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PSICO

A barriga da baleia

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Joseph Campbell

excerto de ‘O Herói de Mil Faces’.

A idéia de que a passagem do portal mágico é uma transição para uma esfera de renascimento está simbolizada na universal imagem uterina da “barriga da baleia”. O herói, em vez de conquistar ou conciliar o poder do portal mágico, é engolido pelo desconhecido e, aparentemente, morre.

Mishe-Nahma, o Rei dos Peixes, projetou-se, em sua ira, à tona dágua, escamas rebrilhando à luz do sol, escancarou a enorme mandíbula e engoliu canoa e Hiawatha.1

Os esquimós do Estreito de Behring contam a lenda do ardiloso herói Raven [o Corvo]: um dia, ao secar suas roupas na praia, ele viu uma baleia nadando calmamente perto da rebentação. Gritou: “Da próxima vez que subir para respirar, minha querida, abra a boca e feche os olhos.” Esgueirou-se rápido para dentro de suas roupas negras, colocou sua máscara negra, apanhou algumas achas de lenha sob o braço e voou por sobre as águas. A baleia veio à tona e, como ele havia sugerido, abriu a boca e fechou os olhos. Raven precipitou-se pela mandíbula escancarada e foi-se garganta adentro. A baleia, espantada, fechou depressa a boca e mergulhou. Raven ficou dentro dela e olhou em volta.2

Os zulus têm uma lenda sobre duas crianças e sua mãe, que foram engolidas por um elefante. Quando a mãe chegou ao estômago do elefante, “viu grandes florestas, largos rios, planaltos. De um lado, havia muitos rochedos. E muitas pessoas, que ali construíram sua aldeia. E muitos cães, e muitas cabeças de gado. Tudo isso havia dentro do elefante”.3

Finn MacCool, herói irlandês, foi engolido por um monstro de forma indefinida — conhecido, no mundo celta, como peist, Chapeuzinho Vermelho, a garotinha do conto de fadas alemão, foi engolida pelo lobo. O amado herói polinésio, Mauí, foi engolido por sua tataravó, Hine-nui-te-po. E o panteão dos deuses gregos, com a única exceção de Zeus, foi engolido pelo pai, Cronos.

Hércules, o herói grego, ao passar por Tróia na sua jornada de volta à pátria com o cinturão da rainha das Amazonas, foi informado de que a cidade estava sendo assolada pelo monstro que Posêidon, deus do mar, enviara contra ela. A besta vinha à terra e devorava os passantes na planície. O rei acabara de amarrar sua bela filha Hesíone nos rochedos junto ao mar, como um sacrifício propiciatório. O grande herói aceitou um preço para salvá-la. Quando o monstro emergiu a superfície das águas e escancarou sua enorme boca, Hércules mergulhou dentro de sua garganta, abriu caminho a golpes de espada pela sua barriga e o matou.

A popularidade desse tema enfatiza o ensinamento de que a passagem do portal mágico é uma forma de auto-Aniquilação. Fica evidente sua semelhança com a aventura dos Argonautas nos rochedos móveis das Simplegadas. Mas aqui, em vez de sair para o exterior e ultrapassar os confins do mundo visível, o herói vai para o interior de algo a fim de renascer. Seu desaparecimento corresponde à entrada do devoto no templo — onde será estimulado pela lembrança de quem e do que é (ou seja, pó e cinzas), a menos que seja imortal. O interior do templo — a barriga da baleia — e a região celeste além, acima e abaixo dos confins do mundo, são uma única coisa. E por isso que os acessos e entradas dos templos são flanqueados e defendidos por imensas gárgulas: dragões, leões, matadores de demônios com a espada desembainhada, anões rancorosos e touros alados. Eles são os guardiões do portal e sua função é afastar os incapazes de encontrar os silêncios mais profundos do interior do templo. S]ao personificações que nos preparam para o aspecto perigoso da Presença e correspondem aos ogros mitológicos que delimitam o mundo convencional, ou às duas fileiras de dentes da baleia. Eles ilustram o fato de que o devoto, no momento em que entra no templo, passa por uma metamorfose. Seu caráter secular fica no lado de fora; o devoto o despe, assim como a cobra abandona sua pele. Uma vez no interior do templo, pode-se dizer que o devoto morreu para a dimensão temporal e retornou ao Útero do Mundo, ao Umbigo do Mundo, ao Paraíso Terrestre. O significado dos guardiões do templo não é anulado pelo fato de que é possível a qualquer pessoa,em termos físicos, passar por eles; pois, se o intruso for incapaz de “sentir” o santuário, ele, para todos os efeitos, não entrou no templo. Aqueles que são incapazes de compreender um deus, o vêem como um demônio e, assim, se protegem de sua aproximação. Em termos alegóricos, portanto, a entrada no templo e o mergulho do herói através da mandíbula da baleia são aventuras idênticas; ambas denotam, em linguagem figurada, o ato de centrar e renovar a vida.

“Criatura alguma”, escreve Ananda Coomaraswamy, “é capaz de alcançar um grau mais elevado da natureza sem cessar de existir.”4 De fato, o corpo físico do herói pode ser massacrado, desmembrado e espalhado pela terra ou pelos mares — como ocorre no mito egípcio de Osíris, o salvador. Osíris foi encerrado num sarcófago e atirado ao Nilo por seu irmão Set;5 quando retornou dentre os mortos, seu irmão mais uma vez o massacrou, cortou seu corpo em quatorze pedaços e espalhou-os sobre a terra. Os Heróis Gêmeos dos índios navajos foram obrigados a vencer, não só as avalanches de pedras, como também os juncos que lhes retalhavam a pele, os cactos que os cortavam e as areias escaldantes que os sufocavam. O herói que já abandonou o apego ao ego está em condições de viajar pelos horizontes do mundo, de entrar e sair de dragões com tanta facilidade quanto um rei atravessa os salões de seu palácio. E aí reside seu poder de salvar; pois sua passagem e seu retorno demonstram a permanência do Incriado-Imperecível em todos os opostos do mundo dos fenômenos, e que não há nada a temer. E foi assim que, em todo o mundo, aqueles homens que têm por função tornar visível na Terra o mistério da criação da vida a partir da morte do dragão, representaram o grande ato simbólico sobre seus próprios corpos e espalharam sua carne (como o corpo de Osíris) para renovar o mundo. Na Frígia, por exemplo, em honra de Átis — salvador crucificado e ressuscitado — um pinheiro era derrubado no vigésimo segundo dia de março e levado para o santuário de Cibele, a deusa-mãe. Ali, como se fosse um cadáver, era envolto em faixas de algodão e adornado com grinaldas de violetas. No meio do tronco atava-se a efígie de um rapaz. No dia seguinte tinham lugar as lamentações cerimoniais e soavam as trombetas. O vigésimo quarto dia de março era conhecido como o Dia do Sangue: o sumo sacerdote extraía sangue de seus próprios braços e o apresentava como oferenda; os sacerdotes giravam numa dança de dervixes ao som de tambores, cometas, flautas e címbalos até que, arrebatados pelo êxtase, feriam o corpo com facas para espargir com seu sangue o altar e o pinheiro; e os noviços, imitando o deus cuja morte e ressurreição celebravam, castravam-se e desfaleciam.6

Dentro desse mesmo espírito, o rei da província indica meridional de Quilacare, ao completar-se o décimo segundo ano de seu reinado, dia de solenes festividades, fazia construir um estrado de madeira recoberto por cortinados de seda. Depois do banho ritualístico numa cisterna, com grande cerimonia! e ao som de música, o rei seguia para o templo a fim de prestar adoração à divindade. Depois subia ao estrado e, diante de seu povo, tomava várias facas extremamente afiadas e decepava o próprio nariz, as orelhas, os lábios, os membros e o máximo possível de sua carne. Ele ia lançando os pedaços de seu corpo à sua volta até que, de tanto sangue perdido, sentia que estava para perder os sentidos; nesse momento, sumariamente cortava a garganta.7

Notas:

  1. W. Longfellow: The Song of Hiawatha, VIII. As aventuras atribuídas por Longfellow ao chefe iroquês Hiawatha na verdade pertencem a Manabozho, herói da cultura algonquim. Hiawatha foi um personagem histórico real do século XVI.
  2. Leo Frobenius: Daí Zeitalter des Sonnengottes {Berlim, 1904), pág.
  3. Hertry Callaway: Nurse Tales and Tradítíons ofthe Zuius (Londres, 1868), pág.
  4. Ananda K. Coomaraswamy: “Akimcanna: Self-Naughting”, em New Indian Antiquary, 3 (Bombaim, 1940), pág. 6, nota 14; citando e discutindo São Tomás de Aquino e a Summa Theologica, I, 63, 3.
  5. O sarcófago e o esquife são alternativas para a barriga da baleia. Compare-se Moisés no cestinho de junco.
  6. Sir James G. Frazer: The Golden Bough (edição em um volume); págs. 347/349. Copyright 1922 de The Macmillan Company, aqui reproduzido com sua permissão.
  7. Duarte Barbosa: A Description ofthe Coasls o/East África andMalabar in the Beginning ofthe Sixteenth Century (Londres: Hakluyt Society, 1866), pág. 172; citado por Frazer, op. cit. págs. 274-275. Reproduzido com permissão dos editores The Macmillan Company. Esse é o sacrifício que o Rei Minos se recusou a fazer quando ocultou de Posêidon o touro. Conforme foi mostrado por Frazer, o regicídio ritual era uma tradição generalizada no mundo antigo. “Na índia Meridional”, escreve ele, “o reinado e a vida do rei terminavam com a revolução do planeta Júpiter em tomo do Sol. Na Grécia, por outro lado, o destino do rei parecia ficar pendente de uma avaliação ao fim de cada ciclo de oito anos… Talvez não fosse precipitado supoimos que o tributo de sete rapazes e sete donzelas, que os atenienses eram obrigados a fazer a Minos a cada oito anos, estava relacionado com a renovação do poder do rei por mais um ciclo octonal” (ibid., pág, 280). O sacrifício do touro, exigido do Rei Minos, implicava que o próprio Minos seria sacrificado ao final de seu reinado de oito anos, de acordo com o padrão da tradição herdada. Mas parece que Minos ofereceu, como substitutos de si mesmo, os rapazes e donzelas Talvez tenha sido por essa razão que o divino Minos transformou-se no monstro Minotauro: o rei do auto-sacrifício, o tirano parasitário; e o estado hierático (o estado sacerdotal, onde cada homem desempenha seu papel) no império mercantil (onde cada homem cuida apenas de si mesmo). Tais práticas de substituição parecem ter-se generalizado por todo o mundo antigo ao final do grande período dos primeiros estados hieráticos, durante o III e o II milênios antes de Cristo.

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