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O processo de sacralização do malandro e a ressignificação da personalidade histórica

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PEDRO GUIMARÃES PIMENTEL

O culto da Umbanda, difundido no Brasil desde as décadas iniciais do século XX, configura-se, mais do que qualquer outro, na singularidade de sacralizar agentes históricos1 simultâneos à sua prática. Este é o caso que verificamos ao analisar, por exemplo, a presença de malandros no seu panteão que, em certos momentos, ‘coexistiam’ com suas referências históricas. A categoria social dos malandros, personagens tipificados do início até meados do XX – capoeiras, sambistas, freqüentadores de bares e cabarés – permaneceram por algum tempo em contemporaneidade com suas versões sagradas: os espíritos de malandros. Esta dupla existência, no que diz respeito à elaboração da memória, é de fundamental importância para o entendimento que temos hoje acerca desses agentes, de suas versões profanas ou sagradas.

Entretanto, não é exatamente esta coexistência a responsável pela sacralização desses personagens. Este fenômeno, entendido como um processo, envolve conflitos e limites, por vezes não muito bem nítidos, impostos aos saberes elaborados, às temporalidades do retorno sagrado e ao significado das características profanas dos personagens. Tal processo, portanto, é reconfigurador da identidade dos agentes de modo que as permite assumir o sagrado. Ou seja, para que tenham relevância no culto e possam participar das atividades religiosas, tais como a cura e o auxílio aos consulentes, precisaram transformar suas cargas psicossociais ‘profanas’ e se adaptarem as práticas rituais e a normatização religiosa da Umbanda.

A intenção deste estudo é investigar, em linhas gerais, o modo pelo qual se deu esse processo para os malandros2. Para tanto, serão analisados os “pontos cantados”3 das entidades, em comparação com certa documentação disponível acerca da dimensão profana das mesmas. Com efeito, os próprios pontos cantados são reveladores das atividades cotidianas dos espíritos ainda “em vida”, ou da categoria social que fora sacralizada pela prática umbandista. As referências profanas advêm dos estudos sociológicos e históricos acerca de personagens como sambistas e outros malandros do início do século passado4. Destaca-se, ainda, que o autor que vos fala é um praticante do culto umbandista, valendo-se de suas próprias experiências como uma das fontes a partir das quais se procura historicizar as dinâmicas presentes na religião5.

No decorrer de nossa análise, procuraremos demonstrar como que discursivamente podemos compreender o processo de sacralização dos agentes em questão. Esta não é uma análise de uma singularidade factual numa dimensão antropológica do acontecimento ou do evento, muito menos supõe um fato social total da categoria dos malandros nos diversos cultos umbandistas no país. No entanto, reúne e investiga os possíveis saberes elaborados por sua presença no culto. Deste modo, propormos a argumentação que se segue como uma das possibilidades de entendimento da trajetória de sacralização do personagem. Isto significa que não é nossa intenção destacar os aspectos singulares das relações estabelecidas por cada agente histórico (como os diversos praticantes, assistentes, fieis e simpatizantes espalhados nos diversos terreiros de culto) com os espíritos dos malandros, mas sim compreender como este novo saber constituído, por assim dizer o “religioso” (que pode sim estar difundido em diversas localidades mesmo que mantenham suas singularidades) lida com aquele outro que é de maneira geral um “conhecimento comum” expresso nas mais diversas manifestações culturais e que não possui necessariamente um marco fundador, um autor específico, ou uma data de nascimento.

A memória social dessas figuras, ressiginificadas pela Umbanda, e expressadas no conteúdo dos pontos cantados, é objeto base para a investigação. O conjunto de cantigas rituais – chamamento, louvação e “partida” – é um todo discursivo que dá contornos específicos às entidades presentes no culto, configurando-se como parte da atividade e da própria persona do espírito. Por sua dimensão oral, sem muitos registros específicos de autores, datas e locais de criação, os pontos cantados criam uma aparência de atemporalidade, transfigurando-a na longa duração de uma memória específica sobre tal ou qual indivíduo. É exatamente isto que ocorre com a idéia que se tem sobre os personagens em questão. A permanência e a repetição dos pontos cantados, espacial ou temporalmente, criam certa imobilidade no saber constituído, fixando suas raízes. Com efeito, as fontes selecionadas para a construção desta pesquisa, apesar de estarem dispersas em diversas localidades, podem ser reunidas de modo a tornar inteligível o processo de sacralização destes agentes históricos. Como ressaltado em outras passagens, a análise aqui elaborada se dá no plano do discurso, ou seja, nas narrativas feitas acerca desses agentes em suas dimensões “profanas” ou “sagradas”. Deste modo, nosso objetivo não é compreender pela metafísica ou abstração a estruturação da categoria espiritual dos malandros; o discurso acerca deles é nossa dimensão do concreto, já que é um ato humano, uma práxis e não está, de maneira nenhuma, descolada da realidade e do devir.

Para efeitos da investigação histórica desse artigo, pretende-se apropriar dessa noção para elaborar uma escrita criteriosa, atenta para as vicissitudes que a memória traz consigo, tanto para os acontecimentos e processos, quanto para as análises destes. É objetivo, pois, construir um relato que forçosamente escape da linearidade cronológica dos acontecimentos. Trabalhar os dados de forma que se possa avançar e retroceder no tempo, sem, no entanto, causar prejuízos anacrônicos. É, em suma, um esforço de criar uma teia compreensiva que coadune o fato em si, seu processo, sua historicidade, suas conseqüências a curto, médio e longo prazo, e suas expectativas indeferidas. Uma liberdade de ir e vir temporalmente, sem perder, todavia, sua singularidade enquanto ação. Creio que o estudo da memória permite tal análise. Os caminhos pelos quais ela passa, seus despejos e resgates de informações e entendimentos são facilitadores da inteligibilidade do ocorrido. Michael Pollak já advertia que

“a memória, essa operação coletiva dos acontecimentos e das interpretações do passado que se quer salvaguardar, se integra em tentativas mais ou menos conscientes de definir e de reforçar sentimentos de pertencimento e fronteiras sociais entre coletividades de tamanhos diferentes” (POLLAK, 1989, p.11).

Por este motivo, as marcas que advém de sua elaboração são marcas de conflitos entre indivíduos, entre grupos, entre classes. A configuração de uma categoria sagrada por parte de um culto, por exemplo, é reflexo de uma tentativa de salvaguardar a representatividade que se tem acerca daquela categoria social. É desta forma que os pontos cantados se fazem como produto, normalmente inacabado, do conflito por esta memória. Neste sentido, devemos entender que sua elaboração não é estanque, nem determinada ao acaso. O suposto limite, imposto pelo fim do discurso, é rompido pela inserção deste último numa rede bem ampla de conformações sociais.

Como orienta Foucault,

“a produção do discurso é simultaneamente controlada, selecionada, organizada e redistribuída por certo número de procedimentos que têm por papel exorcizar-lhe os poderes e os perigos, refrear-lhe o acontecimento aleatório, disfarçar a sua pesada, temível materialidade” (FOUCAULT, 1971, p.2).

Assim sendo, a leitura dos pontos cantados não pode ser feita de modo a supô-los unívocos em sua totalidade e isentos de uma intencionalidade que tem a ver, certamente, com a oposição ou concordância àqueles outros discursos, que não são tão aparentes, mas que sabemos existir. Estes outros, por sua vez, têm fundamentações próprias, também não livres de recombinações com os primeiros – ou com terceiros – e que sua presença aparece implícita naqueles que nos propomos investigar.

Especificamente, para efeitos da análise acerca da sacralização dos malandros esses pontos cantados “atestam um exercício vivo e constante de mythopoiesis, isto é, de criar o mito das entidades a que se referem através das letras dos cânticos a elas dedicados” (CARVALHO, 1998, p.4), permitindo a observação, portanto, da trajetória que ressignificou o cotidiano dos agentes históricos e conferiu-lhes funções sagradas no culto da Umbanda6. O caminho mitológico e sacralizante, percorrido por esta categoria social até tornar-se categoria espiritual foi efetuado, necessariamente, pela imposição de algum sistema/mecanismo da prática umbandista: resumido na expressão “Lei de Umbanda”, esta norma é responsável pela remodelação psicossocial do agente, que abandona sua dimensão profana e assume a sagrada.

É importante destacar, contudo, que a linha que separa o profano do sagrado é extremamente tênue quando supomos, por exemplo, os diversos tipos de sacralização pelos quais passam variados indivíduos ou objetos. Com efeito, o que aqui entendemos por esta separação é aquela efetuada pela “lei”, no que diz respeito ao impacto social que causa a figura de um de um malandro, devido a suas marcas identitárias e atividades realizadas nos diferentes espaços que ocupa, enquanto categoria social e espiritual. A normatização imposta pelo espaço sagrado do culto é o que delimita, portanto, a sacralidade de uns ou de outros agentes.

Esta dimensão é definida, ainda, por aquilo que Mircea Eliade chama de hierofania, termo que “exprime apenas o que está implicado no seu conteúdo etimológico, a saber, que algo de sagrado se nos revela” (ELIADE, 1992, p.13). A manifestação das entidades sagradas do panteão umbandista é detentora, todavia, de uma particularidade: pela prática repetitiva da presença dos espíritos no culto, supõe-se certa eternidade. Ou seja, a cada recorrência da presença de um espírito “em terra”, que vêm para dar a assistência necessária aos fiéis, espera-se mais uma. Desta forma, a sacralidade do agente não é um fato delimitado num tempo-espaço que já ficara no passado, mas é um processo que reincide a cada culto, efetuando-se imperiosamente no presente e, por este motivo, impede que o saber configurado acerca dos personagens em questão seja recortado de forma definitiva.

Entre a essência e as aparências

Esta é uma tentativa teórica de aludir o malandro – enquanto personagem inserido numa categoria mental, numa social e por fim numa espiritual – numa teia de representações, simbolismos e imaginários que o situam em etapas distintas de um caminho que concorre para uma essência e variadas aparências. Falar em essência é supor que há, intrinsecamente, algo que o defina de uma só vez. É exatamente esta a prática que se nos revela no rito elaborado pela Umbanda para o retorno espiritual – mítico, memorialísitco e histórico – de uma categoria social, já diluída. É muito provável que em época de sua inserção no culto ainda existisse enquanto personagem individualizado, o que poderia ter garantido maior fidedignidade à representação sagrada do malandro. O que sobrevive hoje é, portanto, aquela criação inicial da categoria espiritual. Claro que esta criação, como já indicado, é redefinida a todo o instante em que o malandro “baixa” no terreiro para atender a uma nova demanda. Não será possível nesta investigação, e suponho que em investigação nenhuma, analisar o momentum da criação, apreendendo o número máximo de imposições e caracterizações que desenharam aquele tempo primordial, de elaboração da categoria. Mesmo porque não haveria necessidade para tal. Resgatar o momento em si é uma alucinação já abandonada pelos historiadores7, mesmo que perdure ainda em algumas mentes remanescentes do pensamento arcaico8.

A força com a qual sobrevive uma categoria dos malandros – a espiritual

– demanda que o estudo parta do presente para o passado, ou melhor, de um questionamento impulsionado pelo agora para a historicidade do fenômeno. Isto não significa incorrer numa teleologia que determinaria a inevitabilidade da elaboração de tal categoria, já que a gama de escolhas, e nossa capacidade reduzida de abarcar todas numa investigação e num posterior ensaio, limitam e deslegitimam um esforço meteórico como este. O que nos resta é conceituar, a partir do que se nos revela pelo discurso sagrado – majoritariamente dos pontos cantados – o que se fundamenta como uma divergência entre uma essencialidade e variadas atitudes concernentes ao momento e ao espaço específico. Desse modo, os pólos de práticas do malandro – enquanto agentes vivos – ganham em complexidade teórica, ao invés de encaixá-los forçosamente numa linha imaginada de uma cronologia coerente e lógica. Todo empreendimento neste sentido esbarraria numa apropriação reducionista do objeto que tende por desconectá-lo da sua memória, da sua historicidade, e, principalmente, da ação imperiosa da indagação, que é presentista. Assim sendo, não traçaremos aqui uma trajetória evolucionista da transformação do malandro profano em malandro sagrado. Mesmo por que, como ressaltado em passagens precedentes, a dualidade existencial de duas – ou três – categorias (sociais e espirituais) interdita tal método.

Entretanto, não  poderá  ser  abandonado  por completo  o  problema  doevolucionismo, já que este é um conceito que está no bojo da sacralização do personagem. Não é nossa intenção neste estudo responder à pergunta do por que da transformação epistemológica do malandro, mas por enquanto discernir o modo pelo qual o malandro se torna sagrado, e deste modo responder à pergunta como. Sendo assim, indicar a “força” – por falta de termo mais adequado – que o sacraliza é fundamental. O retorno espiritual do malandro (mesmo que sem um diagnóstico dos seus motivos) tem um propósito. A

Umbanda acrescenta um detalhe importante à máxima do kardecismo: a possibilidade de, antes mesmo de reencarnar, evoluir espiritualmente. Em realidade, o kardecismo já contem esta estratégia nas orações e nos atos de “dar luz” aos espíritos desencarnados. Mas a Umbanda impõe uma nova tática nesta questão, que é a de espíritos ainda não totalmente iluminados – porque se o fossem não retornariam mais – manifestar-se em Terra. A hierofania que caracteriza o culto umbandista é de tal forma que é possível sensibilizar-se9 com a manifestação do sagrado através de variados modos, já elencados por Kardec10. A Umbanda acrescenta, ainda, em sua reminiscência de tradições africanas, um rito mais ampliado e mais festivo, com a presença de cânticos, roupas, cheiros, fumaças, bebidas e comidas. Cria um cenário mais complexo em que cada item ganha em complexidade, permitindo que estes mesmos sejam percebidos em toda sua capacidade de trazerem consigo um pedaço do sagrado. Neste sentido, o chapéu usado pelo malandro (incorporado) é sagrado, assim, como sua gravata vermelha, sua bengala, sua camisa, seu sapato, sua cerveja, sua farofa e seu cigarro. Todos estes são objetos que fazem parte de uma hierofania ampliada – não só sócio-temporal – mas idiossincrática. Cada parte tem sua relevância no todo, e não pode ser retirada, com o risco de prejudicar à própria manifestação e atuação do todo. O malandro, assim como as outras entidades, é um todo que inclui vestimenta, apetrechos, acessórios, canção, ritmo, público, demanda, espaço, tempo, porquês e pra quês.

É  este ‘todo’ que a Umbanda tenta induzir como a essência do personagem – a prática do Bem – restando às outras manifestações (profanas) o caráter de aparências, reduzidas a um aspecto, não de mentira, falsidade ou inverdade (o que poderia assumir a ideia de nulidade), mas, em referência ao próprio manejo social dos malandros, de engodo, subterfúgio11. O malandro – tipo social – ou teria se camuflado o tempo todo ou estaria ele mesmo ignorante de sua missão no mundo. Exemplo disso é um blog12 que publiciza o que seria uma declaração psicografada de Noel Rosa, pela qual se “arrepende” de sua vida de boêmio, carnavalístico, sedutor e mundano. Teria ele encontrado, então, através da doutrinação espiritual, a sua verdade. Seu passado, sua vida terrena teria sido, pois, um estágio de provação, o qual, inevitavelmente, precisaria cumprir para alcançar a Luz.

A essência, por fim, seria a missão na Terra, sua derradeira aparência13. E a própria vida, enquanto encarnado, uma das aparências. O malandro samba entre elas, até mesmo entre seu lado bom e mau no seu aspecto profano. Sua memória “desguia-se” junto. Quando se fala em malandro remete-se a inúmeras memórias que sobrevivem juntas, tendo a espiritual ganhado destaque. Acresce- se ainda um temor, principalmente por parte daqueles que desconhecem a Umbanda, (mas até mesmo por aqueles que a entendem), em relação à figura do personagem em questão, já que seu outro lado da memória – a profana – guarda uma grande carga de conscientização e é, sobretudo, uma das principais formuladoras da memória e prática sagradas.

Sobre este aspecto – o da formulação da consciência acerca de um objeto

– é preciso tecer algumas considerações. A capacidade de imaginação não deve ser encarada exaustivamente como fantasia ou alienação. Ela é, em verdade, constitutiva da realidade humana. O ponto de partida, pelo qual se realizam os objetos. Em suma, como propõe Castoriadis14, é formuladora da psique, da sociedade e da história, sem termos a possibilidade de desmembrá-las. Portanto, o malandro – seja ele profano ou sagrado, seja a visão que tem de si, ou que o alter faz dele – não é uma alucinação produzida por si mesmo, ou por seus contemporâneos (hoje, fiéis), mas uma resposta corporal e cultural às vicissitudes que se lhe apresentam. Nietszche já definira – em tom de provocação, mas com uma substantividade irrefutável – que precisamos da arte para suportar a verdade. Todavia, a arte é real e não-falsa, pois produto da racionalidade humana. Desta maneira, o que é real também deve ser compreendido com o que é imaginário.

O malandro foi reinventado, não como abstração, mas como parecer diante do julgamento da própria trajetória do(s) indivíduo(s) e da sociedade15.

O homem novo

Chico Buarque, em sua tentativa de homenagear o malandro, já se deparara que “aquela tal malandragem não existe mais”. O compositor (em 1978) se apercebera que o malandro, mesmo morando longe e chacoalhando num trem da Central, passara por algumas transformações. Dentre elas, o compositor destaca a profissionalização – a malandragem como um empreendimento rentável – a politização ‘institucional’ – numa clara sátira aos políticos enquanto transgressores da ética, portanto corruptos – e sua ascensão social, pela capitalização e pelo trabalho. A homenagem merece sua transcrição:

“Eu fui fazer/ Um samba em homenagem/ À nata da malandragem/ Que conheço de outros carnavais/ Eu fui à Lapa/ E perdi a viagem/ Que aquela tal malandragem não existe mais// Agora já não é normal/ O que dá de malandro/ Regular, profissional/ Malandro com aparato/ De malandro oficial/ Malandro candidato/ A malandro federal/ Malandro com retrato na coluna social/ Malandro com contrato/ Com gravata e capital/ Que nunca se dá mal// Mas o malandro pra valer/ – não espalha/ Aposentou a navalha/ Tem mulher e filho/ E tralha e tal/ Dizem as más línguas/ Que ele até trabalha/ Mora lá longe, chacoalha/ Num trem da Central”

Este malandro, mesmo o “pra valer”, teve que se adaptar. A primeira observação é que o narrador falha em sua busca, pois, conclui-se que o espaço que o personagem ocupava já não é mais o mesmo. Agora pode ser Brasília; uma empresa; um espaço “nobre” que o permitiria estar na coluna social do jornal; uma fábrica, um escritório; uma casa, um trem. Já não é aquele que ocupava: preferencialmente as ruas, as rodas de samba, os cabarés e prostíbulos. Em sua jornada transformadora, teve também de se adaptar à ordem. Abandonou a navalha, casou e procriou, procurou/aceitou um serviço, candidatou-se; entrou na lógica da produção, ora enriquecendo, ora batalhando como a massa, mas aderiu ao sistema. Não mais “se dá mal”, trabalha, tem capital, sai até no jornal. Enfim, sua trajetória regeneradora impõe ao malandro que abandone um espaço; ceda à ordem e à lei, se discipline, deixe a violência e a sedução de lado, se case e tenha filhos. E ceda também a uma lógica de utilidade que neste caso é a da produção. Ainda não se pode considerar uma transformação radical do malandro, pois se dá dentro dos possíveis pólos16 já estabelecidos no início do século. De qualquer forma, é um malandro refeito.

O malandro sagrado sofre uma transformação parecida: adapta-se ao culto da Umbanda. Semelhante ao malandro da composição de Chico Buarque, ele modifica sua conduta perante a lei, à ordem, ao trabalho, à violência e à sedução. É também num novo espaço que percebemos sua transformação que, assim como todo o conjunto de atitudes da categoria espiritual dos malandros, é sagrado.

A lei é uma norma sagrada, já referida como sendo a “Lei da Umbanda” que modifica a conduta dos espíritos, reconduzindo-os para um fim objetivo: a prática do Bem, a manifestação do Espírito para a Caridade. O trabalho também ganha status de sacralidade – incluindo aí a prática mágica. “Trabalhar” na Umbanda17 tem a ver com a Caridade, e no caso dos malandros tem, sobretudo, um tom compensatório.

“Se em vida, Zé Pelintra, foi o autêntico malandro, e seguiu à risca, a cartilha de Ismael Silva, uma vez tendo passado para o outro lado, ele se tornou um trabalhador incansável na chamada Lei de Umbanda. (…) Assim sendo, de certa forma, Zé Pelintra não teria alternativa a senão pegar no pesado e vencer as demandas apresentadas pelos consulentes, pois muitos foram seus atos impetuosos e violentos em vida”. (LIGIÉRO, 2004, p. 92)

O trabalho deste malandro sagrado é “forçado” e recompensado com a possibilidade de “pagamento dos pecados”. Não é um trabalho com carteira assinada, mas o salário, os benefícios e as vantagens quem verá é a própria alma, que reduzirá seu tempo de provação. Este malandro, cônscio de sua trajetória profana, obedece a uma nova ordem, que é a da organização espacial do terreiro e a da sua utilidade neste. Seu objetivo é “vencer as demandas apresentadas pelos consulentes”, isto é, amenizar os sofrimentos, seja indicando caminhos, seja realizando o ato mágico da cura. As pessoas que o procuram têm a certeza de que ele poderá resolver seus problemas terrenos, e mesmo os espirituais. Com efeito, o malandro sagrado é repersonificado e disciplinado: ainda tenta seduzir as mulheres quando vem numa gira, mas tem seu intento controlado. Tem ainda sua violência direcionada, que se torna sagrada como todas as outras modalidades da personalidade do agente; normalmente voltada para a cura de um mal, o desfazer de um feitiço, e até mesmo para a reparação de um dano infligido ao consulente, repassando-o a quem o cometera.

Entendemos que os malandros na Umbanda agem enquanto categoria espiritual. Poderíamos aqui nos valer da expressão tipo ideal nos moldes weberianos, mas percebemos que a noção de ideal não dá conta da complexidade dos personagens sacralizados, exatamente por não representarem nada de idealizado, no sentido em que suas ações dependem da demanda e da necessidade dos assistentes, bem como da particularidade da “existência profana”. Assim sendo, a insistência na utilização do termo categoria se dá em concordância com o que Durkheim expõe: “Categorias são conceitos eminentes que desempenham no conhecimento, um marco importante. Com efeito, elas têm por função dominar e envolver todos os outros conceitos; são marcos permanentes da vida mental.” (DURKHEIM, 2003. p.494). O que Durkheim estabelece para os “conceitos” alargamos para os agentes sociais: queremos dizer com isto que categoria social açambarca diversos tipos sociais, ideais ou não. Para o caso dos malandros, os diversos pólos pelos quais deslizam (Linha das Almas e Povo de Rua, por exemplo) estão reunidos numa categoria espiritual que expressa sua especificidade de acordo com a novidade de cada consulta, mas que não escapa da identidade espiritual correspondente para que pudessem ser reconhecidos em outra categoria. É importante destacar ainda que esta noção está baseada (e por isso mesmo é reforçada) nas considerações feitas pelos próprios agentes espirituais quando afirmam, por exemplo, que escolhem uma linha para atuarem: a dos pretos(as)-velhos(as), boiadeiros, exus, pombo-giras, caboclos, etc. Ou seja, estes agentes definem por si próprio como querem atuar no culto espiritualista da Umbanda sem precisarem terem sido realmente índios brasileiros (para o caso dos caboclos) ou escravos idosos (para o caso dos pretos e pretas-velhas), podendo terem desencarnados em momentos mais contemporâneos.

Nas próximas seções veremos como se dá, pormenorizadamente, a atuação sagrada dos malandros, seja pelo trabalho, pelo encantamento, pela violência. Individualizá-los-emos, também, relatando algumas características dos mitos de Zé Pelintra e sua relação com o Catimbó, para, enfim, entendermos que o malandro na Umbanda é um homem novo.

A performance e a trajetória no discurso

A chave para a compreensão deste aspecto é a observação da maneira pela qual o malandro, atuando agora num espaço que é o sagrado, modifica sua conduta em relação ao trabalho, à violência, aos consulentes, aos objetos sagrados e com o novo território ao qual se adapta a todo o momento de seu retorno. Para tanto, os pontos cantados dos malandros são reveladores de sua performance sagrada. Esta se dá numa revisão da identidade que ressignifica o profano e assume o sagrado.

A pergunta que rege a construção metodológica de inteligibilidade para a discussão deste estudo é a seguinte: como o malandro se tornou sagrado? Esta pergunta rege da mesma forma a análise dos pontos cantados, e imputa algumas outras questões: (i) como profano e sagrado se delimitam e entrecruzam no tempo que é o do retorno sagrado?; (ii) Como passado, presente (e futuro) se fundem em tal fenômeno específico? Enfim, aglutinando todas, a partir do que o malandro se transforma, quando (nas temporalidades já discutidas), por meio de que e no que?

Para esta compreensão foi elaborado um quadro analítico, em caráter de esboço, que, sem dúvida, é passível de reformas, mas que serve mentalmente para uma observação que poderia se perder sem o seu uso. No tocante à memória profana, observamos que sua visualização é possível somente referenciando com outros discursos. Segue um exemplo:

Tabela 1. “Análise discursiva de um ponto cantado” (Elaborada pelo autor)

Ponto cantado
Zé Pelintra, no Catimbó É tratado de doutor Quando abre sua mesa Tem fama de rezador
Circulação:
Terreiros de Catimbó e Umbanda, NE, SE, S
Referência:
Centro Espírita Umbandista São Sebastião – Nova Friburgo/RJ, disponível em http://www.umbandadeamor.com.br/site/pontosze.htm. Acessado em 23/04/2010. Sendo possível encontrar em outros sítios eletrônicos que possuem coleções de pontos cantados.
Procedência:
Umbanda e Catimbó(?)
Período:
Meados do século XX
Composição:

Autor desconhecido/ tradição oral

 

Elementos Discursivos:
Memória Profana
Atributos e Qualificações:
“pelintra”? / não era ‘doutor’
Espaço:
Indumentária:
Objetos e acessórios:
Relação com a mulher:
Trabalhos:
Violência:
Temporalidades da Hierofania
Historicidade do processo:
Momento de sacralização não definido, mas inferido pela repetição.
“Antiguidade” do processo:
Desde que foi sacralizado. Tempo mítico coletivo.
Repetição ritual do processo:
“tem fama de rezador”
Repetição ritual da hierofania:
“abre sua mesa”
Eternidade da hierofania:
“quando abre sua mesa”
Suposição de eternidade de todas as repetições:
Toda vez que ‘abrir a mesa’, será tratado como ‘doutor’ e terá ‘fama de rezador’.
Identidade Sagrada
Atributos e Qualificações:
“doutor” ;“rezador”
Espaço sagrado:
“Catimbó”; “mesa”
Indumentária:
Objetos e acessórios:
Relação com a mulher:
Trabalhos:

Cura: “doutor”; “rezador”

Proteção:“Demanda”:

Violência sagrada:

Neste ponto verificamos que Zé Pelintra é sagrado por ser doutor (“é doutor”), por ter fama de rezador (“tem fama de rezador”), por estar “no Catimbó” e por abrir a mesa (“abre a mesa”). Tornou-se sagrado por tornar-se doutor, já que antes não o era. Continuará sagrado por que a cada vez que abrir a sua mesa, e vier no (ao) Catimbó, será tratado como doutor e terá fama de rezador.

Seu retorno espiritual se dá pela prática religiosa contextualizada no Catimbó que é a de abrir a mesa, e cada vez que o fizer terá suas “regalias” de sagrado: ser doutor e ter fama de rezador. No entanto, sua memória profana revela que ele não era doutor, mas tornou-se. Na memória do processo de sacralização encontramos a resposta. Ele está no Catimbó. É um mestre, além de um espírito de um mestre.18 E cada vez que o retorno ritual se der, através da prática religiosa, ele será um “doutor”. Este é um futuro presente19. Ou seja, sua hierofania precisa aguardar até o momento da repetição do ritual. Somente assim poderá manifestar-se como sagrado. A pergunta quando fica respondida pela prática do ritual que é própria do Catimbó e que conta com a presença do espírito que uma vez fora “profano”. Já a pergunta do por meio de que apontamos que é o ato da sacralização do Catimbó, não revelado pelo ponto cantado, mas que sabemos ser a da “iluminação” de um catimbozeiro, mestre, que retorna como tal. Paradoxalmente, portanto, e visualizamos isso através da memória sagrada, Zé Pelintra já vinha sendo um doutor, pelo fato de que sua manifestação ritual não era novidade, realizando-se algumas vezes. Entendemos isto pela expectativa de um futuro que estará presente, ou seja, seu retorno ritual que se dará toda vez enquanto prática religiosa de abrir a mesa, implicitado pelo termo “quando” que remete ao modo gramatical do futuro subjuntivo20. Espera-se então que ele retorne, pelo menos enquanto as mesas forem abertas (talvez ad eternum). E sempre que isso ocorrer ele será doutor, será sagrado e terá uma funcionalidade: praticar a cura.

Enquanto seu retorno não se dá, aguardando a próxima sessão do

Catimbó, ele é uma memória. O ponto cantado cumpriu uma função, qual seja a de transformar a memória acerca do personagem. O ponto é, neste caso, instrumento do ritual, da prática do retorno, e da transformação da memória; a sua sacralização também atende a este último quesito.

Desta forma, confrontando e mediando o entendimento que se tinha sobre o personagem, o ponto (ou o retorno, a prática) revela o novo saber acerca do mesmo21. Antes desprezado e marginalizado pela sociedade, ele tornou-se “doutor”. Ser doutor na época tanto da vida de Zé Pelintra, quanto na contemporânea de seu retorno, tem um alto significado associado com a detenção de conhecimentos que o elevam na posição social, diferenciando daqueles que não sabem ler ou escrever, e “por isso são pobres ou coisa e tal…” Aqui, doutor assume a forma de “médico”, ou melhor, de detentor de conhecimentos similares aos de um médico que permitem praticar a cura. Esta cura não é por meio de intervenções cirúrgicas ou medicamentosas, mas pela reza.

Com efeito, “doutor”, no nosso caso, é um atributo. É uma formalidade, uma respeitosidade atribuída àqueles que estão “um degrau acima” no extrato social. Um patrão pode ser um doutor, assim como um letrado, um político, ou o indivíduo que acabara de entrar num restaurante caro, independentes de suas formações acadêmicas. Ser “doutor” é o que separa o indivíduo da pessoa, como aponta DaMatta (1997). Estar falando com um doutor é saber com quem se fala. Um doutor não é qualquer um.

“No caso do Brasil, tudo indica que a expressão permite passar de um estado a outro: do anonimato (que revela a igualdade e o individualismo) a uma posição bem definida e conhecida (que expressa a hierarquia e a pessoalização); de uma situação ambígua e, em princípio, igualitária, a uma situação hierarquizada, onde uma pessoa deve ter precedência sobre a outra. Em outras palavras, o ‘sabe com quem está falando?’ permite estabelecer a pessoa onde antes só havia o indivíduo”. (DAMATTA, 1997, p.220) (grifos do autor)

Zé Pelintra deixou de ser qualquer um. O ponto analisado refere-se, exclusivamente, (textualmente falando) ao seu lado transformado, a sua dimensão boa (ou para o Bem). O discurso do ponto assumiu, não sem certa ironia – que possibilita a avaliação da cumplicidade de outras vozes sociais – a necessidade de encarar o personagem pela dimensão ordeira, permitida somente pela prática religiosa. Caracterizar de irônica essa ‘aceitação da realidade da ordem’ suscita que as vozes compositoras do discurso sagrado relativizam a importância do tratamento de “doutor”, impondo aos que assistem ao culto que assumam essa respeitosidade para com o Zé Pelintra. Se, em vida, ele poderia ser questionado por quem quer que fosse, agora o leque de tipos sociais que frequentam o Catimbó (e a Umbanda) – mesmo aqueles representantes da ordem, moralistas e puritanos – tem a obrigação de tratar Zé Pelintra como “doutor”.

A negatividade, antes expressa no caráter profano do personagem, representado na integração em outro espaço social, é então superada na transformação dada pela sacralização. Zé Pelintra ocupa, desta feita, um espaço sagrado que impõe uma série de relações interpessoais diferentes daquelas que se operavam na sua existência profana. Este novo espaço, para este novo homem, ou melhor, este novo homem neste novo espaço, subvertera a ordem imposta por uma parcela da sociedade, e estabelecera uma nova aproximação com o personagem, que enfim, contribui para a reatualização do mito de Zé Pelintra, e de modo análogo, para a dos malandros. Contribui ainda para a transformação que a realidade pretérita do tipo social do malandro sofre, criando um nicho confuso, antagonizado por uma gama de indivíduos que tem impressões particulares acerca do impacto social protagonizado pelos diversos segmentos polares dos malandros, impedindo que se tenha uma referência hermética acerca do agente histórico.

Identidade revista

 A revisão da identidade do malandro ocorre de forma dialética e dialógica na interferência que o processo sacralizador imputou na relação subjetiva e objetiva da memória. Ou seja, a referência que o sujeito tem de si próprio e aquela que os interlocutores mantêm com ele reconfiguram a significação das atividades profanas ou sagradas do personagem. Este é, portanto, um caminho de mão dupla. A atribuição de termos distintos daquele que o agente histórico teve em vida é a principal característica desta revisão, desta nova identidade. Mas não é estritamente por este motivo. Existem situações, descritas pelos pontos cantados, bem como expressões frasais que, por vezes, colocam a identidade – profana ou sagrada, ou ambas – em prova. De modo mais abrangente, o processo de sacralização do malandro ocasiona uma ressignificação de suas marcas profanas – atividades, concepções e práticas relacionais – “obrigando” uma assunção do sagrado para que sua veracidade seja visualizada ou aprovada. Não significa, no entanto, que se necessite de um abandono do profano. O malandro sagrado, num espaço-tempo também sagrado, toma posse de funcionalidades que antes não as detinha. Aproxima-se então de toda aquela gama de personagens espirituais que tem uma missão em terra (e no terreiro) qual seja, essencialmente, a de praticar o Bem.

Vejamos como se dá, primeiro, esta revisão no âmbito da subjetividade do personagem. A primeira observação a ser feita, dada a investigação nos pontos cantados, é que o malandro passa a ser adjetivado por termos como “doutor”, “rei”, “senhor”, “mestre”, em oposição a “vagabundo”, “arruaceiro” ou situações que valorizem seu passado-presente de “boêmio”, “seresteiro”, “brigador”, etc. Interessante observar, ainda, que estes termos não desaparecem ou são suprimidos, apenas perdem força de sua negatividade em relação com a positividade dos novos atributos.

  • “Sou um mestre bom da Jurema/ Eu sou o rei do meu juremá/ É um rei, é um rei, arriá/ Triunfa José dos Anjos na mesa do jurema”
  • “Calça, culote, paletó, camisa fina/ Só me falta a botina, pra acabar de ajeitar/ É Zé Pelintra sim senhor, é Zé Pelintra seu doutor/ Seu doutor, seu doutor”
  • “Hoje na Lei de Umbanda/ Acredito no senhor/ Pois sou seu filho de fé/ Pois tem fama de doutor”

Estes três trechos de pontos cantados são característicos do que fora dito anteriormente. No primeiro, a repetição da palavra “rei” se dá como afirmação dessa nova identidade sagrada. “Rei”, por definição histórica é um personagem quase que naturalmente sagrado. Dizer que um malandro, ou um mestre catimbozeiro é “rei”, é admitir sua dimensão sacra e distinguí-la da profana. Em verdade, na sociedade brasileira, a utilização de termos referentes à monarquia tem uma historicidade e significação que marcam a longa duração do sistema de governo neste território. “Rei da praia”, “rei do futebol”, “rainha da bateria”; quando se quer dotar alguém de magnitude, o classificamos como majestade. A palavra “doutor”, já analisada, é expressiva no conjunto de pontos cantados. Podemos associá-la ainda com o termo “bacharel” que envolvia muitas composições de samba. É nesta linha que podemos apreciar o termo “mestre”. Referido primordialmente ao Catimbó, a palavra pode assumir contornos similares ao de “bacharel” ou de “doutor”. É uma expressão de tratamento que tem a ver também com a capacidade de ensinar, de passar conhecimentos relevantes a quem o procura. Por fim, a expressão “senhor”, funciona como que um agrupamento de todas as outras, denotando um grau mais elevado de respeito, admiração e porque não temeridade. Tratou-se, por muito tempo, de “senhor” aquele que detinha a posse sobre outro indivíduo, como o escravo. Tratamos ainda hoje de “senhor” a Deus ou a Jesus, que para alguns, detêm a posse da vida e do destino das pessoas. Referimo-nos também como “senhor” àqueles que possivelmente nos oferecer um emprego, um salário. Utilizamos “senhor”, por fim, para marcar uma distância respeitosa em relação ao tempo de vida e ao conjunto de experiências e sabedoria que um idoso pode encarnar.

A identidade do malandro pode ser verificada também na manutenção

daquelas características descritas como ‘profanas’, que são necessárias para a tipificação do personagem. No caso da dimensão sagrada, o malandro tem sua ação posta à prova, seja pela memória profana ou pela funcionalidade sagrada.

“Se a rádio patrulha/ Chegasse aqui agora/ Seria uma grande vitória/ Ninguém poderia correr/ Agora que eu quero ver/ Quem é malandro/ Não pode correr”

Este ponto é um desafio à identidade do malandro. Aqui é resgatada sua dimensão profana que tem a ver com sua relação com o crime, a ordem e a polícia. Desafia-se o malandro porque ele ainda conjuga a capacidade de incomodar à ordem. Convocam-na para provar se os espíritos que estão encarnados nos médiuns são realmente espíritos de malandros, porque se não o forem, logo “correrão”, e a permanência dos verdadeiros seria comemorada como vitória. Claro está que a rádio patrulha não iria ao terreiro – já houve tempo que sim, mas não por causa só dos malandros – mas esta é uma construção discursiva que obriga a identificação do interlocutor com o comando do enunciado. Teologicamente falando, e a Umbanda possui outros métodos para tal, é uma forma de separar o falso do verdadeiro, o espírito que está ali para o bem, do que não está; o espírito pertencente àquela categoria daquele de outra; ou o espírito iluminado daquele que ainda é um “zombeteiro”. Mesmo que no campo da possibilidade e da suposição (“se chegasse”, “seria uma vitória”) a ordem imperativa cumpre sua função, como destacado em “Quem é malandro/ Não pode correr”. E, realmente, só “correm”, aqueles que não o são.

  • “Seu Zé Pelintra quando vem/ Ele traz sua magia/ Para saudar todos seus filhos/ E retirar feitiçarias/ Pisa na Aruanda, eu quero ver/ Pisa na Aruanda, eu quero ver”
  1. “Seu Zé feche a porteira, cancelas e tronqueira!/ Não deixe o mal entrar”

Nestes outros dois pontos, o malandro Zé Pelintra é convocado às suas obrigações de agente sagrado. No primeiro, por sua associação com a Linha das Almas ele é chamado para “retirar feitiçarias” de seus filhos. Para isto, ele traz sua magia lá do espaço mítico da Aruanda. Sua chegada, com efeito, também é desafiada. Existindo uma demanda, o espírito é intimado a vir a terra, e provar sua eficácia sagrada. No segundo, por sua relação com os Exus, assume a função destes que é a de proteção dos limites do espaço sagrado nomeado de “porteiras”, “cancelas” e “tronqueiras”. Em verdade, estes espaços podem ser profanos também e necessitar, assim como o sagrado, de uma proteção divina.

Importante destacar que a identidade do malandro sagrado se dá também pela manutenção da indumentária profana, notadamente aquela referida ao pólo mais “civilizado” do personagem. Na investigação realizada num conjunto relativamente grande de pontos cantados (em torno de cinqüenta) podemos notar as mesmas roupas e acessórios como “chapéu de palha”, “calça”, “paletó”, “camisa fina”, “punhal”, “terno”, “gravata vermelha”, “cachecol”, “baralho”, “botina”, “lenço encarnado”.

Ressignificação do profano

O malandro sagrado, este novo homem, ocupa agora um novo território. E, por este motivo, precisa manter relações especificamente determinadas por este ambiente também sagrado. Dentre estas relações, podem ser destacadas aquelas que mantêm vínculos estreitos com as atividades que eram cotidianas ao tipo social do malandro. A particularidade da prática do culto umbandista é tal que retoma de forma verossímil, mas não idêntica, a performance individual e coletiva das entidades enquanto representantes de uma categoria espiritual. Desta forma, é possível identificar um preto-velho, um malandro, um exu ou uma pombo-gira pela disposição destes observada num ritual. O território sagrado, apesar de não reproduzir fidedignamente o cenário do espaço profano, supõe sua realidade. É uma espacialidade virtual, provida do rito e da cumplicidade que une entidades, pais-de-santo, mães-de-santo, filhos-de-santo e consulentes, na intenção de (re)produzir a originalidade do espaço que ocupara o espírito de tal ou qual categoria. No nosso caso dos malandros, a música, os cânticos e os ritmos criam uma ambientalidade que lembra uma roda de samba, ou um bar, ou ainda uma esquina movimentada, freqüentada por eles em vida. O uso de bebidas, cigarros, e a presença dos acessórios das entidades completam a configuração do cenário. Portanto, é neste ‘palco’ que o malandro representará e atuará sagradamente, conjugando sua memória profana com a dimensão religiosa que o ambiente exige. Essa mudança observada na práxis do malandro, como dito, é imposta pela necessidade de uma assistência religiosa ao culto e aos fiéis.

Na coletânea de pontos analisados, verificamos a presença de vários termos correspondentes aos espaços que o malandro sagrado ocupa (ou ocupara). Entre tais, os que ganham mais destaque são as nomeações de lugares que delimitavam a origem ou a atuação do malandro em sua vida profana.

Tabela 2 “Espaços profanos verificados nos pontos”

 

“bar”, “sertão”, “rua”, “morro”, “batucada”
“tuiuti”, “cabaré”, “estrada”, “Praça Mauá”
“salão”, “amargura”, “Lapa”, “norte”, “lagoa”
“amor”, “Nordeste”, “Campina Real”

 

Os pontos cantados fazem referências a estes lugares de forma que dê verossimilhança ao retorno espiritual do personagem. O malandro desloca-se, momentaneamente, do local profano para o sagrado.

Tabela 3 “Espaços sagrados”

 

“altar”, “cruzeiro”, “porteira”, “cancela”, “tronqueira”
“terreiro”, “gongá”, “Catimbó”, “Umbanda”, “jacutá”
“encruza” “plano espiritual”, “salão”, “flor”, “terra”
“aruanda”, “juremá”, “mesa”, “aldeia”, “gameleira”

 O espírito, após cumprir sua missão religiosa no terreiro, caminha de volta para o espaço que anteriormente ocupava. Neste caso, podemos perceber uma duplicidade. O malandro pode vir de “Aruanda” e para lá retornar, ou pode vir da Jurema, do “juremá”, de uma “flor”, do “plano espiritual” etc; mas pode estar em locais profanos – quando não requisitados na prática espiritual – exercendo uma função definida pelo caráter sagrado. Sendo assim, neste caso, ele não foi nem retornou, mas convive em espaços duplos, e não é isto que diferenciaria a dimensão profana da sagrada. Precisaríamos avançar um pouco mais, procurando observar em que momentos o personagem, ou o discurso processualizam a sacralidade. A indicação já foi dada. Tal verificação se dá na funcionalidade do agente (espiritual) nos espaços em que ele ocupa.

Seria dispendioso demais analisar termo por termo, ou ponto cantado por ponto cantado. O que interessa, pois, é a construção de um encadeamento de idéias que seguem certo padrão, não muito bem cercado, mas que permite identificar as ressignificações das atividades do malandro. Casos particulares, porém, serão melhor elucidados na exposição e análise de algumas cantigas, que chamam mais a atenção por serem sínteses da nova forma de se portar do personagem. Assim sendo, veremos os significados que podem assumir os termos expostos nos quadros anteriores.

“Seu Zé Pelintra é quem chegou agora/ Seu Zé Pelintra vem pra trabalhar!/ Seu Zé Pelintra, mestre de Aruanda/ Vai firmar seu ponto nesse congá/ Ele veio foi de Alagoas/ Mas ele veio pra lhe ajudar/ Seu Zé Pelintra, mestre de Aruanda/ Vai firmar seu ponto nesse conga”

 

Este ponto cantado é identificador do momento exato (“agora”) da presença (incorporação, “chegada”) do espírito no território sagrado (“gongá”). Ao adentrar no espaço que é o do culto, a entidade traz consigo sua missão, o trabalho. Mas este não é um trabalho qualquer, ou aqueles que o malandro ‘exercia’ em sua existência profana.

 

Tabela 4 “Trabalhos (ou relações de) profanos”

 

“pra que?”, “vou morrer”, “vagabundo”
‘ser sustentado’, “me arranjo”, ‘cafetinagem’
“jogo”, “baralho”

 

 

 

É um trabalho ressignificado pelo culto, e por isso bom. Zé Pelintra “veio para lhe ajudar”: a presença do pronome oblíquo da terceira pessoa (“lhe”) indica que qualquer um pode ser ajudado pelo espírito – desde que necessite – criando uma relação de intimidade e reciprocidade do enunciador (e do agente enunciado pelo narrador) com o interlocutor que, a partir deste momento, faz- se observador das atividades religiosas (“ajudar”, “firmar ponto”) e conhecedor da personalidade de Zé Pelintra (“mestre”, “veio de Alagoas”).

Zé Pelintra, mestre no Catimbó, tem seu atributo lembrado pelo rito da Umbanda, caracterizando uma particularidade que não se verifica nas outras categorias espirituais. Seu Zé é um mestre no espaço mítico-sagrado de onde provêm todos (ou quase todos) os espíritos que trabalham na “Lei de Umbanda”: a Aruanda. Este ponto cantado recorda que Zé Pelintra já está sacralizado por ser um “mestre”, ‘título’ que adquirira no Catimbó. Onde então visualizamos a sacralização nesta cantiga? No trabalho, ou melhor, no novo sentido que esta atividade ganha na existência do malandro. Para desmanchar qualquer dúvida ou interpelação, afirma-se com veemência: “Zé Pelintra vem para trabalhar!”, não deixando espaço para nenhum espanto. Mesmo por que, quem “vem a Terra”, quem “baixa no terreiro”, se for iluminado, não poderia vir para outra coisa a não ser para trabalhar. O espírito não tem alternativa e parece mesmo que ele não a quer. Ele vem para trabalhar! E este é um trabalho específico que depende de algum rito. O único observado neste ponto é a “firmação do ponto” (riscado ou cantado) no “gongá” (altar). O cumprimento deste ritual tem a dupla função de verificar a fidedignidade do espírito ali presente, bem como de permitir que ele cumpra o seu trabalho, a sua função sagrada: ajudar a quem precisa. A função adversativa que exerce o termo “mas” é tal que imperiosamente afirma que, apesar da distância percorrida pelo agente, ele vem cumprir seu dever. Este caráter de ‘dever’ é ainda revelador de mais um mecanismo do processo. O malandro da existência profana se desguiava da obrigação de trabalhar, e seu resgate sagrado recorda essa memória.

“De manhã cedo/ Quando eu desço o morro/ A nega pensa/ Que eu vou trabalhar/ Eu boto o meu baralho no bolso/ Meu cachecol no pescoço/ E vou pra Barão de Mauá/ Trabalhar/ Trabalhar pra que?/ Se eu trabalhar/ Eu vou morrer!”

Mesmo por que,

“O trabalho não é bom/ Ninguém pode duvidar/ Oi, trabalhar só obrigado/ Por gosto ninguém vai lá” (“O que será de mim?” Ismael Silva – 1931)

Por este último ponto não resta dúvida, o malandro trabalha por que fora obrigado! Agora se entende a veemência com que foi afirmado que “Zé Pelintra vem pra trabalhar”. O malandro já assumira sua identidade como categoria espiritual, e ele tem que vir trabalhar. Não se pode dizer o que aconteceria se ele não viesse, mas a sua presença cumpre a funcionalidade sacra e agrada os que vão até o terreiro para lhe ver, e retornar as suas casas com alguma palavra de alívio ou consolo, ou alguma informação mágica que possa resolver os problemas de cada um.

Tabela 5 “Trabalhos sagrados”

 

“para o bem”, ‘caridade’, “ajudar”, “vencer demanda”
“ele trabalha noite e dia, eu trabalho o ano inteiro”
“serviço feito”, “curar”, “rezar”

 Processo semelhante se dá em relação à ressignificação da violência. Se na prática profana da vida do malandro, a violência era, normalmente, a maneira pela qual o personagem fazia valer sua vontade, sua força, perante as dificuldades que a vida lhe apresentava – ou ele mesmo buscava – na prática religiosa, a violência adquire um caráter também religioso. Não que seja uma violência ‘consentida’, em oposição a uma violência ‘perseguida’ (pela polícia, pela “ordem”), mas é uma violência útil. Aquela força que o agente possuía em vida, será utilizada para algum efeito sagrado, seja ele de proteção, contenção, ou de punição. Em realidade, a forma de aplicação da violência é praticamente a mesma. O que a sacraliza então é o tal efeito. Vejamos alguns desses efeitos:

  • “Senhor Zé tem uma bengala/ Que na ponta dela tem sete fivelas/ O inimigo que apanha com ela/ Ou lhe dá um coça-coça/ Ou lhe dá um péla- péla”
  1. “(…)Eu vou cortar galhos de jurema/ Pra dar lapada em feiticeiro”

A entidade utiliza acessórios próprios de sua atividade (profana e sagrada), para aplicar um castigo ao inimigo. A presença de um termo como este (“inimigo”), ao invés da opção de nomeá-lo, ou referi-lo como de costume a uma pessoa qualquer, é justificadora da punição aplicada. Não é preciso dizer muita coisa. O atingido pela força punitiva e controladora do malandro sagrado provavelmente a merecia, já que estava designado como um “inimigo”. O termo atinge uma significação maior ainda, pois, aqueles inimigos que o malandro poderia ter em vida, agora são inimigos de toda uma prática religiosa, como os feiticeiros; ou os inimigos de um consulente passam a sê-los também do agente espiritual.

  • “Eu me chamo Zé Pelintra/ Já morei lá no sertão/ Já fui muito arruaceiro/ E também sou bebedor/ Tive noites de sereno/ E seresteiro também sou”
  • “Sou tocador de viola/ E também sou jogador/ Eu me chamo Zé Pelintra/ Sou malandro sim senhor/ Se me meto numa briga/ Sempre saio vencedor”
  • “No encruzo me chamavam/ Pra quebrar uma demanda/ Se presente vou ganhar/ Sua demanda vou quebrar/ Se o inimigo for bem forte/ Vou gostar de demandar/ Com meu Santo Antônio de Fogo/ Sua demanda vou quebrar/ Sou Exu Zé Pelintra/ Que não gosta de brincar”

No primeiro ponto cantado a preferência pelo pretérito perfeito para referir-se a dimensão desordeira do malandro denota que ele perdera essa característica. Em realidade, esta cantiga conjuga passado e presente de modo que alguns aspectos do malandro sobrevivem à sua sacralização. Percebemos que ele muda de local e não arruma mais confusões. Mas mantém o nome, o gosto pela bebida e pela seresta. Como afirmado anteriormente, a manutenção dessas características é configuradora daquele ‘clima’ necessário para a vinda da entidade e sua atuação no espaço sagrado. Mas este espaço não permite mais arruaças, e por este motivo, claro, o agente deveria abandoná-las. No segundo, verificamos novamente a reafirmação de algumas identidades do personagem que ajudam a compor a tal ambientalidade (música, jogo). Neste, contudo, a afirmação se dá pelo modo imperativo com que o atributo de “malandro” é vinculado à violência. Para que se reconheça em Zé Pelintra a sua malandragem, o personagem afirma que sempre que se mete em uma briga, sai vencedor. Claro está que há certo exagero nessa afirmação, entretanto, a função que ela exerce é tal que cria um aspecto respeitoso e de temeridade para quem quer que possa interpelá-lo.

Já no terceiro, o malandro narrado (por ele mesmo) tem gosto pelo desafio, que é um desafio de violência. Assim como em sua existência profana, ele não foge de uma briga, e ainda se regozija se o “inimigo for bem forte”. Para isso, além de abandonar seu caráter brincalhão (“não gosta de brincar”), ele conta com a ajuda divina de um santo (Santo Antônio de Fogo) e se identifica com uma categoria do Povo de Rua, os exus. É explicitada também a necessidade de remuneração exigida pelos espíritos desta categoria. A violência direcionada para um efeito sagrado tem sua validade ressignificada. Ela cumpre funções como “vencer demanda”, proteger bares, entradas de casas e terreiros.

Enfim, é uma força sagrada que se identifica com a memória do personagem sacralizado e imputa respeito, por sua própria trajetória.

“Malandro é malandrinho/ Não jogam piadas eles o que quer/ Junto com Zé Pelintra na porta do cabaré/ De cachecol no pescoço/ Na mesa do carteado na Lapa/ E na Praça Mauá/ Ainda são respeitados/ Tem zunzunzum/ Na madrugada tem/ Zunzunzum/ Malandro e Pelintra/ São reis da pernada”

Tabela 6 “Relações de violência”

 

Profanas Sagradas
“punhal de aço puro”, ‘bebida’,

‘polícia’

“demanda”, “feitiço”, “força”, “capada em

feiticeiro”

“matar”, “pernada”, “arruaceiro”, “briga” “inimigo”, ‘gosto pela demanda’

 

Por fim, a sua relação com a mulher também se modifica. Se antes era motivo de brigas ou encarada como um ser menor, passível de enganações e que deveria sustentá-lo, a mulher, para o malandro sagrado, entra no ciclo de respeito e auxílio impostos pela prática da Umbanda. Os pontos cantados referem-se a ambas as dimensões.

  • “Bom dia Zé/ Como vai, como é que é?/ Vou muito bem/ Às custas da sua mulher”
  • “De dia numa linda batucada/ De noite nos braços de sua amada/ Como é que é Seu Zé/ Eu sei que o seu negócio é mulher”
  • “Foi Zé que fez mal a moça/ Ele mesmo casou com ela/ Ah Zé, Zé enganador/ Enganou moça donzela/ Com palavras de amor”
  1. “Oi Zé, quando for lá na lagoa/ Toma cuidado com o balanço da canoa/ Oi Zé, faça tudo o que quiser/ Só não maltrate o coração dessa mulher”

Tabela 7 “Relações com a mulher”

 

Profanas Sagradas
“amor”, ‘viver às custas’, ‘enganar’, “ingratidão” “não maltrate”, seduzir mas respeitar, “ajudar”
‘traição’, ‘morte’

 

 Assunção do sagrado

 Este é mais um dos estágios que participam do processo de sacralização do malandro. O mecanismo aqui entendido é tal que se dá quando o personagem profano assume seus deveres sagrados e a funcionalidade religiosa do culto, no qual é um agente significativo. Com a absorção das obrigações rituais, estará completa a passagem da vida profana para a existência (eterna?) sagrada. O malandro, então, deixa de ser como todos nós (de memória mortal), e assume de vez a sua nova identidade. Essa assunção é caracterizada pelo que foi discutido anteriormente, ou seja, a ressignificação das relações cotidianas. Mas é também definida pela absorção de funções, ritos e objetos próprios do ato sagrado.

Tabela 8 “Assunção do sagrado: trabalho, violência e performances sagradas.”

 

Trabalho “fechar as  tronqueiras”,  rezar,  curar, “não deixe  o  mal  entrar” “dar  forças”, ‘saudar’ filhos, proteger locais como bares, “retirar feitiços”, “abrir jacutá”
Violência “Lei de Umbanda”, “é de fé”, ‘vencer inimigo’, “vencer demanda” “tirar feitiçaria”
Objetos e práticas “figa”, “ponto”, “ponto seguro”, “magias e mirongas”, “fumaça”, “cachimbo” “saudar o sol e o mar”, “ver a luz”, “desafiar a morte”, “saudar”, “salvar” Deus, Jesus e os Orixás

 

 Quando o malandro, ou melhor, a ação deste no espaço sagrado, ressignifica o trabalho, a mulher e a violência, ele já está assumindo o sagrado. Assim sendo, as funções de “curar”, “rezar”, “retirar feitiçarias”, “quebrar/vencer demandas”, “não deixar o mal entrar”, e outras, são atividades impostas por quem quer que se disponha a retornar a terra e praticar o Bem/Caridade. Todas estas atividades, com efeito, são permitidas, reforçadas e abençoadas por divindades ‘mais poderosas’ do que o malandro.

“Valei-me Nossa Senhora de Aparecida/ Porque tu és a grande padroeira/ Valei-me Senhora do Amparo/ Estrela Guia e meu povo da Bahia/ Valei-me Senhor do Bonfim/ E os baianos deste padroeiro/ Valei-me Orixá formoso/ Que gira-gira nesse terreiro/ Quem vem na frente é Seu Zé Pelintra/ Com seu chapéu de lado, seu lenço encarnado/ Ele vem saudar seus filhos de Nazareno/ Pra dar mais forças nesse terreiro”

Este ponto cantado sintetiza toda a performance e o ambiente criado no momento da chegada e da atuação sagradas do agente espiritual. O narrador saúda e invoca a permissão e a proteção de divindades grandiosas como a padroeira do país, e outros, para que o malandro sagrado possa vir “na frente”, e cumprir suas obrigações. Observem que esta cantiga descreve, ainda, as roupas que Seu Zé Pelintra usa. Suas funções estão bem determinadas também: “saudar (ou ajudar), os filhos de Nazareno” (Jesus Cristo, ‘todos nós’) e “dar forças ao terreiro”. Cremos ser este um dos discursos que melhor resume e delineia o roteiro de reatualização sagrada do personagem. Claro, porque a cada vez que se canta um ponto como este, renova-se a proteção divina e rememora tanto as obrigações da entidade quanto a sua forma de se manifestar. A assunção do sagrado, como aqui nos aparece, já se dera num passado mítico, mas se repete a cada hierofania e cria uma expectativa de futuro para a própria repetição. É um passado-futuro que se faz no presente, e a cada presente.

Outra característica fundamental para a verossimilhança de sua sacralidade é a expectativa de um retorno continuado ao longo dos tempos que se dá pela superação da morte (ressurreição, reencarnação, retorno mediúnico…), como um desafio à mortalidade. A presença do malandro no espaço sagrado ou a presença sagrada num espaço são indicativas desta vitória.

“O morro de Santa Tereza/ Está chorando/ Porque Zé pelintra morreu/ Ele não morreu/ Ele não morreu/ Ele simplesmente do morro/ Desapareceu!”

É assim, então, que o coro pode saudar:

“Seu dotô…Seu dotô/ Bravo senhô!/ Zé Pelintra chegou/ Bravo senhô!/ Com os poderes de Deus/ Bravo senhô!/ Zé Pelintra sou eu!/ Bravo senhô!”

Referências

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CENTRO ESPIRITA DE UMBANDA SÃO SEBASTIÃO. Nova Friburgo, Rio de

Janeiro. www.umbandadeamor.com.br/site/pontosze.htm

 

CENTRO ESPÍRITA CABOCLO ITAÚNA E VOVÓ LUZIA D’ANGOLA. São

Gonçalo, Rio de Janeiro. http://itaunaluiza.vilabol.uol.com.br/ze.htm

 

FARELLI, Maria Helena. Zé Pelintra, o rei da malandragem. Rio de Janeiro, Cátedra, 1987;

 

LIGIÉRO, Zeca. Malandro Divino: a vida e a lenda de Zé Pelintra, personagem mítico da Lapa carioca. Rio de Janeiro: Record, 2004.

 

MOLINA, N. A. 3777 Pontos Cantados e Riscados na Umbanda e na Quimbanda. Rio de Janeiro: Ed. Espiritualista, s.d.

                                       . Saravá, Seu Zé Pelintra. Rio de Janeiro, Editora Espiritualista s.d.

 

TENDA ESPÍRITA CABOCLO SETE CACHOEIRAS. Pontos Cantados de

Umbanda. Disponível em: http://www.scribd.com/doc/7117398/Umbanda- Pontos-Letras-de-Pontos-de-Umbanda-Livro Acessado em: 15/12/2009.

 

ZESPO, E. Pontos cantados e riscados da Umbanda. RJ: Editora Espiritualista, 1951.

 

Notas

1 Estes agentes, no entanto, no que diz respeito à sua viabilidade histórica, podem ser reais ou memorialisticamente construídos, como é o caso dos pretos(as)-velhos(as), ou dos caboclos, etc. Não é momento, aqui, de detalhar esta questão.

2 Este trabalho é uma adaptação de temas relacionados com a monografia de conclusão de curso, intitulada “A Sacralização do Malandro – tempo, memória e discurso”, apresentada ao Departamento de História da UERJ em agosto de 2010.

3 “Pontos cantados” são cantigas de chamamento, louvação e despedida para as entidades do culto. São peças componentes fundamentais do rito, indispensáveis para o seu desenrolar.

4 Muitos dos sambas-malandros são peças fundamentais para a caracterização “profana” dos malandros. Para saber mais, ver as obras de Chalhoub (1986), Zenicola (2006), Paranhos (2003) e os sambas de Noel Rosa, Wilson Batista, Ismael Silva, Moreira da Silva, Chico Buarque, Bezerra da Silva, entre outros.

5 Sinto a necessidade, enquanto historiador, de deixar claro, a todo o momento, aquilo que me leva a escrever. A justificativa do trabalho pela relevância social, epistemológica ou acadêmica, pode e deve vir acompanhada de uma sincera expressão de si. Uma nova perspectiva se edificou durante a investigação sobre o objeto da pesquisa. Certo distanciamento se toma à medida que a prática passa a ser também objeto de conhecimento. Neste caso, portanto, a memória, como aqui a encaro, é uma possibilidade epistemológica de entendimento daquilo que retemos como

 

passado, presente e futuro. É através dela que os acontecimentos e processos ganham contornos razoavelmente lógicos e se concretizam num sistema dinâmico de reconhecimento, inteligibilidade e ação.

6 Não obstante, a referência à compilação de pontos cantados cumpre a função de indicativo de onde podem ser apreciados textualmente, não representando uma narrativa etnográfica do culto. Vale ressaltar que estas compilações possuem um caráter enciclopédico e não litúrgico- doutrinário. Ou seja, a maioria dos pontos cantados não possui propriedade privada de direito intelectual, antes fazendo parte do que costumeiramente é denominado de “folclore”, “sabedoria popular”, “cultura popular” ou, em termos mais politicamente corretos, conhecimento comum difuso e compartilhado.

7 “O provérbio árabe disse antes de nós: ‘Os homens se parecem mais com sua época do que com seus pais.’ Por não ter meditado essa sabedoria oriental, o estudo do passado às vezes caiu em descrédito”. (BLOCH, 2002, p.60)

8 […] “de fato [encontra-se] apoio e consolação na concepção dos arquétipos e da repetição, concepção que era ‘vivida’ menos no plano do Cosmos e dos astros do que no plano mítico- histórico (transformando, por exemplo, as personagens históricas em categorias míticas, etc.)…” (ELIADE, 1969, p. 159)

9 Sensibilizar-se aqui não tem o caráter romântico que se pode supor, mas a inevitável característica humana de sentir o mundo ao seu redor, que não se limita aos cinco sentidos galileanos…

10 São as variadas formas de mediunidade contidas no “Livro dos Médiuns” de Kardec.

11 “Nas aparências não há apenas ruínas, há também a recusa de se inclinar diante da potência, e isso é o próprio domínio da liberdade; cindir os valores em dois, permitir que nasçam e renasçam os pensamentos e os valores, é o retorno refletido às aparências e aos artifícios”. (NOVAES, 2006, pp. 18-9)

12http://www.partidaechegada.com/2010/04/chico-xavier-psicografou-noel-e-marilyn.html;

http://www.samba-choro.com.br/s-c/tribuna/samba-choro.0606/0007.html; http://www.centroacaminhodaluz.com.br/dir_arquivos/folhas-do-caminho_29.pdf.            Para maiores informações ver o estudo: GUARNIEIRI, 2001.

13     “A aparência, levada ao extremo, tende, pois, à contradição: torna-se natural para aqueles que praticam a autenticidade e a consciência”. (NOVAES, 2006, p.19) (grifo do autor)

14 “É nesses dois níveis, ou seja, no psíquico e no social-histórico que encontramos essa capacidade de criação que nomeei, mas particularmente, imaginação e imaginário”. (CASTORIADIS, apud AUGRAS, 2009, p. 233) (grifo do autor).

15 “Assim, o imaginário toma corpo, isto é, passa a ter a ‘aparência necessária’: a dissimulação readquire o sentido original de, literalmente, simulação que se perde, para se reencontrar em novos signos, desta vez desejados”. (NOVAES, 2006. pp.19-20)

16 Os malandros deslizavam entre o pólo da marginalização e vadiagem (segundo as leis da época) e da profissionalização, como é o caso dos sambistas Noel Rosa, Bezerra da Silva e outros tantos.

17 “De acordo com essa lei, esse seria seu ‘carma’. (…) Segundo o Espiritismo (mais tarde absorvido pela Umbanda), os espíritos, logo após a morte, ficariam numa fronteira metafísica chamada Umbral. Ainda inconformadas com a própria morte, essas almas permanecem presas à existência terrena, não conseguem seguir o seu caminho, e precisam trabalhar neste mundo para ‘evoluir’ espiritualmente. Algumas delas voltam a Terra por meio do transe mediúnico para praticar caridade e evoluir.” (LIGIÉRO, 2004, p. 92)

18 A prática espiritual no Catimbó se dá de maneira que congrega no mesmo personagem, mais do que na Umbanda, o indivíduo em vida (a vida do indivíduo), com o espírito incorporado. Ou seja, o espírito que retorna, com título de “mestre”, é o próprio espírito que já esteve encarnado num também “mestre”. Zé Pelintra, antes de retornar ritualísticamente num médium no Catimbó, era em vida um mestre catimbozeiro.

19 “Algo semelhante [ao que foi dito sobre “experiência”] pode se dizer da expectativa: também ela é ao mesmo tempo ligada à pessoa e ao interpessoal, também a expectativa se realiza no hoje, é futuro presente, voltado para o ainda-não, para o não experimentado, para o que apenas pode ser previsto. Esperança e medo, desejo e vontade, a inquietude, mas também a análise racional,

 

a visão receptiva ou a curiosidade fazem parte da expectativa e a constituem”. (KOSELLECK, 2009, p.310)

20 “Considerando que o tempo verbal está vinculado ao tempo cronológico, a noção de tempo absoluto (…) é, na verdade, ilusória. (…) O tempo verbal será sempre relativo, uma vez que está atrelado ao tempo cronológico.” (FREITAG, 2005, p.7)

21 “Desse modo, entende-se que esferas sociais e planos de atuação condicionam duplamente as vozes: elas estão, uma vez, obrigatoriamente, comprometidas com interesses sociais específicos e, segundo, elas significam referências que, por se situarem na imediaticidade ou não do indivíduo, alcançarão menor ou maior grau de universalidade”. (VOESE, 2005 p.14)

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