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Lilith na visão judaica tradicional, midráshica e cabalística

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(O presente texto foi extraído da The Encyclopedia of Jewish Myth, Magic & Mysticism, do Rabbi Geoffrey Dennis).

A palavra Lilith tem origem na palavra hebraica “Lilit”, que significa “Demônio Noturno”.

Lilith  é considerada na tradição judaica como a mais proeminente das quatro rainhas dos demônios, no entanto, a natureza de Lilith passou por muitas reinterpretações ao longo da história judaica.

As origens de Lilith provavelmente são encontradas no lilu mesopotâmico, ou “espírito aéreo”. Algumas características de Lilith na tradição judaica também se assemelham às de Lamashtu, um demônio babilônico que causa a morte infantil.

Há uma menção de lilot (plural da palavra hebraica lilit) na Bíblia, que está presente em Isaías 34:14), mas referências aos demônios Lilith só se tornam comuns em fontes judaicas pós-bíblicas. Além disso, a caracterização de Lilith como uma personalidade demoníaca nomeada realmente só começa no final da antiguidade.

Os Manuscritos do Mar Morto (Canção do Sábio 4Q510-11), falam de lilot como uma classe de seres demoníacos:

“E eu, o Sábio, declaro a grandeza de Seu esplendor para assustar e aterrorizar todos os espíritos e anjos destruidores e os espíritos bastardos, demônios, liliths, corujas e [chacais] e aqueles que atacam inesperadamente …” 1

Essa suposição de múltiplos lilots é replicada em amuletos e fórmulas mágicas até o período medieval. Mesmo o sexo da criatura não é fixo. Em tigelas de encantamento, por exemplo, constam orações de proteção explicitamente contra “lilot, seja homem ou mulher…”

Com o tempo, o que eventualmente emerge dessas tradições bíblicas e mágico-médicas são três interpretações sobrepostas de Lilith:

1) a etiológica Lilith, um espírito que explica certas mas intrigantes processos físicos humanos — Morte no parto, morte súbita infantil e emissões masculinas noturnas;

2) a midráshica Lilith, criatura nascida da interpretação medieval de passagens bíblicas problemáticas; e

3) a Lilith cósmica, entidade descrita em textos esotéricos que personifica a existência do mal na ordem divina.

A tradição judaica gradualmente se fixa em Lilith como um demônio feminino.

No Talmud e Midrash, ela é descrita como um demônio com rosto de mulher, cabelos longos e asas (Nid. 24b; Eruv. 100b). Ela é uma súcubo, seduzindo os homens durante o sono e depois coletando suas emissões noturnas para gerar descendentes demoníacos (Shab. 151b; Gen. R. 18:14).

Comentários posteriores sobre o Talmud explicam que Lilith faz isso porque seu consorte, Samael, foi castrado por Deus. Ela tem muitos filhos demoníacos, sendo o mais famoso Ormuzd (BB 73b).

Nos encantamentos de amuletos contemporâneos ao Talmud, ela é abordada como um demônio que ataca as mulheres no parto e como o espírito do infanticídio, o assassino de crianças, tema que se torna mais proeminente nas fontes medievais (Zohar I: 148a–b; Zohar II: 267b).

O uso de “Lilith” como o nome próprio de uma personalidade demoníaca específica primeiro se solidifica no Midrash.

A lenda mais famosa de Lilith é a que aparece pela primeira vez no texto satírico medieval Alef-Bet (Alfabeto) de Ben Sira. Nesse documento, Lilith é identificada como a primeira mulher que Deus criou junto com Adão.

O caso de haver duas mulheres no Jardim do Éden é baseado nos dois relatos díspares da criação da mulher que aparecem em Gênesis (Gn 1:27 versus Gn 2:18-23), segue o relato do Alfabeto de Ben Sira:

“Ele criou uma mulher para Adão, da terra, como Ele mesmo havia criado Adão, e a chamou de Lilith. Adão e Lilith começaram a brigar.

Lilith disse:

“Não vou deitar embaixo”,

e Adão disse:

“Não vou ficar embaixo de você, mas apenas em cima. Pois você está apta apenas para estar na posição inferior, enquanto eu estou na posição superior.”

Lilith respondeu:

“Somos iguais um ao outro, pois ambos fomos criados da terra”.

Mas eles não ouviriam um ao outro.

Quando Lilith viu isso, ela pronunciou o Nome Inefável e voou para o ar.

Adão ficou em pé em oração diante de seu Criador:

“Soberano do universo!”

Adão disse: “A mulher que você me deu fugiu”.

Imediatamente, o Santo, bendito seja Ele, enviou estes três anjos: Sanoi, Sansanoi e Samnaglof (ou Sandalfon), para trazê-la de volta.

Disse o Santo a Adão:

“Se ela concordar em voltar, tudo bem. Caso contrário, ela deve permitir que cem de seus filhos morram todos os dias”.

Os anjos deixaram Deus e perseguiram Lilith, a quem alcançaram no meio do Mar Vermelho, nas águas impetuosas onde os egípcios estavam destinados a se afogar. Disseram-lhe a palavra de Deus, mas ela não quis voltar.

Os anjos disseram:

“Nós os afogaremos no mar”.

“Deixe-me!” ela disse. “Fui criada apenas para causar doenças às crianças. Se a criança for do sexo masculino, eu tenho domínio sobre ele por oito dias após seu nascimento, e se for do sexo feminino, por vinte dias”.

Quando os anjos ouviram as palavras de Lilith, eles insistiram que ela voltasse. Mas ela jurou a eles pelo nome do Deus vivo e eterno:

“Sempre que eu vir você ou seus nomes ou suas formas em um amuleto, não terei poder sobre aquela criança”.

Lilith também concordou que cem de seus filhos morressem todos os dias.

Assim, todos os dias, cem demônios perecem e, pela mesma razão, escrevemos os nomes dos anjos nos amuletos das crianças.

Quando Lilith vê seus nomes, ela se lembra de seu juramento, e a criança se recupera. 2

Esta versão midráshica das origens de Lilith prova ter apenas uma pequena influência do pensamento judaico tradicional, acabando por se integrar em amuletos como parte da tradição etiológica no Sefer Raziel, mas só alcançando realmente ampla circulação na era moderna, com a re impressão do referido livro publicado pela ABBS.

Lilith aparece em uma terceira e muito diferente encarnação no altamente influente Tratado da Emanação Esquerda, escrito no século 13 pelo cabalista Isaac Cohen, onde ela é retratada como a antípoda maligna de Eva, e a personificação feminina do mal cósmico, a consorte e mãe dos príncipes dos demônios:

“[É] claro que Samael e Lilith nasceram como um único ser, semelhante à forma de Adão e Eva que também nasceram como um único ser, refletindo o que está acima.

Este é o relato de Lilith que foi recebido pelos Sábios no Conhecimento Secreto dos Palácios.

A Matrona Lilith é a companheira de Samael. Ambos nasceram na mesma hora à imagem de Adão e Eva, entrelaçados um no outro…

Você já sabe que o malvado Samael e a perversa Lilith são como um par sexual que, por meio de um intermediário, recebe uma emanação maligna e perversa de um e emanam para o outro…

A serpente celeste é um príncipe cego, a imagem de um intermediário entre Samael e Lilith. Seu nome é Tanin’iver.

Os mestres da tradição diziam que assim como esta serpente desliza sem olhos, a serpente suprema tem a imagem de uma forma espiritual sem cor – estes são “os olhos”.

Os tradicionalistas o chamam de criatura sem olhos, por isso seu nome é Tanin’iver. Ele é o vínculo, o acompanhamento e a união entre Samael e Lilith. Se ele fosse criado inteiro na plenitude de sua emanação, teria destruído o mundo em um instante.” 3

Lilith tem uma montaria que ela cavalga, Tanin’iver, o “dragão cego”.

Ela pode comandar centenas de legiões de demônios.

Curiosamente, o Tratado da Emanação Esquerda começa a fechar o círculo, mais uma vez referindo-se a múltiplas Liliths, assim como os antigos.

Essa tradição de haver duas (ou mais) Liliths também aparece em Pardes Rimmonim, e se torna uma parte comum da cosmologia cabalística em obras dos séculos XVII e XVIII.

Essa interpretação de Lilith, como a face feminina do mal cósmico, também ocupa um lugar significativo no Zohar, onde ela é a contraparte maligna da Shekhinah (Zohar II: 118a-b; Zohar III: 97a).

Há também uma tradição no Zohar de que Lilith era a Rainha de Sabá que veio testar Salomão.

Em outros textos místicos posteriores, ela é uma das quatro rainhas, ou as quatro mães, dos demônios.

Ela é a mais proeminente das quatro rainhas, sendo rainha das forças de Sitra Achra, o lado impuro ou esquerdo das emanações divinas, que correm soltas no mundo.

No texto cabalístico moderno, Emek ha-Melech, as três interpretações de Lilith apresentadas em literaturas anteriores são reconciliadas, segue o referido texto:

“E toda essa ruína se deu quando Adão, o primeiro homem, copulou com Eva enquanto ela estava na sua impureza menstrual. Esta é a imundície e a semente impura da Serpente que montou Eva antes que Adão a montasse… Eis que aqui está diante de você: por causa dos pecados de Adão, o primeiro homem, todas as coisas mencionadas vieram a existir.

Pois a Maligna Lilith, quando ela viu a grandeza de sua corrupção, tornou-se forte em suas cascas, e veio a Adão contra sua vontade, e teve relações sexuais com ele e dessas relações surgiram muitos demônios e espíritos e lilin (23b-d) …

Samael é chamado de Serpente Inclinada, e Lilith é chamada de Serpente Tortuosa (Isaías 27:1). Ela seduz os homens para que sigam caminhos tortuosos… E saiba que Lilith também será morta. Pois o padrinho [Dragão Cego] que estava entre ela e seu marido [Samael] vai engolir uma poção letal no futuro, das mãos do Príncipe do Poder.

Pois então, quando ele se levantar, Gabriel e Miguel unirão forças para subjugar e derrubar o governo do mal que estará no céu e na terra. (84d) “4

As defesas contra Lilith incluem fornecer amuletos inscritos com os nomes angélicos Sanoi, Sansanoi e Samnaglof (ou Sandalfon) para mulheres no parto e recém-nascidos, não dormirem sozinhas em uma casa e bater em uma criança no nariz se ela parece estar respondendo a algo que os pais não podem ver.

Os salmos, particularmente os Salmos 16, 91, 121 e 126, são eficazes para expulsar Lilith (Shimmush Tehilim, 121, 126).

Há também um ritual que pode ser realizado durante e após a relação sexual para afastá-la (Zohar III:19).

Os judeus alemães do século 18 tinham um ritual mais elaborado, envolvendo a nova mãe dormindo com uma espada, punhal ou amuleto em forma de espada debaixo do travesseiro e levantando-se todas as noites durante as primeiras trinta e uma noites para cortar o ar ao redor da cama ( supondo que a criança dormisse na cama com ela) para afastar a ameaça.5

Nos tempos modernos, inspirada no singular retrato de Ben Sira, o qual retrata Lilith como uma mulher que enfrenta a dominação masculina, Lilith tornou-se um ponto de encontro entre as feministas ao criticar a perspectiva predominantemente masculina do judaísmo tradicional, e ela foi adotada como um símbolo da resistência feminista à hegemonia espiritual masculina.6

A deusa hebraica posteriormente censurada da tradição pelos autores das Escrituras não tem qualquer base no registro histórico. Essa afirmação parece depender inteiramente do apelo à narrativa de Ben Sira, mas essa história é sui generis, e não há precedente para qualquer crença em Lilith como “Esposa de Adão” ou “Esposa de YHVH” antes do século X dC .7

Referências:

1. Martinez, The Dead Sea Scrolls Translated, 371, 373.
2. D. Stern and M. Mirsky, Rabbinic Fantasies: Imaginative Narratives from Classical Hebrew
Literature (New Haven, CT: Yale University Press, 1990), 182–183.
3. Dan, Early Kabbalah, 175, 179.
4. Patai, Gates to the Old City, 458.
5. Sperber, The Jewish Life Cycle, 26–27.
6. Aviva Cantor Zuckoff, “The Lilith Question” Lilith Magazine Online, http://www.lilith.org/about.thm.
7. G. Dennis and A. Dennis, “Vampires and Witches and Commandos, Oy Vey: Comic Book
Appropriations of Lilith” Shofar, 32:3 (2014).

Tradução e adaptação em português por Icaro Aron Soares.

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