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Alquimia

Rainha de Copas

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Shirlei Massapust

Em dado momento do enredo da franquia JoJo’s Bizarre Adventure, o personagem antagonista Dio Brando é decapitado e rouba o corpo do herói contra quem lutava. Se virar um monstro de Frankenstein feito de partes do self costuradas em sua sombra é encontrar a plenitude ou o domínio do delirante universo holográfico, você decide… Lembro de ter lido coisas igualmente bizarras em textos de séculos passados. O romance místico Chymische Hochzeit Christiani Rosencreutz (1616) descreve um casal de reis incorruptos que ressuscita e rejuvenesce bebendo sangue nobre. Eles dormem em caixões exatamente como os vampiros fariam no Drácula de Bram Stoker, séculos mais tarde.

O problema é que a palavra “vampir” nem fazia parte do vocabulário alemão à época. O mito tal como conhecemos hoje é muito recente. Não existia em Württemberg, no ano 1616. Os reis alquimistas foram desfragmentados e recompostos por um grupo de alquimistas auxiliares. Será que isto pode ser classificado como vampiro hoje em dia? Em alguns filmes e revistas em quadrinhos do século XX, derramar algumas gotas de sangue sobre as cinzas de um vampiro fictício era o bastante para iniciar a recomposição do cadáver; mas até o século XIX o folclore europeu não continha relatos de tal proeza exceto, talvez, pela mãe do camponês Dinu Gheorghiṭa que dizem ter sido serrada ao meio em Amărăşti, na Romênia. Essa strigoica se recompôs sozinha, sem ajuda de ninguém.

Então os alquimistas fictícios esquartejaram um vetāla hindu, cozeram no caldeirão grego de Medéia, usaram técnicas cabalísticas judaicas para criar  um golem e o fizeram beber a anima carnis de Paracelsus? Certamente não foi nada disso que aconteceu… Ou foi exatamente isso que ocorreu… Vá entender o mundo das idéias!

A religião grega exortava o povo a crer na feiticeira Medéia e suas magias. Acreditava-se que ela era bisneta de Hélio, o deus Sol (Hesíodo. Teogonia 958-60; Apolodoro 1.9,23; Pínd. Política 4,9-10) e sobrinha de Circe (Odisséia. 10,137). Algumas fontes dizem ser filha de Hécate (Denis de Mileto fr. Tla, Jacoby; Diodoro 4.45,3). Os nomes e destinos de seus filhos com Jasão variam conforme a fonte consultada, mas eles nem sempre morrem pelas mãos da mãe (Pausânias 2.3,9). Na Poética, cap. XV, Aristóteles se queixa de que “o desenredo das fábulas deve decorrer da própria fábula e não, como na peça teatral de Eurípedes, de um mecanismo representado o Carro do Sol.

Na mitologia grega Medéia faz-se de amiga das filhas do rei Pélias e diz ser capaz de rejuvenescer quem ela quiser. Para provar mandou esquartejar um carneiro velho e colocou-o dentro de um caldeirão com uma poção fervente. Em seguida retirou o animal inteiro e saudável. Outros autores sustentam que fez a prova com Éson, pai de Jasão, o que lhe dava ainda mais crédito. As raparigas, excitadas, correram a esquartejar o próprio pai e lançar os seus pedaços dentro do caldeirão. Como é óbvio, não voltou a sair de lá com vida. De acordo com Carlo Ginzburg,

Ao esquartejamento, seguido pela imersão num caldeirão de água fervente, recorre a maga Medeia para rejuvenescer Jasão e matar com uma cilada o tio dele, o usurpador Péleas. Esquartejamento, fervura, recomposição dos membros e ressurreição sucedem-se, como se recordará, na história de Pélope; à imersão no fogo, como meio para assegurar a uma criança a imortalidade, haviam sido submetidos, sem êxito, Demófon e Aquiles.[1]

O tema similar de um carrasco negro decapitando e fatiando o Rei Sol aparece no tratado alquímico Splendor Solis (séc. XVI) de S. Trismosin. Na espada do carrasco está escrito: “Matei-te para que possas ter uma vida transbordante (…), mas esconderei a tua cabeça, para que o mundo não te veja”[2]. Aqui me apresso a dispensar a opinião do psicanalista ou palhaço que venha rir dizendo que mulher não entende uma simples metáfora sobre o sacrossanto ato de despetalar a rosa fétida, afogar o ganso, fazer tchaca tchaca na butchaca ou – conforme professa a sabedoria do papo reto dos morros cariocas – foder gostoso.

Isso é verdade sim, mas as alegorias alquímicas, assim como a cabala, possuem múltiplos sentidos. Quando a intenção é aprender metalurgia e ganhar dinheiro, nos antigos documentos alquímicos o corvo ou homem a ser decapitado não é um ser vivo de verdade, mas sim uma forma antropomorfa do enxofre liberado pelo aquecimento do sulfeto de arsênico impuro.

Após ser atingido por um raio o tintureiro persa Hashim ibn Hakim se sentiu tocado por uma força suprema. Crendo ser um eleito de deus ele mudou de profissão, virou profeta e chegou a liderar um exército numa suposta guerra santa de muçulmanos contra muçulmanos. Conforme testemunhos do califado abássida, Hashim ocultava o rosto porque perdeu um olho e nunca mais cresceu cabelo na parte queimada da cabeça. Jorge Luis Borges parafraseou a narrativa fantasiosa do cronista Ibn abi Tair Tarfur, em sua História Universal da Infâmia:

O homem do deserto disse-lhes (…) que era Hákim, filho de Osman, e que no ano 146 da Emigração entrou um homem em sua casa, o qual, depois de purificar-se e rezar, lhe cortou a cabeça com um alfanje e levou-a para o céu. Sobre a mão direita do homem (que era o anjo Gabriel) a cabeça esteve diante do Senhor, que lhe impôs a missão de profetizar e inculcou palavras tão antigas que sua repetição queimava as bocas e lhe infundiu um glorioso resplendor não suportado por olhos mortais. Tal era a razão da Máscara.[3]

Impossível não lembrar do vaticínio do sábio Dubane, personagem dum conto nas Mil e Uma Noites, sobre outra cabeça profética:

Possuo, entre outras obras, uma intitulada Da Particularidade das Essências. Estou disposto a presenteá-lo com ela e sei que figurará num lugar de relevo entre seus tesouros. (…) Eis, não obstante, o primeiro segredo que o senhor poderá nele encontrar: Se mandar que me cortem o pescoço e abrir em seguida essa obra na sexta página, bastará que leia as três últimas linhas transcritas no lado esquerdo da página em questão e, depois disso, me dirija a palavra, para que veja minha cabeça começar a falar e responder suas perguntas. (…) Segure este livro e não o abra. Quando minha cabeça estiver separada do corpo, ordene que ela seja colocada sobre este prato, em contato com o pó, até constatar que meu sangue já não flui. Abra então o livro, e minha cabeça responderá a todas as perguntas que o senhor lhe fizer.[4]

Quando soube que fora condenado à morte o feiticeiro Dubane idealizou a vingança contra o rei, que morreu folheando um livro envenenado. Mesmo assim a mágica funcionou e a cabeça do personagem decapitado falou.

Tem gente que jura que viu a mágica acontecer e descobriu como era feita. O Pequeno Alberto é um desses livros cheios de embustres e receitas de magias esdrúxulas, publicados em anonimato para evitar sanções legais em tempos de perseguição e censura severa. Este livro seguramente já existia em 1695. Seu autor narra uma visita a Lille, em Flandres, onde viu um mágico fazendo uma mesa quadrada apoiada em cinco colunas. A coluna do meio era um cano disfarçado de madeira que entrava pelo chão e saía numa bacía de cobre furada sobre a qual estava a cabeça duma estátua de São João, oca, com a boca aberta. Havia um porta voz que passava através do chão do quarto no andar de baixo de modo que uma pessoa, falando através da engenhoca, era distintamente ouvida no gabinete acima, pela boca da cabeça.[5]

Referências:

[1] GINZBURG, Carlo. História Noturna: Decifrando o sabá. Trd. Nilson Moulin Louzada. São Paulo, Companhia das Letras, 1991, p 231.

[2] ROOB, Alexander. Alquimia & Misticismo. Trd. Teresa Curvelo. Itália, Taschem, 1996, p 211.

[3] BORGES, Jorge Luis. História Universal da Infâmia. Trd. Flávio José Cardozo. Rio de Janeiro, Globo, 1988, p 36-41.

[4] NAVARRO JR, Jesse e GOMES, Márcia de Melo (org). As Mil e Uma Noites: Damas insignes w servidores galantes. São Paulo, Brasiliense, 1990, p 141-142.

[5] HUSSON, Bernard. O Grande e o Pequeno Alberto. Trd. Raquel Silva. Lisboa, Edições 70, 1970, p 377.

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