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URUCUBACA: olho gordo, olho grande, mau olhado, quebranto, seca pimenteira.

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Shirlei Massapust

Diz-se, no Brasil, que o olho-grande (malefício fruto da inveja de um adulto contra outro adulto) e o quebranto (fruto da inveja contra uma criança) são duas variantes do mau-olhado. O folclore mundial está repleto de contos, usos e costumes análogos.

Em tempos antigos combatia-se o mau-olhado com representações de tudo que pudesse ataca-lo ou incapacita-lo. Por exemplo, o amuleto nº 298 no catálogo Studies in Magical Amulets, estabelecido por Campbell Bonner, é uma medalha de bronze, do séc. I, contendo a imagem subintitulada “um Deus vencedor do mal” (είς θεòς ό νικω̑ν τα κακά); representando um lanceiro montado a cavalo[1], confrontando uma mulher ou um homem de cabelos compridos. No reverso outro conjunto de imagens, obscuramente subintitulado Ιαω Σαβαωθ Μιχαнλ βοήθι (intraduzível) exibe animais e um tridente que transfixa a pálpebra de um olho, ameaçado de cada lado por outros instrumentos afiados. [2]

Mosaico no Museu de Antióquia.[3]

A prática ritualística das religiões afro-brasileiras contém fórmulas de proteção para cortar o mau-olhado. As mais procuradas são os banhos de ervas e sal grosso. As sete ervas com poder para abrir caminhos, cortando o malefício da inveja, são: Arruda (Ruta graveolens), guiné (Petiveria tetrandra), alecrim (Rosmarinus officinalis), comigo ninguém pode (Dieffenbachia seguine), espada de São Jorge (Sansevieria trifasciata), manjericão (Ocimum basilicum) e pimenteira (Capsicum frutescens).

Para envolver uma casa com um escudo protetor faz-se um jardim doméstico contendo todas as ervas supracitadas. A opção por defumar um imóvel urbano de dentro para fora, na lua minguante, com o objetivo de purificar o ambiente, funciona através da fumaça dos defumadores postos a queimar junto ao carvão em brasa num turíbulo.

O preparo do defumador respeita a forma artesanal da tradição recebida, que é bastante variada, incluindo desde a palha de alho (Allium sativum) até a beladona (Atropa belladonna), muito mais difícil de encontrar ou cultivar.

Galhos de arruda são usados atrás da orelha. Figa, patuás e frascos de mercúrio são carregados junto ao corpo (pendurados como pingente ou guardados em bolsos, por exemplo). Outras providências vão de simpatias a trabalhos rituais.

Artesanato brasileiro: Estatuetas de Exu Mau. (Divulgadas na internet).

Um número significativo de rezas temáticas envia o “mau-olhado” para “as ondas do mar sagrado”. Muitas pedem proteção aos santos católicos. Para quem quiser conhecer a parte mais colorida da tradição brasileira recomendo os livros Como Combater Olho-Grande, de José Rodrigues da Costa (ensina despachos para cortar olho-grande) e Livre-se do Olho Grande, de Attilio Molone (traz rezas para benzedeiras); onde versos como “espírito perverso no meu corpo não entraria” dão a entender que a feiticeira induziria à possessão diabólica por meio do mau-olhado para realizar “as más obras do Satanás”.

Citarei apenas uma reza a título de curiosidade:


ORAÇÃO CONTRA MAU-OLHADO

Leva o que trouxeste,
Deus me benza com a sua Santíssima Cruz,
Deus me defenda dos teus olhos
e de todo o mal que me quiseres.
És tu ferro e eu sou aço.
És tu o demônio, e eu te embaraço.
Em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo.[5]

Noutras demandas o que se busca não é a cura, e sim a fórmula para executar o malefício. Eliphas Levi descreveu o castigo aplicado a certa mulher cujo comportamento era demasiadamente liberal para o século XVIII:

Um sábio tinha uma mulher a quem amava apaixonada e loucamente na exaltação da sua ternura e a distinguia com uma confiança cega, entregando-se inteiramente a ela. Orgulhosa da sua beleza e da sua inteligência, esta mulher tornou-se invejosa da superioridade de seu marido e começou a odiá-lo. Pouco tempo depois, ela o abandonava, comprometendo-se com um homem velho, pusilânime, sem espírito e imoral. Era o seu primeiro castigo, mas a pena não devia ficar nisso. O sábio pronunciou contra ela somente esta sentença: “Eu vos tomo a vossa inteligência e a vossa beleza!” Um ano depois, os que a encontravam já não a reconheciam mais: A gordura começava a desfigurá-la; ela refletia na fronte a fealdade das suas novas feições… Sete anos depois, estava louca.[6]

Ambição ou revolução?

O olho grande nas suas formas mais conhecidas – inveja da riqueza e da beleza – é um tabu prescrito entre os dez mandamentos: Não cobiçarás a casa do teu próximo, não cobiçarás a sua mulher, nem o seu escravo, nem a sua escrava, nem o seu boi, nem o seu jumento, nem coisa alguma que pertença a teu próximo (Êxodo 20:17).

Num discurso demasiadamente conformista para ser benéfico, José Rodrigues da Costa reconhece que as desigualdades sociais geram conflitos e violências, mas professa que ninguém deve se sentir injustiçado porque não há felicidade na matéria. Todos “temos tudo o que merecemos, e se quisermos mais, temos que buscar recursos alcançáveis”.[7]

Mesmo defendendo a ambição do homem responsável, capaz de obter riqueza material por mérito próprio – tudo conforme o american way – o papa negro Anton LaVey recriminou o vampiro psíquico que escolhe “uma pessoa feliz” para importunar por estar “carente de todas as coisas que sua vítima tem”.

Seguindo essa linha de pensamento suponho que o invejável ideal mereça o mundo enquanto o invejoso nasceu para servir e pagar impostos ao seu governante. Em última análise o invejável é símbolo e arquétipo do carrasco maior, o sujeito de direito por excelência (senhor de escravos, inquisidor, ditador, tirano, acionista controlador de um grande monopólio). Por outro lado, o invejoso representa o homem-máquina, sujeito de dever ideal (o escravo, miserável, desgraçado, hipossuficiente).

De tanto gemer e jurar inocência, uns idealistas na época da Renascença acabaram dando voz à raia miúda, fazendo com que os partidos de esquerda e instituições de ensino lutassem pela destruição da nobreza e propagação do olho-grande. Por isso, até hoje, quando o invejável se deixa comover pela culpa imputada pelo invejoso, seu sentimento de dever moral torna-se um calcanhar de Aquiles destroçado pelo punho de aço de todas as falhas sociológicas do mundo. O subconsciente da vítima se defende argumentando que ele não é tão mal assim e contra-ataca acusando o invejoso de alguma falta real ou mítica. A intercessão entre ataque e defesa propicia espaço para os efeitos placebo e nocebo.

Quadrinhos do cartunista Henrique de Souza Filho (1944-1988).

Uma das medidas profiláticas mais famosas do Brasil diz que ninguém deve comprar qualquer objeto ou joia de pessoas que “tenham sido desaventuradas ou portadoras do olho grande, ou que tenham inveja, uma vez que esses objetos se encontrariam invariavelmente carregados de fluidos negativos”.[8] Isso significa boicote ao comércio do estigmatizado?

José Rodrigues sustenta que “tolerar essas pessoas em nosso meio é perigoso” e oferece preceitos para “afastá-las”.[9] Por isso, entre os eslavos, “determinadas pessoas nascem com essa prerrogativa e são, logicamente, discriminadas pela coletividade”.[10]

Quando o azarento insiste em continuar existindo não há nada melhor que um remédio mítico para combater o mito. Um caso fantástico afirma que quando o interventor Bolognesier chegou num lugar distante (um vilarejo ao sul da França), num passado remoto (1786 ou 1834), ele passou a agir e vestir-se como o rico Conde de Montaigne. “A maneira de se expressar, o jeito peculiar de Montaigne, tudo era copiado nos mínimos detalhes”.[11]

Com a implantação da Comarca, Montaigne fora designado Ouvidor-Mor da coroa. Bolognesier sempre ao seu lado, se fazia de muito amigo, prestativo aos serviços. Certa feita Bolognesier comenta com Montaigne sobre os destinos de seus negócios, sabendo que pelas leis da época, somente um homem poderia seguir com os rumos da sua nobreza. Montaigne não tinha filho homem e isso realmente o preocupava muito. Bolognesier sempre de olho grande, insistia a que Montaigne o fizesse detentor provisório de seu título. Fato interessante é que Montaigne pouco tempo depois fica enfermo. Sem motivos aparentes, achava-se desanimado, fraco, abatido. Bolognesier assumindo as tarefas, já se intitulava provedor-mor, muito embora, esse título não fosse dado a ele por Montaigne.[12]

Esse conto moral tem um final feliz. Enquanto o invejoso morreu doente e louco por causa do contra feitiço de Marie Debrüt, o conde se curou e passou o título hereditário à sua filha. Todavia, Hercílio Maes, um escritor famoso por seu trabalho de psicografar a obra de Ramatis, deu um exemplo mais verossímil de como um contra feitiço pode matar o portador de mau-olhado:

Defronte de minha moradia viera morar uma senhora procedente de Pernambuco, simpática e bastante serviçal para com os vizinhos. Mas alguns meses depois corria a notícia de que ela possuía “mau-olhado”, provocando na vizinhança as mais descontroladas reações e temores. Dali por diante, a infeliz senhora foi responsabilizada por toda a espécie de doenças, desentendimentos caseiros, morte de aves, quebranto de crianças e prejuízos nas plantações. Quando ela aparecia à janela, os vizinhos persignavam-se ostensivamente, faziam esconjuros e figas, inclusive algumas mandingas à sua porta, a fim de ela mudar-se! Finalmente, certo dia estourou a notícia trágica; ela suicidara-se com soda cáustica, desesperada pelo sofrimento de tão estranho estigma![13]

Tendo observado a inconveniência do olhado sobre os seres humanos, os contadores de estórias imaginaram que o malefício pode ser estendido ou projetado exclusivamente sobre suas posses, sendo o diagnóstico comprovado pela aparente relação de causa e efeito. A coletânea de Attilio Milone inclui casos como o de um sujeito que perdeu a noiva e dois empregos após ser felicitado por alguém que “tinha conquistado no decorrer dos anos uma requintada fama de agourento e possuidor de olho grande”.[14]

Noutras narrativas a causa é presumida. (Chico comprou três toca fitas diferentes, sendo furtado três vezes consecutivas. Deduziu que “só podia ser mau-olhado, e daqueles bem insistentes[15]”).

Seca pimenteira e cala sabiá

No Brasil a “seca pimenteira” é uma pessoa portadora de mau olhado, capaz de arruinar plantas de qualquer espécie. Porém, o adjetivo coloquial “seca pimenteira” foi tradicionalmente estabelecido devido à crença popular de que a pimenteira (Capsicum frutescens) se sacrifica para proteger o seu dono e, num jardim, ela é a primeira planta a morrer absorvendo os maus fluidos do ambiente.

Será que as plantas conhecem as nossas emoções? Por volta de 1967 um policial americano chamado Cleve Backster, técnico do FBI, teve a originalíssima ideia de ligar um detector de mentiras a uma planta. Ele observou que uma dracena apresentou reações semelhantes às de um ser humano submetido a estímulos emocionais, pois, concebendo a ideia de queimar a folha da planta, esta entrou em verdadeiro pânico como se estivesse adivinhando seu pensamento.[16]

Falhas técnicas à parte, o fato é que a moda pegou. Rapidamente Marcel Vogel decidiu estudar a técnica do policial e construiu um instrumento chamado psicanalisador para captar e amplificar as reações das plantas.

Seu filodendro de estimação reagiu a humanos conversando sobre sexo no ambiente e “a histórias de horror contadas num quarto escuro”.[17] Ele comunicou que chegou aos mesmos resultados de Backster, “passando a demonstrar como as plantas pressentem quando vão ter suas folhas arrancadas, como reagem aflitas a ameaças ou a atos reais de violência — como serem queimadas ou desenraizadas — cometidos contra elas”.[18]

Certa vez Vogel pediu a um psicólogo clínico que projetasse uma forte emoção num filodendro. Depois de manifestar uma reação instantânea e intensa, a planta, bruscamente, “apagou”. Indagado sobre o que lhe passara pela mente, o psicólogo respondeu que comparara mentalmente a planta de Vogel a um filodendro que ele próprio tinha em casa, julgando a do amigo muito inferior à sua.

A planta de Vogel sentiu-se de tal modo ofendida em seus “sentimentos” que passou quase duas semanas negando-se a dar qualquer resposta. Com isto Vogel se convenceu de que as plantas têm aversão concreta por determinadas pessoas ou, mais exatamente, pelo que por acaso ocorre a tais pessoas pensar.[19]

Relatos sobre a secura de plantas variam desde coincidências plausíveis até as variantes mais fantasiosas. Por exemplo, numa parábola bíblica Jesus amaldiçoa uma figueira, fazendo-a secar imediatamente, a fim de demonstrar ao povo que «se tiverdes fé e não duvidardes, não só fareis o que foi feito à figueira, mas até se a este monte disserdes: “Ergue-te, e precipita-te no mar”, assim será feito» (Mateus 21:19-21 e Marcos 11:13-14).

A exegese da Catena Áurea interpreta que Jesus quis ensinar a seus apóstolos que Ele teria poder para exterminar seus inimigos, se assim desejasse! A propósito, o compositor Jacques Offenbach (1819-1880) se tornou um famoso jettatore em Viena e Paris por causa de um talento similar:

Atribuía-se a ele a morte da dançarina Emma Livry. Enquanto ensaiava, na presença de Offenbach, “A Muda de Portici” de Auber, seus trajes se incendiaram e em consequência das queimaduras, faleceu. Várias cantoras que se apresentavam nas obras de Offenbach sentiam um estreitamento de garganta, impedindo-as de continuar. Bailarinas torciam os ossos e juntas ao dançarem suas obras. O crítico parisiense de teatro Théophile Gautier estava com tanto medo do mau-olhado de Offenbach, que não tinha nem mesmo coragem de escrever o nome dele: Deixava um espaço em branco para que outra pessoa ali escrevesse o nome tão temido. O pior acontecimento ocorreu na premiere da ópera “Os Contos de Hoffmann” de Offenbach em 1881 no Ringtheater de Viena. No começo da apresentação ocorreu um incêndio em que 386 pessoas perderam a vida. Durante um quarto de século nenhum teatro europeu teve coragem de encenar a ópera novamente.[20]

Felizmente nem todo aziago possui um olhar pirotécnico tão potente quanto o do Scott, vulgo Ciclope, dos quadrinhos dos X-Men, ou de um fictício imigrante do planeta Kripton. Normalmente o melhor que eles supostamente fazem é secar lentamente os vasos de plantas ornamentais e pequenos arbustos.

Attilio compilou o relato de Ana, cuja mãe possuía uma samambaia na sala. A planta “ficou toda esturricada” uma semana após receber o elogio de uma visita.[21] A mesma sorte de coincidência impressionou a família do psicanalista Noberto Keppe:

Quando criança, determinada senhora que nos visitava cada vez que cobiçava uma flor, uma planta de pequeno porte, ou mesmo uma ave, depois de alguns dias a planta secava e o pássaro morria. Tínhamos uma trepadeira com um tronco respeitável pela idade. Pois bem, essa mulher conseguiu liquidá-la num simples olhar! Quando percebemos a sua maléfica influência, não a deixávamos ultrapassar a porta da sala.[22]

O humorista Gilherme Figueiredo satirizou a tradição secular enunciando que “a aproximação do chato pode ser acusada pelo murchar das plantas (os seca pimenteiras) ou a mudez dos animais (os cala sabiás)”.[23] Um costume popular ensina a prender uma fita vermelha num berço ou gaiola para proteger o seu filho ou pássaro.

Há relatos sobre portadores de mau olhado que aceitaram se submeter a algum teste experimental, a fim de averiguar a relação de causa e efeito. Por exemplo, o que foi dito do sogro de Hercílio Mães, que mandou um amigo libanês “portador do mau-olhado” descarregar essa “ruindade boba” sobre um peru. Três dias depois a ave “movia-se aos arrastos pelo terreiro e morria sob estranhos tremores”.[24]

Em seu livro de memórias, Madame D’Aulnoy relata igualmente sobre um espanhol que foi obrigado pelas autoridades locais a usar um tapa olho:

Às vezes, quando estava em companhia de bons amigos, eram-lhe trazidas algumas galinhas, e então ele dizia: “Escolham uma delas, para que eu a mate com o olhar”. Assim que uma delas era indicada, olhava-a intensamente. Então via-se como começava a cambalear e depois de algum tempo caía morta.[25]

O rótulo de “seca pimenteira” se apoia no efeito secundário causado na pessoa e não na coisa perdida. Por exemplo, se o prejudicado sabe que o outro elogiava plantas na esperança de ganhar vasos ornamentais, mudas ou frutos, e sai de mãos vazias, parece que foi praga do invejoso quando a coisa se perde.

Aparência de causa e efeito

Na grande maioria das narrativas é possível identificar uma causa mais plausível para explicar o efeito, mas não pense que o olhado nunca funciona. Há casos em que a interação pode ser mínima, embora o efeito geralmente recaia com menos força que a do evento temperado pelo trauma ou desgosto de uma experiência passada.

Em certas ocasiões o mal-estar advém da consciência de ser observado por um desconhecido. Quem testemunha o momento em que outrem faz algo errado ou ridículo e permanece olhando, torna-se um estorvo. Pense num tarado observando uma mulher recatada com expressão de lascívia ou mesmo o inverso.

Às vezes a atenção pode ser desviada de tal forma pelo temor a um perigo remoto que a pessoa ficara cega ao perigo iminente. Por exemplo, o caso de uma colegial que quase foi atropelada por um ônibus porque, ao invés de prestar atenção no trânsito, ela se distraiu preocupada com um observador desagradável…

Eliphas Levi registrou um caso emblemático “do que se chama, na Itália, jettatura ou mau-olhado”, onde a técnica revelou-se extremamente efetiva:

No tempo das nossas discórdias civis, um homem de loja teve a infelicidade de denunciar um seu vizinho que, depois de ter ficado preso por algum tempo, foi posto em liberdade, mas a sua posição estava perdida. Por única vingança, ele passava duas vezes por dia diante da loja do seu denunciador, olhava-o fixamente, saudava-o e passava. Algum tempo depois, o lojista, não podendo suportar mais o suplício desse olhar, vendeu seus fundos com prejuízo e mudou de quarteirão, não deixando o seu endereço; numa palavra, estava arruinado.[26]

É perfeitamente possível esmagar alguém pelo medo ou pelo peso da consciência, sem haver antes sofrido uma justa causa, bastando que o alvo seja receptivo ao abalo emocional. Entre os casos compilados por Attilio Milone destaca-se o de dois alunos do curso de Matemática da Universidade Federal Fluminense que romperam uma sólida amizade por rixa ideológica. Cada olhar de “E.” iniciava uma crise nervosa em “A.”, prolongando-se por dias de mal-estar:

Durante anos (e talvez até hoje) ele ficou ressentido comigo, passando a olhar-me de modo concentrado e cheio de ódio, cada vez que nos cruzávamos. Senti-me, nesta época, cheio de veneno emocional por dentro, por causa destes constantes olhares. Quando estava assim afetado, fechava-me como uma concha, ficando carrancudo e quase não falando com ninguém… Tempos depois, quando já não via “E.” há um ano, defrontei-me com ele de novo, pois ambos passamos a frequentar, a partir de março de 1984, o Curso de Mestrado em Matemática da Universidade Federal Fluminense. Ele passou a me lançar de novo, com certa periodicidade, aqueles olhares carregados. Isto prejudicou bastante o meu rendimento nos estudos e, em grande parte por causa de “E.”, tive que abandonar este curso, para deixar de ser envenenado por tais maus olhados.[27]

Após tomar ciência de sua capacidade de exercer “de maneira a mais inconsciente” algum tipo de mau-olhado sobre as pessoas que o magoaram, o escritor John Cowper Powys adquiriu o hábito de rezar “pedindo proteção a cada novo inimigo”.[28]

Colin Wilson começou a pensar no problema quando descobriu que aqueles que atraíram sobre si a ira de Powys “têm passado por tantos sofrimentos que ele foi, digamos assim, forçado a levar uma vida de quase neurótica benevolência”.[29] Acontece que o ofício de escritor e a curiosidade pela magia não eram as únicas coisas que Wilson e Powys tinham em comum. Certa vez Colin Wilson rememorou dados de seu próprio passado e concluiu que todo ser humano pode fazer o mesmo:

Antes de nossa mudança para Kensington, no outono de 1952, morávamos em Wimbledon, na casa de um velho que sofria de asma; minha mulher é quem cuidava dele como enfermeira. Durante os seis meses que ficamos naquela casa; ele foi criando cada vez mais intrigas e dificuldades, até que chegou a um ponto em que havia uma eterna atmosfera de tensão, como uma tempestade prestes a desabar. Não sou de ficar acalentando rancores, mas a sensação de estar ocupado apenas de coisas insignificantes, de estar impedido de me concentrar em algo mais importante, levou-me ao auge da repugnância, e cheguei a desejar que ele morresse. Em agosto do mesmo ano, quando chegamos de volta de um passeio de fim de semana, soubemos que ele tinha morrido de ataque cardíaco.

Foi quando a situação se repetiu, três meses depois, que eu comecei a me perguntar, despreocupadamente, se os pensamentos não seriam capazes de matar. Nossa senhoria tinha uma suspeição doentia em relação a tudo e a todos, de modo que logo nos vimos envolvidos em violentas discussões diárias. Dois meses depois, ela foi a um médico que lhe diagnosticou um câncer no útero, e ela morreu pouco depois que nos mudamos de sua casa. Lembro-me agora da natureza peculiar daqueles paroxismos de repugnância. Em certas ocasiões, o ódio atingia níveis que, num paranóico, levariam às explosões de violência. Mas a explosão era apenas mental, no meu caso: uma explosão de raiva e ódio, seguida de alívio, como se eu tivesse atirado um tijolo nos vidros de uma janela. Essas explosões mentais eram sempre acompanhadas de uma particular sensação de autenticidade, de realidade. Quero dizer com isso que elas pareciam de alguma forma diferente dos paroxismos da sensação induzida pela imaginação. Não consigo ser mais específico do que estou sendo, mas desconfio de que a maioria das pessoas já teve essa sensação.[30]

Como bem observou João Ribeiro Jr, “quando rogamos uma praga contra alguém e essa pessoa quebra o pescoço, procuramos racionalizar a coincidência até com a ajuda da estatística, mas mesmo assim essa conjunção do desejo e da ocorrência nos impressiona”.[31] A crença no malefício e na sua eficácia é um corolário de um processo pelo qual uma percepção se forma de uma coincidência entre uma ideia e uma sensação, sendo que uma delas (não importa qual) está localizada internamente e a outra externamente.

Colin Wilson conhecia a telepatia – igualmente por pesquisa e vivência –, vindo a concluir que a “transferência” pode ser inconsciente e automática, como linhas cruzadas no telefone. “Isso permite especular se também o ódio não poderia ser transmitido da mesma maneira inconsciente”.[32] Partindo daí ele cunha uma teoria geral segundo a qual o inconsciente constitui uma espécie de depósito de forças que podem manifestar-se no mundo material sob certas circunstâncias, com um vigor que supera tudo que o consciente possa realizar.

Nesses momentos “a personalidade consciente parece tornar-se mais real, firme e decidida, provocando-nos uma sensação peculiar de poder”. Então, se imaginarmos esse mesmo tipo de força sob o comando do poder do inconsciente “começaremos a esboçar uma vaga teoria do ocultismo que evita os extremos do ceticismo e da credulidade”.[33]

O caldeirão do folclore brasileiro já cozinhou este prato. Attilio associa ao “fenômeno do magnetismo pessoal, concentrado na maioria das vezes num simples olhar, que pode ter consequências tanto benéficas como maléficas”.[34] José Rodrigues concorda que existe “uma projeção da energia psíquica – magnetismo animal, tão bem descrito e experimentado por Mesmer” a qual “se atribui uma espécie de psicocinesia”.[35]

Enquanto Wilson e Powys relutavam em confessar que esse é o tipo de coisa que envaideceria um algoz consciente, nossos feiticeiros aprimoravam a técnica até o limite e patrocinavam quadrinhos nacionais que lhes ajudassem a enfeitar o pavão. Nutrindo um complexo cultural que envolve crença, expectativa e probabilidade, o método passa a admitir resultados mais satisfatórios. Resumindo, com a ajuda da propaganda intensiva, o olhado ganha a aparência de uma ameaça verdadeira e injeta o malefício tão bem quanto os remédios florais e a acupuntura beneficiam pacientes crédulos.

 

Artesanato carioca: Árvore com placa “Mocuná, conhecido como Olho de Boi, afasta o mau olhado”.

Notas:

[1]  O historiador André Chevitarese, professor do Laboratório de História Antiga (LHIA) do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais (IFCS), da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) tomou esta medalha como exemplo emblemático dum padrão iconográfico recorrente no mundo antigo: “As primeiras comunidades cristãs apropriaram-se de diferentes esquemas iconográficos, entre os quais, destaca-se aquele modelo de Salomão, representado como um cavaleiro, submetendo o mal. Com a emergência do cristianismo este cavaleiro será Jesus Cristo (BONNER, C. (1950) 210). Verifica-se, em uma longa série de pingentes e medalhas de bronze, os primeiros datados a partir do terceiro século do Império Romano, enquanto os últimos situados no período bizantino, a reprodução deste esquema iconográfico”. (CHEVITARESE, André Leonardo. Reflexões sobre um Tema Polêmico: afinal os Católicos são Idólatras?, p 22-23. – Artigo não publicado, disponibilizado para alunos do IFCS por meio de xerocópia).

[2] BONNER, Campbell. Studies in Magical Amulets: Chiefly Graeco-Egyptian. Michigan, Ann Arbor ∙ The University of Michigan Press, 1950, referência nº 298.

[3] OS OLHOS. Em: Homem Mito & Magia. São Paulo, Três, 1973, fascículo 26, p 520.

[4] Hyperlink do anunciante da estatueta branca com olhos vermelhos, no Mercado Livre, acessado em 18/03/2018. <https://produto.mercadolivre.com.br/MLB-901005545-imagem-exu-mau-olhado-escultura-100-em-gesso-estatua-_JM>.

[5] MILONE, Attilio. Livre-se do Olho Grande. Rio de Janeiro, Fratelli, 1985, p 72.

[6] LEVI, Eliphas. Dogma e Ritual da Alta Magia. Trad. Rosabis Camaysar. São Paulo, Pensamento, 1997, p 355-354.

[7] COSTA, José Rodrigues da. Como Combater Olho-Grande. Rio de Janeiro, Pallas, 1991, p 10.

[8] MILONE, Attilio. Obra citada, p 43.

[9] COSTA, José Rodrigues da. Obra citada, p 40.

[10] COSTA, José Rodrigues da. Obra citada, p 13.

[11] COSTA, José Rodrigues da. Obra citada, p 27.

[12] COSTA, José Rodrigues da. Obra citada, p 27.

[13] MILONE, Attilio. Obra citada, p 30.

[14] MILONE, Attilio. Obra citada, p 33-34.

[15] MILONE, Attilio. Obra citada, p 35.

[16] TOMPKINS, Peter e BIRD, Christopher. A Vida Secreta das Plantas. Trad. Leonardo Frós. São Paulo, Círculo do Livro, p 377.

[17] TOMPKINS, Peter e BIRD, Christopher. Obra citada, p 41-42.

[18] TOMPKINS, Peter e BIRD, Christopher. Obra citada, p 32.

[19] TOMPKINS, Peter e BIRD, Christopher. Obra citada, p 32.

[20] HEYDECKER, Joe J. Fatos da Parapsicologia: Introdução às ciências ocultas. Trad. Edith Wagner. Rio de Janeiro, Freitas Bastos, 1984, p 93.

[21] MILONE, Attilio. Obra citada, p 35.

[22] MILONE, Attilio. Obra citada, p 29.

[23] FIGUEIREDO, Gilherme. Tratado Geral dos Chatos. RJ, Civilização Brasileira, 1962, p 19.

[24] MILONE, Attilio. Obra citada, p 30.

[25] HEYDECKER, Joe J. Obra citada, p 93.

[26] LEVI, Eliphas. Obra citada, p 355-356.

[27] MILONE, Attilio. Obra citada, p 32-33.

[28] POWYS, John Cowper. Autobiography, p 480. Em: WILSON, Colin. O Oculto: Vol 1. Trad. Aldo Bocchini Netto. Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1991, p 28.

[29] WILSON, Colin. O Oculto: Vol 1. Trad. Aldo Bocchini Netto. Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1991, p 27.

[30] WILSON, Colin. Obra citada, p 27-28.

[31] JÚNIOR, João Ribeiro. O Que é Magia. São Paulo, Brasiliense, 1982, p 31-32.

[32] WILSON, Colin. Obra citada, p 27.

[33] Colin Wilson escreveu que a melhor “explicação fenomenológica racional” que ele conhece para esse caso se encontra numa história de ficção científica intitulada Forbidden Planet, de W. J. Stuart, em que uma expedição científica procura descobrir o motivo da destruição de todas as expedições anteriores a um planeta distante: “Trata-se de livro a ser lido por todos os que se dedicam à psicologia fenomenológica. Por intenção do autor, pode ser que seja ficção científica, mas provavelmente chega mais perto da verdade a respeito da mente humana do que Freud ou Jung”. — Conforme sua sinopse, o único homem capaz de viver em segurança no Planeta Proibido é um velho cientista chamado Morbius. Ele informa que as outras expedições foram destruídas por uma espécie de monstro invisível e indestrutível. Morbius dedica-se ao estudo dos resquícios de uma antiga civilização do planeta – seres que haviam possuído o poder de amplificar seus pensamentos, o poder de “intencionalidade”, de modo que as imagens mentais fossem projetadas como realidade exterior. No final da história, Morbius descobre o que destruiu as expedições anteriores. Sem que nem de longe suspeitasse, ele também estava amplificando as forças intencionais de seu subconsciente – seu desejo de ficar sozinho no planeta. E este é o “monstro invisível” que destruiu as expedições. (WILSON, Colin. Obra citada, p 119).

[34] MILONE, Attilio. Obra citada, p 11.

[35] COSTA, José Rodrigues da. Obra citada, p 29.

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