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Alta Magia

Querer e calar

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por Raph Arrais

O texto a seguir é parte de um dos capítulos de Artemagia: uma reflexão sobre o Caminho, meu livro recém-lançado, disponível em e-book e versão impressa pelas Edições Textos para Reflexão: raph.com.br/tpr

Boa leitura!


Para ser um mago, é preciso querer.

Mas para querer de verdade, é preciso desvendar o que queremos querer. Sem dúvida desejamos muitas coisas, um sorvete, um novo amor, um carro do ano. Todavia, é preciso identificar ao que, em nós, tais desejos servem: ao corpo, a mente, a uma ideologia de vida, a um senso estético, à perpetuação da espécie? Ora, a única forma de saber de onde surgem nossos desejos é olhar para dentro, é conhecer quem diabos nós somos afinal de contas.

Conhece-te a ti mesmo e conhecerás os deuses e o universo.

(Frase inscrita na entrada do templo de Delfos)

É somente pela observação de nosso próprio pensamento que teremos condições de, ao poucos, perceber de onde este ou aquele desejo surgem. Em grande parte dos casos, veremos também que muitos deles servem mais como grilhões a atravancar nosso avanço no Caminho Espiritual do que qualquer outra coisa. Decerto precisamos de algumas coisas para sermos relativamente felizes na vida, mas muitas outras, que também costumam ocupar nossa lista de desejos, servem mais como uma fonte de infortúnios, embora só o percebamos devidamente ao parar e refletir sobre elas.

Segundo os antigos magos-pensadores gregos, como Epicuro, há coisas que são de fato naturais e necessárias para a felicidade, como ter uma casa para morar, alimentação adequada, roupas para vestir, amigos para desfrutar, liberdade de ir e vir e a própria reflexão advinda da filosofia. Já outras, que fazem parte do mundo concreto, são absolutamente desnecessárias para a felicidade, como ter uma mansão, se empanturrar em banquetes, ter um séquito de empregados etc. E ainda há outras que são meras abstrações, não são nem concretas nem tampouco necessárias para a felicidade, como a busca pela fama, status e poder político.

Seguindo a essência de tais ensinamentos, podemos imaginar nossa felicidade como um copo onde é necessário haver alguma água, talvez até pouco menos da metade, para que tenhamos alguma felicidade. Esta água corresponde a termos moradia, alimentação adequada, e algumas roupas para o convívio social básico. Dali em diante, podemos aumentar nossa felicidade na medida em que enchemos o copo com alguns luxos a mais, como uma alimentação mais elaborada, uma casa mais espaçosa e bem decorada etc. No entanto, de nada adianta continuarmos enchendo o copo indefinidamente: a água vai simplesmente transbordar, e a nossa felicidade continuará inalterada.
Assim, se associarmos a água deste copo às nossas riquezas materiais, nós veremos que a partir de certo limite, um limite bem menor do que costumamos imaginar, o mero acúmulo de bens não nos garantirá mais felicidade alguma. Portanto, é compreensível que certos caminhantes façam uso da magia para encher um pouco mais um copo que estava meio vazio, ou meio cheio, mas é ridículo ver autoproclamados magos com seus copos transbordando, e crendo que avançarão no Caminho os enchendo ainda mais. Pelo contrário: ficarão tão somente mais e mais pesados, até encalharem de vez na estrada.

É preciso ter a alma leve para avançar na jornada, é preciso que nossos desejos materiais se reduzam a uma pequena bolsa atada na ponta de nosso cajado. É preciso ser um louco maltrapilho aos olhos do mundo, para só então nos tornarmos legítimos exploradores dos territórios da alma. É preciso remover as barreiras que nós mesmos colocamos ao redor de nosso coração, para saber enfim o que a alma quer.

Em cada caso há um chamado diferente, pois só a alma é capaz de ouvir a voz silenciosa do Mistério, que quando muito sussurra, e tal sussurro se torna o entusiasmo de uma vida inteira. Mas o que podemos afirmar é que em cada alma há a necessidade de realizar uma obra específica, e é por isso que cada mago tem um lugar e uma função específica no mundo. Seria leviano aqui tentar lhe dizer qual é a sua, mas voltaremos a falar sobre isso mais adiante.

Então, para não lhe deixar de mãos vazias, o que posso dizer é que todo mago compartilha ao menos deste desejo: de, ao abandonar este mundo, deixar a vizinhança um pouco melhor do que quando chegou. Para isto sim, vale seguir no Caminho. Seguir até o próximo cume de montanha, alcançá-lo, e calar.

Para ser um mago, é preciso calar.

Há um antigo ditado, dito por um mago-sábio, que afirma que “não devemos jogar pérolas aos porcos”. Ele tem, em geral, sido interpretado num sentido de que os ignorantes não são dignos das pérolas da sabedoria, pois que não saberiam apreciá-las. E isto está bom, não quero discordar dessa conclusão, mas adicionar algo mais a ela: e se os porcos se engasgarem com as pérolas, e se o seu estômago não for habituado a sua digestão, e se, enfim, elas fizerem a eles mais mal do que bem? Neste caso, não jogar pérolas aos porcos não significa nos julgarmos superiores aos ignorantes, nem mesmo que eles não são merecedores da sabedoria, mas sim considerar que na natureza tudo se dá passo a passo, estação após estação, de modo que nem nós mesmos (nem absolutamente ninguém) fomos capazes de abandonar a escuridão da Caverna da noite para o dia.

Assim, um dos motivos do calar é justamente este: considerar que nem todos estão preparados para ouvir, tampouco compreender, certos assuntos da alma. Além disso, em todo caso seria impossível fazer o cego compreender a cor vermelha, ou a verde, ou qualquer outra; e, da mesma forma, se um caminhante subiu no cume de uma montanha e achou uma flor rara e desconhecida, ou mesmo uma sarça ardente, de nada adianta descrevê-la em minúcias a quem ficou nos vales e nas terras de baixo, pois as palavras não dão conta de abarcar a experiência que é própria da alma.

Quando Deus é tão bom para os campos, de que uso são as palavras – essas pobres cascas de sentimento! Não há como passar para o papel a glória etérea das coisas!

(John Galsworthy, em Ventura [Felicity])

Mas calar não significa abandonar os ignorantes a própria sorte, e se fechar num pequeno círculo de “magos conhecedores”. Decerto no passado houve bons motivos para os magos se ocultarem dos olhos inquisidores e punitivos de uma sociedade doentia, que mandava para a fogueira quem não via o seu deus com os mesmos olhos, nem seguia seus dogmas sem questionar. Mas não mais: hoje, ao menos, vivemos numa era onde o conhecimento, todo o conhecimento, pode ser livremente compartilhado. E, desde que nossas palavras não diminuam ou encarcerem a liberdade alheia, elas podem e devem rodar o mundo.
Portanto, calar não quer dizer jamais tocar no assunto, mas tão somente abordar certos assuntos nos momentos adequados, de acordo com a plateia, e não porque os magos que já alcançaram o topo de um monte sejam superiores aos que preferiram ficar nos vales, mas sim porque há certos temas que, longe de auxiliam no dia a dia da vida nas planícies, irão apenas causar confusão e angústias desnecessárias. E ouça quem tiver ouvidos para escutar, mas que não falemos alto sobre as coisas que grande parte da multidão não quer ouvir falar, nem buscar compreender.

Dito isso, também há outro aspecto do calar que vale ser mencionado, e que diz respeito àqueles magos que, de tanto escalarem os cumes mais inacessíveis aos demais, acabaram se tornando mestres da Arte, cujo exemplo e conselho auxiliam imensamente todo e qualquer caminhante. O que falarei a seguir, no entanto, não deve ser entendido como um conselho ou advertência a eles, que não precisam de conselho nem advertência, mas sim aos demais, que ainda não alcançaram a maestria.

Anos atrás, conheci um autoproclamado mestre de uma vertente mística do judaísmo. Ele me foi apresentado por outros amigos de uma comunidade de magos e artistas em geral. Era muito carismático, afável, até mesmo encantador. Sua fala era mansa, e de seus lábios costumavam sair muitas palavras que giravam em torno do amor. Vou chamá-lo de Chico, embora não seja seu nome real (e, para falar a verdade, eu nunca soube o seu nome real). Pois bem, eventualmente eu e Chico começamos a trocar mensagens eletrônicas, uma vez que ele conheceu meu blog e alguns dos meus textos sobre espiritualidade. Num belo dia, ao ler uma de suas mensagens, reparei que ele começou a assinar assim:

Do seu rabi, Chico.

“Rabi”, abreviatura de rabino, vem do judaísmo e pode ser lido como “professor”, mas em certos contextos também como “mestre”. Em todo caso, Chico não era meu professor nem meu mestre – veja bem, não haveria problema algum se ele fosse, se eu estivesse por acaso matriculado em um de seus cursos, mas não estava, e aquilo me deixou com uma pulga atrás da orelha.

Tempos depois, os mesmos amigos que tinham me apresentado o “rabi” me alertaram para o fato de ele talvez não ser quem proclamava ser. Para resumir a história, eventualmente se descobriu que ele nunca havia estado em Israel, que passava longe de ser algum rabino real, que nem mesmo tinha se apresentado com seu verdadeiro nome, e que não morava onde dizia morar. No fim das contas, Chico havia se dado o trabalho de toda aquela encenação apenas para poder seduzir algumas jovens desavisadas e extorquir um dinheirinho aqui e ali. A moral da história é esta:

Nenhum mestre chama a si mesmo de mestre.

Nenhum mestre chamaria a si mesmo de mestre, ao menos não para um total desconhecido. Ainda que carregue consigo segredos imemoriais, poderes quase sobrenaturais, conhecimentos ocultíssimos, um mestre se faz mestre por reconhecer que sempre haverá muitos discípulos no Caminho, e ele mesmo talvez jamais deixe de ser um. O objetivo de um genuíno mestre não é reinar acima de uma turba de discípulos ignorantes, mas antes torná-los melhores, quiçá tão “mestres” quanto ele próprio – ou ainda mais sábios!

Assim, um mestre pode até aceitar ser chamado de mestre, ser reconhecido como mestre, mas tão somente pelos discípulos que aceitou educar na Arte e no Caminho. Para todos os demais, ele seria tão mestre quanto um mestre na arte da carpintaria é mestre de um padeiro ou um motorista de ônibus.

Mas a verdade é que o único mestre que nós, caminhantes, temos, é a natureza em si, são as brisas que movimentam levemente as folhas das árvores à beira da estrada, e que se originam no hálito do Mistério. E, sobre isso, é preciso calar.


Saiba mais sobre o autor em raph.com.br

Obs.: Texto destinado ao site Morte Súbita inc

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