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René Guénon

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Suetam, O Jardim Hermético

Guénon foi um grande mestre-escola para o esoterismo ocidental. Expulso que foi pelo establishment racionalista desde a segunda metade do século XVII, nosso esoterismo foi para a sombra, para a selva, conspurcou-se de elementos heterogêneos, degenerou-se, iletrou-se, tornou-se um selvagem, marginal… Perdeu em suma a necessária disciplina e o rigor iniciático que perduraram no esoterismo de outras civilizações. Coube a Guénon sua reabilitação, seu banho purificador de toda mácula, devolvendo sua prístina forma e conteúdo… Essa foi pelo menos a intenção de Guénon, e devemos julgar por nós mesmos se ele foi bem-sucedido ou não, e em que grau.

Sinto, intuo, percebo através de meu coração que muitas das formas religiosas que hoje são tidas como tradicionais são boas, eficazes. Mas isso não quer dizer, como se apressam a teorizar os guénonianos, que toda forma tradicional é por definição boa, e que todo desenvolvimento ou adaptação espaço-temporal dessas formas seja de per se mal. Essa suposição guénoniana muito tem a ver com uma certa visão mítica do desenrolar histórico: estaríamos em constante declínio moral, social, religioso… É toda uma ideologia anti-iluminista, social e politicamente retrógrada. É uma reação à ideologia dominante e oposta, a do progresso da Humanidade… No meu entender, a Humanidade ora progride, ora regride, de maneira não linear e não absoluta, e quiçá nas questões essenciais ela continue absolutamente igual…

Uma prática espiritual é boa se é eficaz para indivíduos concretos, e acho que esse é um critério mais razoável. Certo é que as novas seitas não parecem possuir a mesma qualidade espiritual das religiões tradicionais, mas seria temerário induzir grandes conclusões a partir desse fato… Mais interessante seria compreender intuitivamente o que seria essa eficácia… Essa compreensão já seria a própria eficácia de que estamos falando, ou pelo menos uma parte da mesma. É algo muito simples, mas não o compreenderás com a cabeça.

O pensamento de René Guénon

Propor-se a escrever sobre René Guénon é quase um contrasenso, pois sua obra tende a colocar o leitor em um terrível dilema: tentar vê-la de um ponto de vista externo, perspectiva amplamente condenada pelo autor, ou tornar-se inevitavelmente um prócer, um discípulo, e avaliar esse mesmo exterior através da perpectiva que sua obra nos dá. São difíceis, senão impossíveis, as soluções de compromisso. Seu pensamento era denso, sistemático, totalizante, e respondia metodicamente a possíveis críticas, pondo-se prontamente em uma posição inatacável. Para Guénon, sua obra era apenas (e esse apenas era certamente de uma imensa megalomania) a traditio/transmissio da philosophia perennis, da prístina e una metafísica que originou todas as grandes religiões. Ele jamais usava o pronome pessoal, e agia como uma sibila enviada pelo Logos para esses tempos de escuridão espiritual, para esse “fim de ciclo” (no sentido platônico e védico) em que vivemos.
Temos, parece-me, duas opções em relação a Guénon. A primeira e mais fácil seria simplesmente ignorá-lo e enviar seus escritos ao merecido limbo daquilo que poderíamos chamar de “não-saber”, pseudo-saber, ou simulacro de saber.

Uma outra opção, que na minha opinião é a mais interessante, seria a de adentrar seu sistema, levá-lo por um momento a sério, e ao final julgar por nós mesmos se ganhamos algo no processo. Como Guénon vê o mundo? O que o irrita tanto na modernidade? Quais as razões de seu não-conformismo? O que ele parece estar criticando, e o que propõe em troca? Em suma, entremos dentro do universo mental do autor e tentemos compreendê-lo. E façamos isso à maneira de um psiquiatra curioso, evitando classificações fáceis demais e extrínsecas ao próprio autor.

Guénon sempre foi um homem cerebral, frágil, ávido do ocultismo fin-de-siècle que permeava as facções maçônicas ligadas a Papus (Gérard Encausse), Stanislas de Guaïta, Oswald Wirth. Fez uma carreira extremamente rápida nesses meios, chegando a ser ordenado ‘bispo’ de uma ressurreta Igreja Gnóstica (seu nome episcopal era Palingenius, e supostamente era uma reencarnação de outro antigo hierofante gnóstico do mesmo nome). Teve verdadeiro frenesi em acumular iniciações maçônicas, rosacruzes, martinistas, taoistas, sufistas, vedânticas. Nesse primeiro momento, Guénon poderia ser classificado como um típico cercleux de grupelhos ocultistas parisienses. No entanto, nosso autor passará o resto de sua vida a criticar violentamente, ou às vezes a simplesmente depurar, o nebuloso pensamento desse meio. Como Santo Agostinho, será um doutrinador tão rígido quanto foi intenso seu envolvimento anterior (no caso de Agostinho, com os maniqueus). Sua obra posterior ganhará muito sabor em função desse passado ocultista, que lhe fornecerá muito material de reflexão (e crítica, evidentemente). No final de sua vida, no Cairo, dedica-se especialmente a uma ressacralização da maçonaria… Não teria elementos para tal projeto se não tivesse sido muito cedo maçom, e maçom alçado a graus muito altos pelo próprio Papus.

O pensamento de Guénon, além de ser um sistema fechado (como qualquer filósofo ou pensador paradigmático, Freud, Marx, Nietzsche, e outros menores mas não menos monomaníacos), propõe-se a ser uma propedêutica, uma retificação das categorias mentais do leitor para que o próximo passo possa ser dado, que é a verdadeira iniciação. Essa iniciação está fora da alçada do autor, no entanto. Compete às organizações tradicionais por ele elencadas: sociedades secretas taoístas, vedantinas, budistas, cristãs-ortodoxas, islâmicas, etc. Ele é como João Batista, anuncia e prepara.

É fascinante ler Guénon. O texto passa uma atemporalidade, uma impessoalidade, como se o autor tivesse sido incumbido da penosa tarefa de nos elucidar antes do “fim deste mundo tal como o concebemos” (a expressão é dele). É sedutor ler Guénon, seu estilo suscita a criança frágil em nós, aquela que quer que pensem por ela, que lhe dêem certezas, bússolas, que lhe segurem a mão. Como diria Pascal, precisamos de um ponto fixo, de um porto seguro. Paradoxalmente, o texto guénoniano é exigente com o leitor, não é de fácil acesso, é rigoroso na ordem das razões, chega a ser escolástico, tomista, cheio de distinções, poréns, um espírito aracnídeo. Kant também o é, verdade seja dita.

Guénon não gostava nada das apropriações políticas que sua obra obteve, notadamente na França e Espanha por monarquistas, e na Itália por pensadores fascistas como Julius Evola. Não lhe interessava a política tal como a entendemos corriqueiramente. Também não lhe interessava a erudição, a referência a fontes, o academicismo; suas notas de rodapé referem-se indefectivelmente a outras partes de sua obra, a outros livros seus. Seu alvo como público-leitor parece ter sido uma certa elite intelectual/espiritual situada dentro das diversas formas religiosas tradicionais e que poderiam compreendê-lo, ele Guénon, ‘por dentro’, compreender intuitivamente e espiritualmente sua mensagem revivificadora para suas respectivas tradições. Pois a doutrina por ele transmitida seria nada mais nada menos que a metafísica matriz de todas essas tradições, seria a tradição-mãe, o tronco primordial.

A obra escrita de Guénon tem algumas repartições, que dependeram tanto das ocasiões históricas que as suscitaram quanto de seu intento pedagógico, e finalmente de sua função orgânica dentro do corpus guénoniano. Grosso modo, Guénon começa sua carreira literária denunciando a “falsa espiritualidade” revestida ou de cientificismo (O Erro espírita, 1923) ou produto de pura má-fé e charlatanismo (O Teosofismo, história de uma pseudo-religião, 1921, 1925). Até hoje pensa-se que faltou um volume sobre a pseudo-maçonaria ocultista de Papus, mas afinal o autor havia sido maçom, e há coisas que se pensam mas não se escrevem.

Seus livros seguintes tratam de simbologia, já entrevendo-se aspectos doutrinais (O Rei do mundo, 1927, O esoterismo de Dante, 1925). Finalmente escreve sua grande trilogia metafísica, que é como que o núcleo de sua obra: O homem e seu devir segundo o vedanta, O simbolismo da cruz, e Os estados múltiplos do Ser (respectivamente 1925, 1931, 1932).

Por fim, após a exposição dos erros alheios e a apresentação do que seria a verdadeira metafísica, Guénon escreve uma obra volumosa porém alusiva relativa aos aspectos práticos da iniciação, Apontamentos sobre a Iniciação (1946); alusiva em dois sentidos, um derivado do fato que o autor delega às várias tradições iniciáticas o papel de levar a cabo efetivamente essa práxis; outro devido simplesmente ao caráter secreto das iniciações.

Além desse esqueleto da obra guénoniana, há outras peças do autor, de modo algum desprovidas de interesse, e que tratam de criticar a modernidade em todas as suas facetas (O Reino da quantidade, A Crise do mundo moderno, 1945 e 1927 respectivamente). Serão essas obras ‘menores’ as que mais chamarão a atenção de uma certa intelligentsia entre-guerras: um Gide já velho, Breton e alguns surrealistas. O corpo da obra como um todo aliciará um outro tipo de leitor: o poeta René Daumal, islamizantes europeus tais como Titus Burckhardt e Frithjof Schuon, certos prelados católicos tornados cardeais posteriormente, escritores e ideólogos maçons, pupilos de Gurdjieff e Ouspensky, um verdadeiro saco de gatos. Do Cairo, Guénon ficava alheio a essa disputa por seu espólio.

Mas que a verdade seja dita: Prolegômenos a toda metafísica futura à parte, Guénon é extraordinário. Seu pensamento é hipnoticamente convincente e, quem diria, lógico e racional; lógico e racional para, quem diria de novo, ir além, apontar alhures, levar o leitor a uma fresta do Transcendente através do que os exegetas islâmicos de Aristóteles chamavam de intuição intelectiva, ou seja, a apreensão direta do objeto do conhecimento que prescinde da mediação racional-discursiva, apreensão imediata do objeto que de algum modo o funde ao sujeito… Algo a que o jovem Hegel palidamente aludia ao escrever na Fenomenologia sobre uma síntese dialética final onde o Em-Si fundir-se-ia com o Para-Si no seio do Espírito Absoluto. O Objeto e o Sujeito são Um, a Criação é a maneira encontrada pelo Criador para Conhecer-Se (como diria o grande sufi Ibn Arabi). Eis aí, como Guénon gostava de salientar, a pura doutrina do Não-Dualismo tal como exposta exemplarmente no Vedanta, mas não só nele, em todas as Tradições derivadas da Tradição Primordial.

Islam. Ponto de chegada de Guénon, mas aparentemente não só dele… Toda uma elite intelectual francesa do entre-guerras foi fascinada pelo Islam: o Père de Foucauld, Henri Massignon, D. Masson, Henry Corbin. Pode-se tentar entender esse fenômeno do ponto de vista histórico, pelas ilusões perdidas com os horrores da Grande Guerra, com as idéias de progresso e perfectibilidade ocidentais, com a revelação do reverso da medalha… Esses intelectuais foram uma espécie de denúncia in loco colonialis do próprio colonialismo ‘civilizante’ e europeu… Não é fortuito Breton encantar-se tanto com a denúcia guénoniana do Ocidente decaído, profano. Foram intelectuais não fascináveis pelo nascente fascismo, pela velocidade da máquina… Pensavam a História circularmente, platonicamente, e nossa época como decadência, final de ciclo, final dos tempos, fim de manvântara como diria Guénon. Olhavam para trás, para modos civilizatórios pré-capitalistas, mais solidários num sentido comunal, comunitário, mas não socialista. Não lhes interessava a política ocidental de ideologias, mas uma volta às raízes, ao deserto, à calma, à etiqueta (o adab árabe) típica das sociedades tradicionais. As questões sociais deveriam ser tratadas através da solidariedade e da esmola… A falta de justiça social derivaria não de uma questão de classes primariamente, mas de uma ausência progressiva do divino no cotidiano, da Transcendência na Imanência… Faltava ao mundo ocidental o dhikr, a lembrança de Deus. Guénon foi um grande parteiro de vocações religiosas, e de modo algum vocações simplesmente islamizantes. Confirmou e reavivou a fé respectiva de seus vários leitores, fossem eles maçons, católicos, judeus, e mesmo a fé de muçulmanos de nascença. É nesse sentido que há um espólio guénoniano. Por mais que certos grupos políticos (notadamente monarquistas e evolianos, além de integralistas de todo tipo) tentem se apropriar de seu pensamento, a própria natureza da mensagem de Guénon faz com que malogrem, ou que essa apropriação seja meramente decorativa, superficial, alheia ao espírito da obra.

O conceito de iniciação de René Guénon

René Guénon baseou-se muito na noção sufi de iniciação, que é chamada de bayat, para elaborar seu conceito de Iniciação. Esse bayat ou juramento é feito para se receber a báraka (graça eficiente) que vem do Profeta Muhammad (s.a.w.s.) através de uma dada silsilah ou cadeia de transmissão. Essa cadeia é constituída por vários mestres certificados como tais, às vezes míticos, geralmente históricos. Como nas cadeias de transmissão dessa Graça Eficiente pertencentes a outras correntes esotéricas e religiosas, é comum no sufismo suprir uma lacuna na transmissão histórica com um “coringa”, um mestre mítico/místico (no caso islâmico, muitas vezes o Khidr). Está em jogo uma questão de poder, pois a instituição deve certificar se alguém é ou não um mestre legítimo. Se o pedigree possuir lacunas, será necessário criar um novo pedigree.

Para Guénon, essa Graça eficiente é uma centelha divina, não-humana, de origem transcendente, que é necessária para que o trabalho iniciático individual possa gerar fruto. Ou seja, há uma iniciação formal, ritual, que tem caráter de potência, de virtualidade. Considerando-se o ser humano atual como irremediavelmente decaído (e para Guénon é importante o mito indo-europeu das quatro idades do mundo, mito presente tanto em Platão quanto nos textos védicos), é necessário esse “impulso” da iniciação virtual pois ela transmite algo impalpável porém real. Essa centelha que é transmitida (traditio/transmissio) deverá então propiciar, se adequadamente nutrida, a iniciação real, que é por sua vez algo arduamente trabalhado pelo iniciado, é mérito seu. Num sentido real, portanto, é o indivíduo que inicia-se a si mesmo, esse é um trabalho seu, mas ele necessitará de uma ajuda. Essa ajuda é transcendente na origem mas imanente à cadeia iniciática e aos rituais destinados a esse fim.

Porquê usei o termo Graça Eficiente? A razão é simples: essa problemática institucional é também comum nas correntes religiosas ocidentais. Foi o problema levantado pelo Père Arnault, por Pascal, em suma, pelo movimento Jansenista no século XVII: a questão da essência e da importância dos sacramentos católicos.

Foi também a questão de se saber, à época de Felipe o Belo (o mesmo que destruiu a Ordem do Templo), quem era o Papa legítimo, o de Roma ou o de Avignon…

Esse assunto é vital no que tange às instituições, pois regula a legitimidade do poder exercido por elas. Sua resolução é crucial para a sobrevivência, legitimidade e continuidade das mesmas.

Mas o quê isso tem a ver com a prática de um caminho espiritual? Muito pouco, no meu entender. Então, é um mestre necessário ou não?

É fundamental. Mas por outras razões, razões essas bem mais simples e pedestres. Aprender uma prática espiritual assemelha-se ao aprendizado de uma arte tradicional, é um artesanato. Se fôssemos um sapateiro, como aprenderíamos a fazer sapatos? Tradicionalmente cada corporação possui seus segredos, não serve apenas ler um livro do gênero Sapataria para Dummies. É a prática tradicional da sapataria que importa aqui. Onde aprender? Ora, procurando um mestre-sapateiro que nos aceite como aprendiz. Inicialmente imitaremos, macaquearemos o mestre, e com os anos entenderemos as razões ocultas, sutis, na arte de como esse mestre faz seus sapatos, e então seremos talvez alçados à condição de companheiros, pois ele verificou que os nossos sapatos estão bons, estão melhorando. Com o passar dos anos nossa técnica transmutou-se em arte, nossos sapatos são nossos, exalam nosso aroma, nosso espírito. Tornamo-nos então Mestres, e passamos a ter a permissão (tácita ou explícita) da corporação para que iniciemos e treinemos novos aprendizes. E assim a arte da sapataria continua através dos tempos, somos integrados nessa vasta corrente, somos mais um anel.

Suetam é Tarólogo, membro da ITS – International Tarot Society, USA, Astrólogo, formado pela Escola Regulus de Astrologia (SP), Terapeuta, especializado em Terapia de Cura Energética, Filósofo, formado pela USP, e Mestre pela University of Chicago, USA, Pesquisador e Bibliófilo de obras de Filosofia Hermética, da antigüidade aos dias atuais eMembro do MENSA no Brasil

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