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Cabala

A Retificação de Deus

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 Douglas Verden

And as horror begets horror
So I received my father’s sin”
(Selim Lemouchi – The Devil’s Blood)

Por incontáveis ciclos temos sido instrumentos inconscientes da progressão do exílio da “Mente do Todo” em sua caleidoscópica e fractalizada auto-cristalização. Por incontáveis ciclos temos sentido, atônitos e perdidos, o esfriamento do Espírito Eterno e a profanação da Matéria Imutável, ambos violentamente arrancados do Nada, para a glória da corporificação cósmica. Por incontáveis ciclos passamos pela lâmina da Morte e nos perdemos nos labirintos entre-vidas. E por incontáveis ciclos, retornamos a este mundo, atados à redenção do Uno. Mas além das estrelas, chama a “Voz do Silêncio”, acordando-nos do sono profundo para um entendimento dos ditames da Criação, recordando-nos de que nosso estado essencial pertence ao Nada.

Ao que parece, esvaiu-se completamente o tempo onde a Retificação dava-se de forma automática. Agora, somos convidados a participar ativamente, segundo a Vontade de nosso Ente Secreto, do processo de purga da Divindade Criadora e Ordenadora, do Princípio Cósmico, da Gota de Luz parida pelo Caos no centro do Triângulo Obscuro. Pois os resíduos das Letras de um tempo Primevo, matizados pela primeira infância do espírito, estão inoculados em nós via ancestralidade revelada por incompreensíveis ecos atávicos, via progressão de inúmeras vidas e existências no incansável Rodopiar gerado pelos Açoites dos Senhores do Karma, que dançam à Beira do Poço da Loucura, assistindo entre apostas quem tem a coragem de encarar no espelho a escuridão no fundo dos próprios olhos.

Aqueles que alinharam-se com a eternidade, na carne ou fora dela, enxergam o Jogo da Reparação como uma longa e cansativa Ópera que restringe e aprisiona a Chama Obscura, tornando-a não mais que uma “fonte” para a manutenção da Criação. Estes, dos não-lugares entre reinos, observam a cada Camada de Existência criada, o processo de transferência do transbordo não refinado da Camada anterior, vertendo todos os defeitos cognitivos para a próxima onda de vida manifesta.

Eles estavam lá, e viram em primeira mão o despedaçamento do corpo de Adam Kadmon, cujas partes irradiaram para o Mundo seguinte, e assim, os fragmentos e os resíduos da raça adâmica fluíram adiante por meio da Emanação do Desejo implacável de Deus, escorrendo Véus adentro, fecundando a dimensão seguinte. Eles assistiram à coagulação da matéria que sustenta a lógica e a racionalidade, quando gestou-se o mundo da Criação Mental. Assistiram também ao épico dramático da geração da matéria astral, a mais complicada camada da manifestação dessa versão do Cosmos, onde os terrores decorrentes da Formação Emocional-Instintiva vazaram selvagemente para a geração do próximo mundo que, sob doloroso parto, deu origem à dimensão da Ação Material, a derradeira estrutura que encarna e centraliza tudo aquilo que houve de precedência no processo de manifestação. Eis a Noiva de Deus: nós. Homens e Mulheres. Nós, humanidade. Nós, nascidos sobre os cadáveres da Lua e carregando as almas dos que ali viveram.

Veja, se Deus disse (na verdade Elohim, mas vamos deixar esse detalhe de lado) “Façamos o homem à nossa imagem, con­for­me a nossa semelhança” (Gên 1:26), e olharmos esse épico cósmico sob a máxima hermética “Acima como Embaixo, Embaixo como Acima”, então, as falhas humanas, terrivelmente escancaradas à luz do DIA, são apenas um reflexo das falhas de sua progenitura cósmica: por meio da Árvore Sefirótica, os Pecados do Pai foram transferidos para seus Filhos e Filhas,”Porquanto cada árvore se conhece pelo seu fruto. Não se colhem figos dos espinheiros, nem se apanham uvas dos abrolhos” (Luc 6:43). Assim lemos nos livros sagrados… E Ele disse mais: “Sede, pois, fecundos e multiplicai-vos, e espalhai-vos sobre a terra abundantemente” (Gên 9:7). Não é difícil constatar a esforço e o desespero que emana de toda a natureza em passar a informação adiante, sempre, o mais rápido e da maneira mais eficiente possível. A vida girando em torno do refinamento da informação, sedenta por mutações propulsoras, e então, repassar esse pacote de informações adiante, por meio do “fecundos” e do “multiplicai-vos”. O coito condicionado, reduzido à urgência. Quando metade da cadeia planetária tornar-se pó, um demônio dirá algo a nós sobre essa urgência: “Deus está ficando sem tempo”.

Como artífices da Arte Antiga – não uma artífice qualquer, mas aquela que honra na carne esse ofício, aquela que realmente teve a audácia de reaver sobre seu atual avatar a impressão a ferro e a fogo da Velha Marca de Qayin sobre sua testa, corporificado sua precedência não-humana – não há mais restrição à inconsciência e à dependência da Retificação Automática de Deus (O Tiqun em sua expressão última). Os processos mágickos e ocultos engendrados por tal estirpe geram faíscas que abrem fissuras no firewall do Ovo Cósmico, pelas quais transitam algo como os esporos de uma espécie desconhecida de cogumelo alucinógeno que fazem eclodir ideias-pensamentos de liberação e libertação: estas por sua vez criam raizes nos demais integrantes da “coisa humana”.

Então o momento diz que já alcançamos a capacidade ostensiva, maturada pelos Éons através desses esporos “envenenados” espargidos pela Luz Luciférica, de forjar em nosso interior os elixires que implicam em alcançar as posturas mentais e emocionais que permitam “editar” conscientemente a codificação da macro-inteligência que chamamos costumeiramente por essas bandas da galáxia de “Deus”. Ou chame isso de DNA, se preferir. Em um nível de mais fácil compreensão, essa conquista se expressa pelo criticismo, pelo bom senso e pela capacidade de duvidar e fazer perguntas. FAZER PERGUNTAS. E especialmente, não se conformar. Em um nível mais esotérico, ela se expressa na coragem de abraçar o pré-humano e o trans-humano, sem receio de perder a própria “humanidade” no processo. Ela se expressa na habilidade de devorar o medo e, nutrido, tornar-se Nada e então, unificado com a Força, ser capaz de moldar realidades.

Mas para todos e todas que não estão alinhados com a Via da prática da Arte Antiga, ainda pode-se buscar os ecos da estranha música do Deserto, cuja melodia inspira, no mínimo, a tornar-se consciente do papel de “ser-ferramenta” no processo Cósmico. Então, abandonada a ingenuidade sobre o seu papel no palco da Criação, resta modular a maneira pela qual fará essa Retificação: é mais ou menos como uma determinada combinação astrológica em um mapa astral, que pode ser expressa de inúmeras maneiras. Um pseudo-destino, despido da culpa.

Aliás, talvez culpa seja mais um problema de visão projetada que carregamos do Éon passado, consequência de termos sido bombardeados ao longo dos milhares de anos de certezas baseadas em crenças que nos tornam pequenos e, enfraquecidos pela culpa, baixamos as nossas cabeças. E nisso aprendemos a ansiar por um Pai que nos guie por todo o caminho pela mão e, quando caímos e ralamos os joelhos no chão, ansiamos por uma Mãe que nos console em seu colo. Cada vez mais poderemos contar menos com isso. Ou forjamos a Divindade em nosso Abismo interior, “retificando-a” a nosso modo, ou seremos esmagados pelas mãos dEla. Pois engana-se quem acha que a Mãe Mais Antiga é misericordiosa. Só alcançamos Sua inteligência, por meio da expressão Gloriosa de Sua Implacabilidade.

Mas quero voltar à questão da culpa, pois é a partir dela que somos enfraquecidos e apequenados. Essa culpa viral amplifica o sofrimento experimentado no limiar entre a passagem de uma Era para outra, e a “coisa humana” é levada então a momentos terríveis. Os herdeiros e as herdeiras das Estrelas chegam ao absurdo de verem-se como “os miseráveis, destinados a viver e desaparecer na periferia da galáxia”, como meros fragmentos de poeira. Atuamos sentenciando a nós mesmos à irrelevância! Talvez seja mesmo mais fácil assumir que somos pouco mais que macacos falantes e apenas isso, ancorando-nos numa apatia cancerígena, do que assumir que, mesmo reconhecendo sermos apenas macacos falantes, somos também filhos e filhas do além-cosmos e temos a responsabilidade de dominar o poder de nos tornarmos algo mais que macacos falantes. Muito embora aquilo que proceda dos Não-lugares entre as camadas da Infinitude não garanta acesso à essa herança trans-cósmica – o poder de Iluminar o Símio Falante. E como o principio é holográfico e aqui, neste artigo, enxergamos por meio do “Acima como Embaixo”, tanto as consciências ditas angélicas quanto as infernais nos habitam através da Linguagem, impressa em nosso Sangue. Linguagem ainda Oculta e que está gradativamente sendo aquecida pela febre da inevitabilidade, anunciando o Julgamento pela irradiação do Fogo do Apocalipse Interior.

Até lá, seguimos. Seguimos, na maior parte do tempo, inconscientemente fazendo valer a mesma servidão já há muito condenada em cada movimento planetário, pois tememos sobretudo encarar a dualidade em nós e fora de nós, em suas últimas consequências – inclusive a possibilidade do coito das antinomias. Adoramos projetar toda sorte de mazelas e, especialmente, da maldade humana na Árvore errada, nos divertindo na ignorância de transferir a responsabilidade de nossos atos e de nossa incapacidade de lidar com a Força para os demônios: percebe o eco se repetindo? Percebe o mesmo processo de “transbordo” dos defeitos cognitivos? E não poderemos dizer que os mesmo demônios não nos avisaram…

Aliás, é esse “resíduo cognitivo” não integrado que nos movimenta para lá e para cá, seguindo o fluxo dos desejos – pois acreditamos que “somos nossos desejos” – alimentando com nossos fluidos a correnteza que gira a Velha Roda do Karma. E os desejos nos arrastam em sonolência para a Re-Manifestação, e nos vemos novamente inconscientes, perdidos, sem a memória do que fomos e seremos, cegos, mudos e surdos: nessa miserável condição, parece restar apenas a esperança por um milagre. Nascemos, décadas se passam, e em miséria espiritual, fazemos justamente isso: imploramos por um milagre. Mas o milagre não chega, pois é nosso dever coagular os milagres na Argila que tanto aprendemos a amaldiçoar. “Ninguém vai fazer por nós, o que nós podemos e devemos fazer por nós mesmos”, disse um sábio em um livro. Não devemos esperar pelas benesses divinas, especialmente se forem imploradas a um deus de papel. E nem devemos esperar pelos presentes e pelas intervenções automáticas dos deuses estelares, pois os deuses foram assassinados pela inteligência humana e sepultados – para a nossa sorte – em nossos ossos. Ressuscite as deusas e os deuses antigos em sua carne e coagule os milagres em sua vida a partir da necrópole vivificada!

Então, ao olhar novamente para os céus, lembre-se de que é herdeiro e herdeira das Estrelas. Lembre-se de que a mesmice e aquilo que nos apequena, aquilo que nos impõe culpa, impede que nos assenhoremos de nossa Força, impede de que sequer nos consideremos como capazes de fazer o processo de refinamento ígneo dessa Linguagem Oculta, que está na base da Criação dos Mundos. Nos impede de tomar na mão direita o que em Qabalá chamamos de Ohr, a Luz em sua forma polarizada, manifesta, e de tomar em nossa mão esquerda os muitos e diversos Kelim, os Vasos que recebem essa Luz e nos permite corporificar toda sorte de coisas no maquinário cósmico, mas corporificar não segundo uma vontade humana externa, mas segundo a Vontade Sagrada – portanto divina e maldita – de teu Vórtice Interior, o canal por onde ecoa a Voz do Silêncio.

São tempos de dúvidas e de perguntas, tempos onde coisas terrificantes parecem estar vazando do não-espaço para a nossa vizinhança cósmica; tempos onde ecos nos incita a nos tornarmos algo mais que seres humanoides e macacos falantes… Aproveitemos pois.

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