguiram pelo caminho da vigília, mesmo se alguma vez se perdeu, jamais foi abandonado pelos seus guias.

Quero dar-te um sinal pelo qual poderás reconhecer se uma aparição é realidade ou miragem: se ela se aproxima de ti, se a tua consciência se perturba, se as coisas do mundo exterior são vagas ou desaparecem, desconfia. Acautela-te! A aparição não passa de uma parte de ti próprio. Se não a compreendes, é apenas um espectro sem consistência, um gatuno que conssome uma parte da tua vida.

Os gatunos que adquirem a força da alma são “piores do que os gatunos do Mundo. Atraem-te como fogos-fatus nos pântanos de uma esperança enganadora, para te deixarem só nas trevas e desaparecerem para sempre.

Não te deixes enganar por nenhum milagre que eles pareçam fazer por ti, por nenhum nome sagrado que se derem, por nenhuma profecia que exprimam, nem mesmo se esta se realizar; eles são os teus inimigos mortais, expulsos do inferno do teu próprio corpo e com os quais tu lutas pelo domínio.

Sabe que as forças maravilhosas que eles possuem são as tuas próprias – desviadas por eles para te manterem na escravatura. Eles não podem viver fora da tua vida, mas se os venceres ficarão aniquilados, como ferramentas mudas e dóceis que poderás empregar segundo as tuas necessidades.

Inúmeras são as vítimas que eles fizeram entre os homens. Lê a história dos visionários e dos sectários e compreenderás que o caminho que segues está semeado de crânios.

Inconscientemente a humanidade ergueu contra eles um muro: o materialismo. Esse muro é uma defesa infalível, é uma imagem do corpo mas é também o muro de uma prisão que dissimula a vista.

Actualmente estão dispersos e a fénix da vida interior ressuscita das cinzas nas quais esteve deitada durante muito tempo, como morta, mas os abutres de outro mundo também começam a bater as asas. É por isso que deves tomar cuidado. A balança sobre a qual deporás a tua consciência mostrar-te-á quanto podes ter confiança nessas aparições. Quanto mais desperta ela estiver, mais se inclinará a teu favor.

Se um guia, um irmão de outro mundo espiritual te quer aparecer, deve poder fazê-lo sem despojar a tua consciência. Podes pousar a mão sobre ele como Tomé o incrédulo.

Seria fácil evitar as aparições e seus perigos. Basta conduzires-te como um homem vulgar. Mas que ganhas com isso? Continuas a ser um prisioneiro na jaula do teu corpo até que o carrasco “Morte” te conduza ao cadafalso.

O desejo dos mortais de verem os seres sobrenaturais é um grito que desperta até os fantasmas do inferno, porque semelhante desejo não é puro; – porque é mais avidez do que desejo, porque quer “tomar” de qualquer maneira em vez de gritar para aprender a “dar”.

Todos aqueles que consideram a Terra como uma prisão, todas as pessoas piedosas que imploram a libertação evocam sem se aperceberem o mundo dos espectros. Fá-lo igualmente tu próprio. Mas conscientemente.

Para aqueles que o fazem inconscientemente existirá uma mão invisível que os possa retirar do pântano onde se atolam? Eu não o acredito.

Quando sobre o caminho do despertar atravessarás o reino dos espectros, reconhecerás pouco a pouco que eles são simplesmente pensamentos que de súbito poderás ver com os teus próprios olhos. Eis porque te são estranhos e parecem ser criaturas, pois a linguagem das formas é diferente da do cérebro.

Então chegou o momento em que a transformação se dá: os homens que te rodeiam transformar-se-ão em espectros. Todos aqueles que amaste serão, de súbito, larvas. Mesmo o teu próprio corpo.

Não se pode imaginar mais terrível solidão que a do peregrino no deserto, e quem não sabe encontrar aí a fonte da vida ? morre de sede!

Tudo o que aqui te digo se encontra nos livros dos homens piedosos de todos os povos: a vinda de um novo reino, a vigília, a vitória sobre o corpo e a solidão.

E no entanto um abismo intransponível nos separa dessas pessoas piedosas: elas supõem que se aproxima o dia em que os bons entrarão no paraíso e os maus serão atirados para o inferno. Nós sabemos que um tempo virá em que muitos despertarão e serão separados dos adormecidos que não podem compreender o que significa a palavra vigília. Nós sabemos que não existe o bom e o mau, mas apenas o exacto e o falso. Eles crêem que velar significa manter os seus sentidos lúcidos e os olhos abertos durante a noite, de forma que o homem possa fazer as suas orações. Nós sabemos que a vigília é o despertar do eu imortal e que a insónia do corpo é uma consequência natural. Eles crêem que o corpo deve ser descurado e desprezado porque é pecador. Nós sabemos que não existe pecado; o corpo é o começo da nossa obra e vimos à Terra para transformar em espírito. Eles crêem que deveríamos viver na solidão com o nosso corpo para purificar o espírito. Nós sabemos que o nosso espírito deve primeiramente isolar-se para transfigurar o corpo.

Só a ti te cabe a escolha do caminho a tomar: ou o nosso ou o deles. Deves agir segundo a tua própria vontade. Não tenho o direito de te aconselhar. É mais salutar colher segundo a tua própria decisão um fruto amargo sobre uma árvore, do que ver pendurar um fruto doce aconselhado por outrem.

Mas não faças como muitos que sabem que está escrito: examinai tudo e só conservai o melhor. É preciso ir, nada examinar e agarrar a primeira coisa que aparecer.

Gustav Meyrinck: Excerto do romance

Le Visage Vert, traduzido pelo doutor Etthofen e M”c Perrenoud. Ed. Emile-Paul Frères, Paris, 1932.

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