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Cultos Afro-americanos

Aspectos do Toré

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 MARCO TROMBONI DE S. NASCIMENTO

Excerto de “O TRONCO DA JUREM A”. Ritual e etnicidade entre os povos indígenas do nordeste – o caso Kiriri –

O aspecto do Toré que primeiro chama a atenção de qualquer observador externo é o transe mediúnico, a possessão ou, se preferirmos usar categorias nativas, enramar ou manifestar1. É através dessa possessão que os encantos se manifestam A comunicação com os encantos, ou encantados é o objetivo do ritual.

Todo sábado, à noite, é dia de brincadeira. Os índios cantam e dançam ao som das maracás, marcadoras do ritmo. São chocalhos confeccionados a partir de uma cabaça, planta comum na região. Muitos portam maracás, mas apenas os entendidos – indivíduos adultos iniciados na ciência dos índios – as utilizam também em outros momentos rituais, isto é, durante o trabalho. Trata-se de um objeto ritual cercado de reverências e que simboliza mais que qualquer outro, exceto o vinho da jurema, a sua indianidade.

Muitos comparecem ao Toré com um saiote de fibras de

caroá, a tanga, por cima da roupa comum. O caroá é importante porque “antigamente era com ele que se fazia a roupa de índio“. A alguns entendidos, ao pajé e às mulheres que recebem os encantos, é reservado o porte de uma roupa ritual apenas um pouco mais elaborada, incluindo além da tanga, um cocar e adereços para os pulsos e tornozelos feitos de penas.

Providências devem ser tomadas em relação à preparação

do terreiro, ao ar livre, tais como a defumação. Nela um entendido, quase sempre um conselheiro, cargo político inferior apenas ao de cacique, com uma cabaça contendo ora a bebida jurema, ora o vinho de milho ou buraiê, ora o zuru (cachaça comum), sai aspergindo o líquido sobre o chão, enquanto que às suas costas, formando uma fila, seguem dois outros entendidos, homem ou mulher, um segurando uma lamparina (um fifó de querosene), outro fumando de um paú (cachimbo) e baforando ao longo de todo o trajeto, que percorre toda a área externa e interna do terreiro. Espera-se com isso, atrair os encantos e afastar os coisa rúim, espírito de morto, ou espírito branco, categoria que envolve espíritos tanto de falecidos brancos como negros.

Visto de cima, o conjunto busca, em fila indiana, performar um círculo, homens a frente, girando no sentido anti- horário, de forma que os primeiros, puxados pelo pajé, logo alcancem os últimos, necessariamente mais lentos, ultrapassando-os ora por dentro do círculo, ora por fora, de modo a formar uma espiral que se contrai ao máximo, quando uma inversão súbita de sentido, por parte daquele que puxa os demais, desfaz completamente a espiral, repetindo-se indefinidamente essa coreografia, que somente se altera no momento em que chegam os encantos.

Juntamente com o canto e o som produzido pela maracá, há também uma pisada característica, um passo simples, o “jeito” Kiriri de pisar, através do qual costumam se distinguir de outros índios que também dançam o Toré e dos civilizados.   Esse movimento em espiral é sempre paralisado quando se substitui uma linha – i.é., canto – por outra, servindo para que se tome um pouco de fôlego, permanecendo o círculo aberto – essa é a hora em que as pessoas entram e saem da formação, já que não é obrigatório que todos dancem todas as linhas. O ritmo tem sua frequência acelerada à medida em que se aproxima o climax, quando os encantos baixam ou enramam, dando-se aí um grande intervalo para a consulta aos encantados e a ingestão das bebidas rituais: o vinho da jurema e o buraiê (não se bebe o zuru durante o Toré).

linhas especiais para cada encantado que se quer invocar, mas apenas dois ou três enramam em cada Toré. Algumas linhas, porém, não são dirigidas a nenhum em especial, como a que sempre abre o trabalho no início do ritual:

Venho da Jurema

Eu vou pro Juremá (bis) Chega meus caboco índio

Que vem do orte do Mar (bis)

(estribilho)   Ah, sina êh, ah sina áh

Ah, sina êh, sina êh, sina há (várias vezes)

Outras são dirigidas a Deus, Jesus Cristo ou Nossa Senhora, como esta, por exemplo:

Lá no pé do cruzeiro, oh Jurema

Eu brinquei com a Maraca na mão (bis) Pedindo a Jesus Cristo

Com Cristo no meu coração (bis)

 

(estribilho)   Hêina, hêina êh

Hêina, hêina áh (bis) Hêina, hêina êh

Hêina áh, hêina áh (várias vezes) E ainda outras dirigidas à própria Jurema:

Jurema, minha Jurema

Eu quero ver meus caboco regimá É no regimo de Deus

É no regimo da união

 

(estribilho)   Hêina, hêina êh

Hêina, hêina áh (bis) Hêina, hêina êh

Hêina áh, hêina áh (várias vezes)

 

Os encantos, encantados, mestres encantados, gentios ou caboquinhos são entidades sobrenaturais benéficas, em princípio, ao menos para os índios. Caracterizam-se sobretudo por serem vivas, isto é, não terem passado pela experiência da morte, não serem espírito de morto, que é coisa de gente branco, numa alusão ao espiritismo, umbanda, ou outros trabalhos que não são coisa de índio – mas que eles conhecem.

Acredita-se que alguns deles tiveram existência humana, depois do que se teriam encantado, indo para o reino dos encantados ou reino da Jurema, ou Juremá, mas sem que tenham morrido. Não deixaram de viver, não são também espíritos desencarnados. Continuam vivos, só que em tal reino, ao qual os encarnados só têm acesso através da ingestão da Jurema. Há o Sultão das Matas, o Papagaio Amarelo, o Boi do Corte, o Rei Porquinho, o Véio Ká, o Mané Maior, o Barriquinha, o Mestre Liro, o Mestre Zabelê, a Caiporinha, a Sereia, etc. É preciso referir que os encantos, de fato, só enramam em mulheres durante o ritual, embora, na concepção nativa, nada impeça que enramem em quem bem entendam.

Os encantos são descritos, em geral, como tendo a aparência de homens descomunais, feroses e implacáveis, de feições rudes e olhos esbugalhados, verdadeiramente assustadores, à semelhança de como caracterizam o gentio brabio, seus antepassados que ainda viviam no mato, embora não sejam, em princípio, equacionados com esses últimos. São, contudo, prestativos e comunicam-se com os kiriri não só na camarinha do Toré, mas também na ciência do índio e em sonhos. Quando aparecem nestes são sempre levados a sério, e um sonho do cacique pode resultar em medidas radicais no plano da vida comunitária.

Vagam os encantos pelas matas, pelos tabuleiros, pelas grutas ou águas. Podem se apresentar sob a forma animal e muitos caçadores, por não reconhecê-los, já tentaram alvejá-los, o que resulta, creem, em doenças e padecimentos para si mesmos. Sob estas formas, aproximam-se e espiam tudo, ficam sabendo dos segredos das pessoas e podem informar ao pajé quando este realiza seus trabalhos. Porém, somente as pessoas que têm a ciência podem reconhecê-los sob esta forma, distinguindo-os dos simples animais. Essas entidades se manifestam no Toré com os traços característicos de cada um e falam, durante o transe, uma mistura de português com uma lingua ininteligível, ao menos para o observador externo, mas que é tomada como a língua dos antepassados – o gentio brabio ou os caboco dos tronco véio -, língua que os Kiriri, de fato, não puderam conservar.

Voltando à sequência do ritual, após algum tempo a brincar na roda, já enramados, isto é, com as mestras já em estado de transe, os encantados são conduzidos à camarinha, na área construída do terreiro, chamada também de ciência. Esta é de acesso exclusivo aos entendidos e índios que se consultam, junto aos encantados, para aconselhamento, proteção e cura de diversos tipos de doenças, sendo-lhes prescritas certas obrigações e tratamentos: defumações, chás, banhos de folhas, ou simples conselhos. Alí também, aconselham decisões que afetam a comunidade como um todo, e admoestam os kiriri a manter a força da aldeia, isto é, a união em torno do cacique e dos conselheiros.

Cerca de seis a sete horas decorridas do início da cerimônia, quando os encantos baixaram, foram consultados, mandaram seus recados, sempre interpretados pelos entendidos, e foram embora para o seu reino, realiza-se a Sereia, ato final de encerramento do trabalho. Uma cruz é delineada com algumas dezenas de velas, dispostas em fila dupla sobre o chão batido do terreiro. Na intersecção dos braços maior e menor, dispõe-se um cruzeiro de madeira de cerca de trinta centímetros de altura. Em torno desse centro sentam-se algumas crianças pequenas. Envolvendo-as, os homens sentados, alguns em pé também, e por fim as mulheres a dançar, girando em redor de todos. Todos cantam as linhas, com destaque para a da Sereia, que vem por último, e que fecha o trabalho. Quem está sentado põe-se de joelhos e uma oração de aspecto cristão é pronunciada com as mãos em sinal de prece. Finda a prece, está encerrado o Toré.

É preciso ainda ressaltar a importância da jurema para o Toré. Como dissemos antes, no decurso da cerimônia, a intervalos regulares, os participantes ingerem essa beberagem, também também chamada de vinho da jurema. Esse vinho, de propriedades levemente alucinógenas (LIMA, 1946), é feito da entrecasca da raíz da árvore da jurema ou juremeira (Mimosa nigra, Hub.; Acacia hostilis, Mart.; Mimosa hostilis, Mart.), uma pequena árvore típica do sertão nordestino.

Aqui cabe um parênteses: o vinho da Jurema é o principal elemento comum a todas as formas rituais disseminadas pelo nordeste que, junto com o Toré, constituem variantes do que chamamos, por isso mesmo, de “complexo ritual da Jurema“. A abarcar toda a região e cuja difusão atinge inclusive formas rituais não especificamente ligadas a reivindicações étnicas, embora em todas elas a bebida feita a partir da planta jurema esteja ligada a alguma representação do “índio” (v. caps. III e IV).

Outro ítem que é preciso referir como fundamental no Toré é o uso intensivo do tabaco. É geralmente fumado em cachimbos tubulares, de madeira, designados paús, cercados de respeito e de porte exclusivo dos entendidos, ao menos quando se trata de uso cerimonial. Depois de acesos, os cachimbos são muitas vezes solicitados pelos encantos no momento das consultas. Sopra-se então o cachimbo invertido, isto é, com o orifício da brasa no interior da boca, de modo que a fumaça saia bem direcionada através da extremidade mais estreita. Assim orientado, o jato é soprado na direção do consulente, da cabeça para os pés, em movimentos que delineiam cruzes. Busca-se, assim, proteção e cura, estados alcançados mediante a utilização do fumo, chamado também de Badzé, que é uma daas poucas palavras do léxico da antiga língua Kiriri que persistiram.

Uma última colocação deve ser feita a respeito dos agentes que desempenham funções de destaque durante o ritual, os entendidos. Não parece haver um rito específico que marque sua iniciação. Sem dúvida que há um processo de aprendizagem, de aquisição da ciência pelos que se “candidatam”. Há, em alguns casos que ouvimos relatar, uma história prévia de doença tida como incurável por qualquer método que não a submissão à vontade dos encantos, que com esse sinal pretendem forçar o indivíduo a enfrentar o trabalho, isto é, assumir obrigações rituais. Porém, nem todos os entendidos passam por esse processo, sendo que os mesmos são vistos como possuindo graus diversos de entendimento da ciência do índio.

Entre os trabalhos que competem aos entendidos está o particular, uma cerimônia que ocorre todas as quartas ou sextas- feiras lá no mato, em um local secreto, na casa da ciência, ou junto a um pé de Jurema, de participação restrita a eles, da qual pouco se sabe.

Quanto a se tornar pajé, sabemos que, pelo menos em um caso que nos foi relatado, houve uma disputa de conhecimentos entre três candidatos ante a presença dos encantos, que formulavam diversas perguntas, terminando por escolher um deles como o mais entendido na ciência, e apto para preencher o cargo de pajé.

Por ouro lado, é patente que razões políticas costumam interferir na escolha. Em verdade, na referida disputa, os três candidatos já cumpriam de fato as funções rituais inerentes ao cargo, em diferentes terreiros, disputando entre si o título e suas implicações políticas, em um episódio que está relacionado com o atual faccionalismo do grupo. De qualquer forma, é preciso, não só ao pajé, mas a qualquer entendido, ter vidência, a qual é compreendida como uma graça de Deus, pois não são todos que, mesmo sendo índios, e ingerindo o vinho da jurema, podem estabelecer contato com o plano de realidade no qual se vêem os encantos que povoam as águas e as matas, o reino da jurema, ou juremá.

Uma outra categoria nativa, a de mestre ou mestra, apresenta certa ambiguidade. Os encantos são mestres encantados, e alguns entendidos são também chamados de mestres, poucos, é verdade. As mulheres que manifestam também são chamadas, na situação de transe, de mestras. Assim, o termo parece tratar-se de um distintivo para aquelas pessoas profundamente conhecedoras dos segredos da ciência, pessoas de quem se diz que já nasceram com a ciência, estando predestinadas a praticá-la, e cujo poder mágico parece se nutrir da sabedoria dos próprios encantados, com os quais têm contato muito próximo desde cedo.

É preciso referir que para além dessa parte “cênica” do ritual, a dança propriamente dita – a qual se faz questão de mostrar para os de fora, principalmente pessoas consideradas importantes para a luta dos índios, na chamada representação do Toré -, tudo o mais se apresenta envolto em mistério, conhecimento esotérico, restrito aos índios, particularmente aos entendidos, já que é a sua ciência, por oposição à dos brancos, de tal forma que é quase impossível conversar explicitamente sobre esse assunto com os mesmos.

 

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