Categorias
Bruxaria e Paganismo

Notas sobre o achado da estátua articulada mais antiga conhecida

Leia em 4 minutos.

Este texto foi lambido por 111 almas essa semana.

Shirlei Massapust

Em 1891 empregados de obras de engenharia escavaram até quatro metros de profundidade do solo na estrada Francouská, no cruzamento com a rua Předlácká, em Brno, na República Tcheca. Lá eles acidentalmente encontraram um túmulo (Brno II) contendo os restos mortais e pertenças dum homem adulto, falecido na faixa etária dos 50 anos, cuja ossada revelou sinais de periostite.

O sítio foi catalogado e explorado por arqueólogos. Apesar da doença causadora de dores nas juntas, o falecido conseguiu obter cerca de seiscentos fósseis de moluscos da espécie Dentalium badense, todos coletados de um em um em antigos depósitos geológicos na bacia de Brno-Viena. Então as centenas de conchas – certamente reunidas durante anos – foram perfuradas para a passagem dos fios que compunham a touca enterrada consigo, envolvendo sua cabeça.

O falecido deveria gostar de coisas belas, pois, além de ostentar um complicado adorno de cabeça, o esqueleto humano estava posicionado entre esculturas de discos de espinha dorsal de rinocerontes lanudos e esculturas de marfim de mamute em forma de discos, de baqueta e até de um boneco.

Quem era essa pessoa capaz de mobilizar uma comunidade da era do gelo na tarefa estafante de lhe trazer preciosidades? Não sabemos. Porém sua riqueza sugere o status excepcional do falecido. A melhor hipótese foi levantada por Güner Coşkunsu, uma arqueóloga com PhD em Harvard, que o descreve como um bonequeiro.

É um tanto irônico que o único objeto do Paleolítico Superior que alguém poderia assumir como sendo um brinquedo (…) não provém do túmulo de uma criança, mas sim de um homem adulto: O marionetista, talvez? Para além disso só podemos especular se objetos de arte são figuras de ação ou brinquedos.[1]

Ninguém pensou na hipótese de magia simpática onde a enfermidade do homem com problemas nas articulações seria absorvida pelo seu vulto, um boneco articulado, com efeito placebo. Ou ainda quando, na morte, o vulto idealizado serviria de substituto ao corpo imperfeito, semelhante a uma figura shabit egípcia ou a uma calunga brasileira.

O boneco ou escultura de marionete foi feito com cortes de instrumento de pedra numa peça substancial de marfim de mamute. Três das seis partes do corpo resistiram à erosão. A figura em escala 1/3 possui uma cabeça de 6,7 cm com músculos faciais bem trabalhados para os padrões da época. Pequenas linhas riscadas no queixo e por traz da cabeça representam fios de cabelo. Na parte menos danificada do tronco de 13,5 cm ainda podemos ver o mamilo direito, o umbigo proeminente, o pênis com uma pequena incisão marcando a uretra e também os testículos, todos esculpidos em relevo.

A cabeça e o tronco têm perfurações opostas que provavelmente facultavam o movimento com um bastão. O braço esquerdo, levemente dobrado no cotovelo, possui uma junta no topo para movimentar a peça. A mão se perdeu por danos no material, mas o destacamento dos membros inferiores era uma característica da base do tronco porque um furo na parte intacta da bacia sem sombra de dúvida suportava uma perna móvel. Ou seja, é seguro assumir que o boneco possuía ao menos cinco articulações.

Foto © 2013, The British Museum.

Reconstrução do ilustrador tcheco Libor Balák.[2]

Fotos do artefato apareceram na revista National Geographic, Vol 174, Nº 4, outubro de 1988. De 07/02/2013 a 26/05/2003 a Galeria 35 do British Museum recebeu a exibição Ice Age Art: arrival of the modern mind, com várias peças datadas de 40.000 a 10.000 anos, reunidas e organizadas sob a curadoria de Jill Cook. Um dos objetos selecionados foi este que é o mais antigo boneco conhecido, emprestado pelo Instituto de Antropologia do Moravské Zemské Muzeum, de Brno, ao cujo acervo ele pertence.

Paul B. Pettitt e Keble College, ambos pesquisadores da Universidade de Oxford, submeteram um fragmento da costela do bonequeiro ao teste de radiocarbono, o qual indicou a datação de 23.680 ± 200 anos RCYBP, ou uma idade provável entre 23.280 e 24.080 anos RCYBP.[3] Por isso Jill Cook estimou a idade do esqueleto e suas pertenças em 26.000 anos.[4] Pela datação dos ossos do bonequeiro o arqueólogo britânico Timothy Insoll classificou o boneco como um objeto do período Gravetiano tardio.[5] Dominique Henry-Gambier, arqueóloga pesquisadora do período Gravetiano, discordou pois aquele túmulo pode não ser suficientemente antigo.[6] Há uma fotografia em alta resolução do esqueleto e de todas as suas pertenças na Wikimedia Commons.[7]

 

[1] COŞKUNSU, Güner. The Archaeology of Childhood: Interdisciplinary Perspectives on an Archaeological Enigma. Ney York, SUNY Press, 2015, p 181.

[2] BALÁK, Libor. The Gravettian of Moravia – The Pavlovian and the Willendorf-Kostenkian. Translated and modified by Vít Lang after discussions with the author. © Antropark 2006. Hyperlink: <http://www.iabrno.cz/agalerie/pavlova.htm>.

[3] PETTITT, Paul B & TRINKAUS, Erik. Direct Radiocarbon Dating of the Brno 2 Gravettian Human Remains. Em:  Anthropologie XXXVIII/2. Brno, Anthropos institute (Moravian museum), 2000, p 149-150. URL: <http://puvodni.mzm.cz/Anthropologie/article.php?ID=1603>.

[4] COOK, Jill. Ice Age Art: The arrival of the modern mind. London, The British Museum Press, 2013, p 99-102.

[5] INSOLL, Timothy. The Oxford Handbook of Prehistoric Figurines. Oxford, Oxford University Press, 2017, p 691.

[6] HENRY-GAMBIER, Dominique. Comportement des populations d’Europe au Gravettien: pratiques funéraires et interprétations, p 399-438. Em : PALEO, Revue D’Archéologie Préhistorique. URL: <https://journals.openedition.org/paleo/1632>.

[7] SHAMAN OF BRNO, GRAVETTIAN, ANTHROPOS, BRNO. Em Wikimedia Commons. Adicionado por Zde em 23/05/2018. URL: <https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Shaman_of_Brno,_Gravettian,_Anthropos,_Brno,_187989.jpg>.

Deixe um comentário

Traducir »