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Demônios e Anjos

Se concorda com a Fé Católica a afirmação de que para produzir algum efeito de magia o diabo tem que colaborar intimamente com o bruxo, ou se um sem o outro, isto é, o diabo sem o bruxo ou inversamente, pode produzir esse efeito. – Malleus Maleficarum

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O primeiro argumento é o que segue. Que o diabo pode provocar um efeito mágico sem a colaboração de um bruxo. Assim afirma Santo Agostinho. Todas as coisas que acontecem de forma visível, de modo que é possível vê-las, podem – se acreditar – ser obra dos poderes inferiores do ar. Mas os males e dolências corporais não são por certo invisíveis; antes disso, resultam visíveis aos sentidos, no entanto podem ser provocados pelos diabos.

Mais ainda, pelas Sagradas Escrituras conhecemos os desastres que caíram sobre Jó, como o fogo descendo do céu que ao cair sobre as ovelhas e outras criações os consumiu, e de como um vento violento derrubou as quatro paredes de uma casa, de modo que caíram sobre seus filhos e os mataram. O diabo por si próprio, sem colaboração de bruxos, senão nada mais que a permissão de Deus, pôde provocar todos esses desastres. Portanto não há dúvida de que pode fazer muitas coisas que com freqüência se atribuem ao poder dos bruxos. E isso é evidente no relato dos sete esposos da donzela Sara que um diabo matou. Mais ainda, faça o que fizer uma potência superior, só pode fazê-lo sem referência a um poder superior a ela, e uma potência superior pode atuar muito mais sem referência a uma inferior. Mas uma inferior pode causar tempestades de granizo e enfermidades, sem ajuda de uma potência maior. Pois como diz o beato Alberto Magno em sua obra de Passionibus Aeris, que salvia (um tipo de erva) podre, quando usada como ele explica, for jogada na água corrente, produzirá as mais temíveis tempestades e tormentas. Mais ainda pode-se dizer que o diabo usa um bruxo, não porque precise de tal agente, apenas porque procura a perdição deste. E podemos nos referir ao que diz Aristóteles no seu terceiro Livro da Ética. O mal é um ato voluntário demonstrado pelo fato de que ninguém executa uma ação injusta a não ser por cometer injustiça, e quem comete uma violação o faz com vistas a seu prazer, e não só para fazer o mal pelo mal.

Mas a lei castiga quem faz o mal, se houvesse atuado só por fazer o mal. Portanto, se o diabo trabalha por meio de uma bruxa, não faz outra coisa senão empregar um instrumento; e como um instrumento depende da vontade da pessoa que o utiliza, e não age por sua livre e espontânea vontade, a culpa da ação não deve ser da bruxa e, portanto ela não deve ser castigada. Mas uma opinião contrária afirma que o diabo não pode fazer mal a humanidade, por si próprio com tanta facilidade e singeleza, como o que lhe é possível provocar por intermédio das bruxas, ainda que sejam suas servidoras. Em primeiro lugar podemos considerar o ato de engendrar. Mas em cada ato que tem efeito sobre outro é preciso estabelecer algum tipo de contato, e como o diabo, que é um espírito, não pode ter esse contato real com o corpo humano, e como não há nada em comum entre eles, utiliza algum instrumento humano, e lhe outorga o poder de ferir por meio do contato físico. E muitos afirmam que isto é demonstrado no texto e na interpretação, do terceiro capítulo da Epístola de São Paulo aos Gálatas: “Oh gálatas insensatos, quem vos fascinou para não obedecer à verdade?” E a interpretação desta passagem refere-se aqueles que possuem olhos singularmente ferozes e funestos, que com um simples olhar podem prejudicar o próximo, e em especial as crianças pequenas. E isto também é confirmado por Avicenna, no último capítulo do terceiro livro Naturalium, quando diz: “Muito com freqüência a alma pode ter tanta influência sobre o corpo do outro, na mesma medida em que tem sobre seu próprio corpo, pois tal é a influência dos olhos de quem com o olhar atrai e fascina, o outro”.

E a mesma opinião é expressa por Al-Gazali no décimo capítulo do quinto Livro de sua Física. Avicenna também sugere, ainda que não apresente esta opinião como irrefutável, que o poder da imaginação pode ou parece modificar os corpos estranhos, nos casos de tal poder ser demasiado ilimitado. Portanto supomos que o poder da imaginação não deve ser considerado como diferente dos outros poderes sensíveis do homem, pois é comum a todos, mas em certa medida os incorpora. E isso é verdadeiro, porque tal poder da imaginação pode alterar os corpos adjacentes, como por exemplo, quando um homem consegue caminhar por uma estreita viga estendida no meio da rua. Mas se essa viga flutuasse sobre águas profundas, não se atreveria a caminhar por ela, porque a imaginação lhe mostraria, com grande força na mente, a idéia do tombo, e então o corpo e o poder de seus membros obedeceria a sua imaginação, e não ao contrário dela, isto é, caminhar em forma direta e sem vacilações. Esta mudança pode comparar-se à influência que exerce o olhar de uma pessoa que a possui, com o qual provoca uma transformação mental, ainda que não existam mudanças reais e corpóreas. Além disso, sobre o argumento que a mudança provocada num corpo vivo, é devida à influência da mente sobre outro corpo vivo, pode-se dar a seguinte resposta. Na presença do assassino, o sangue flui das feridas do cadáver da pessoa assassinada. Portanto, sem poderes mentais, os corpos podem produzir efeitos maravilhosos, e de tal modo, se um homem passar próximo ao cadáver de um homem assassinado, ainda que não o veja, freqüentemente sentirá pavor. Além do mais, existem na natureza algumas coisas que possuem certos poderes ocultos, cuja razão o homem desconhece; como por exemplo, é o imã, que atrai o aço, e muitas outras formas que Santo Agostinho menciona no Livro 20 de A cidade de Deus. E assim as mulheres, para provocarem mudanças nos corpos alheios, usam às vezes certas coisas que vão além de nosso conhecimento, mas fazem isso sem a ajuda do diabo. E porque esses remédios são misteriosos não há motivos para lhes atribuir o poder do demônio, como o atribuiríamos aos encantamentos maléficos produzidos pelas bruxas. Além do mais, elas usam certas imagens e alguns amuletos, que costumam colocar embaixo das ombreiras das portas das casas, ou nos campos em que pastam os rebanhos, ou inclusive onde se congregam os homens, e desse modo enfeitiçam suas vítimas, que muitas vezes acabam morrendo. Mas como essas imagens podem causar efeitos tão extraordinários, parecendo que sua influência é proporcional à que exercem os astros sobre os corpos humanos, pois da maneira como os corpos naturais são influenciados pelos celestes, assim também podem o ser os corpos artificiais. No entanto, os naturais podem encontrar benefício em algumas influências secretas, porém boas. Portanto, os corpos artificiais podem receber tal influência. Em conseqüência, está claro que quem executa obras de cura pode muito bem as executar por meio dessas influências benéficas, e isso nada tem a ver com um poder maligno. Além do mais, aparentemente, os acontecimentos muito extraordinários e milagrosos ocorrem por obra dos poderes da natureza. Pois, coisas maravilhosas, terríveis ou surpreendentes sucedem às forças naturais.

E isto assinala São Gregório em seu Segundo Diálogo: “Os santos executam milagres, às vezes por meio de uma oração, outras apenas pelo seu poder… Há um exemplo para cada um destes meios: São Pedro, com orações devolveu a vida a Tabitha, que estava morta… E ao repreender Ananías e Sapfira, que diziam mentiras, os matou sem orações”. Assim, com sua influência mental, um homem pode converter um corpo material em outro, ou o fazer passar da saúde à doença, e vice-versa. Mais ainda, o corpo humano é mais nobre que nenhum outro, mas devido às paixões da mente se transformam em exaltado ou apático, como ocorre com os homens coléricos ou os que têm medo; e assim produz-se uma mudança ainda maior, a respeito dos efeitos da doença e da morte, que com seu poder podem modificar em grande parte um corpo material. Mas há de se admitir algumas objeções. A influência da mente não pode produzir impressões sobre nenhuma forma que, não seja pela intervenção de algum agente, como já foi dito antes. E estas são as palavras de Santo Agostinho no livro já citado: “É inacreditável que os anjos que caíram do céu obedeçam a alguma coisa material, pois só obedecem a Deus”. E muito menos pode um homem, com seus poderes naturais, provocar efeitos extraordinários e malignos. É preciso responder que ainda hoje existam muitos que se equivocam grandemente neste sentido, inocentando às bruxas e atribuindo toda a culpa as artes do demônio, ou as mudanças que elas provocam em alguma alteração natural.

Estes erros podem ser esclarecidos com facilidade, primeiro, pela descrição das bruxas que São Isidoro oferece em sua Etimologia, capítulo 9: “As bruxas assim são chamadas devido ao negro de sua culpa, isto é, seus atos são mais malignos que os de qualquer outro malfeitor”. E continua: “Agitam e confundem os elementos com a ajuda do diabo, e criam terríveis tormentas de granizo e tempestades”. Mais ainda, diz que confundem a mente dos homens, que os empurram à loucura, a um ódio insano e a desmesurados desejos. Além do mais, continua, com a terrível influência de seus feitiços, como se fosse como uma poção ou veneno, podendo destruir a vida. E as palavras de Santo Agostinho em seu livro A cidade de Deus vêm muito ao caso, pois nos dizem: “… quem é na verdade os magos e as bruxas.” Os magos a quem em geral chamam de bruxos, são denominados assim devido à magnitude de seus atos malignos. São quem com licença de Deus perturbam os elementos, que levam à loucura a mente dos homens que perderam sua confiança em Deus, e que com o terrível poder de seus maus encantamentos, sem poções nem venenos, matam os seres humanos. Como diz Lucano: “Uma mente que não foi corrompida ou embriagada por nenhuma poção nociva perece em conseqüência de um encantamento maléfico”. Por terem chamado os demônios em sua ajuda, se atrevem a derramar males sobre a humanidade, e ainda a destruir seus inimigos com seus encantamentos maléficos. E é indubitável que em operações deste tipo o bruxo trabalha em estreita conjunção com o demônio. Em segundo lugar, os castigos são de quatro tipos: beneficentes, danosos, infligidos por bruxaria e naturais. Os castigos beneficentes infligem-se pelo ministério dos anjos bons, tal como os danosos provem dos espíritos maus. Moisés flagelou o Egito com dez pragas mediante a intervenção dos anjos bons, e os magos só puderam cumprir três destes milagres com a ajuda do demônio. E a peste que caiu sobre o povo durante três dias, em conseqüência do pecado de David, e causou a recontagem da população, onde 72.000 homens do exército de Senaquerib morreram numa noite, foram milagres realizados pelos anjos de Deus, isto é, por anjos bons, tementes a Deus, e cientes que cumpriam Suas ordens. Mas o dano destrutivo se realiza por meio dos anjos maus, cujas mãos atacaram muitas vezes os filhos de Israel, no deserto. E os danos que são singelamente maus e nada mais, são provocados pelo demônio, que trabalha por intermédio de feiticeiros e bruxas. Também há danos naturais, que de alguma maneira dependem da conjunção dos corpos celestes, tais como a escassez, a seca, as tempestades e semelhantes efeitos da natureza. Resulta a evidente e enorme diferença entre todas estas causas, circunstâncias e acontecimentos. Se Jó foi atacado pelo demônio mediante uma maligna doença, isso não vem ao caso. E se alguém muito astuto e curioso perguntar como foi que Jó acabou atacado pelo demônio mediante essa doença, sem a ajuda de um feiticeiro ou bruxa; que saiba que não faz outra coisa, que seguir contracorrente e não se informar sobre a verdade verdadeira. Porque nos tempos de Jó não haviam feiticeiros e bruxas, também não se praticavam essas abominações. Mas a providência de Deus desejou no exemplo de Jó a manifestação do poder do demônio, inclusive sobre os homens bons, para que pudéssemos aprender a estar em guarda contra Satã, e mais ainda, para que graças ao exemplo desse patriarca a glória de Deus brilhasse em todas as partes, já que nada ocorre, a menos que Deus permita. A respeito da época em que surgiu essa maligna superstição, a bruxaria, devemos distinguir primeiro os adoradores do demônio quem eram simples idólatras.

E Vincent de Beauvais, em seu Speculum Historiale, cita diversas autoridades eruditas e diz que quem primeiro praticou as artes da magia e da astrologia foi Zoroastro, de quem se diz que foi Caim, o filho de Noé. E segundo Santo Agostinho, em seu livro A cidade de Deus, Caim lançou grandes gargalhadas quando nasceu, demonstrando que era um servidor do demônio, e ainda sendo um rei grande e poderoso, foi vencido por Nino, filho de Belo, que construiu Nínive, cujo reinado foi o começo do reino de Assíria, na época de Abraão. Esse Nino, em conseqüência de seu demente amor por seu pai, quando este morreu ordenou que lhe levantassem uma estátua, e qualquer criminoso que se refugiasse ali estaria a salvo de todo castigo que estivesse sujeito. Desde então os homens começaram a adorar imagens, como se fossem deuses; mas isso ocorreu depois dos primeiros anos da história, pois nos primeiros tempos não havia idolatria, já que então os homens conservavam alguma lembrança da criação do mundo, como diz São Tomás, no Livro 2, pergunta 95, artigo 4. Ou bem poderia ter origem em Nembroth, que obrigou os homens a adorar o fogo; e assim, na segunda era do mundo começou a Idolatria, que é a primeira de todas as superstições, tal como a Adivinhação é a segunda e a Observação dos Tempos e das Estações a terceira. A prática dos bruxos se insere no segundo tipo de superstições, a saber, a Adivinhação, já que invocam o demônio de maneira expressa. E há três tipos desta superstição: a Nigromancia, a Astrologia, ou melhor, Astromancia, observação supersticiosa das estrelas, e a Oniromancia. Explicarei tudo isso em detalhes para que o leitor possa entender que estas artes do mal não surgiram de repente no mundo, mas se desenvolveram com o tempo e, portanto é pertinente assinalar que não havia bruxos nos dias de Jô. Pois à medida que passavam os anos, como diz São Gregório em sua Moral, crescia o conhecimento dos santos e, portanto também aumentavam as artes negras do demônio. O profeta Isaías diz: “A terra está preenchida do conhecimento do Senhor” (XI, 6).

E assim neste ocaso e escuridão do mundo, em que floresce o pecado por todos os lados e em todas as partes, e a caridade se esvai, abundam as obras dos bruxos e suas iniqüidades. E como Zoroastro se entregou por inteiro às artes mágicas, só o demônio o impeliu a estudar e observar os astros. Desde muito remotamente os feiticeiros e as bruxas realizam pactos com o diabo, e mantém conivência com ele, para causar danos aos seres humanos. Isso é demonstrado no sétimo capítulo do Êxodo, onde, pelo poder do demônio, os magos do Faraó fazem coisas extraordinárias, a imitação das pragas que Moisés lançou sobre o Egito pelo poder dos anjos bons. Disso, segue o ensinamento católico, de que para provocar o mal a bruxa pode colaborar e colabora com o diabo. E qualquer objeção a isto pode ser respondida em poucas palavras, como segue: 1. Em primeiro lugar, ninguém nega que verdadeiros danos e prejuízos que na pratica ou em forma visível afligem os homens, animais, frutos da terra, e que com freqüência se produzem sob a influência dos astros, podem ser muitas vezes provocados pelos demônios, quando Deus permite que assim a façam. Pois como diz Santo Agostinho no Quarto Livro de A Cidade de Deus, os demônios podem usar o fogo e o ar, se Deus lhes permitir.

E um comentarista assinala: Deus castiga pelo poder de dois anjos maus. 2. Sobre isso segue, como é evidente, a resposta a qualquer objeção relativo a Jó, e a qualquer objeção que possa fazer frente a nossa exposição dos começos da magia no mundo. 3. Em relação ao fato de que a salvia podre que se deixa cair na água corrente produz, como dizem, algum efeito negativo, sem a ajuda do demônio, ainda que possa não estar totalmente separado da influência de alguns astros, queremos assinalar que não temos intenção de discutir a boa ou má influência dos astros, mas apenas a bruxaria, e portanto isto se torna alheio ao assunto. 4. Com respeito ao quarto argumento, não há dúvida que o demônio só utiliza os bruxos para causar danos e destruição. Mas quando se deduz que não devemos castigá-los, só porque atuam como instrumentos, e não movidos por sua vocação, senão a vontade e o prazer do agente principal, existe uma resposta: porque são instrumentos humanos e livres agentes, e ainda que assinaram um contrato com o demônio, gozam de liberdade absoluta; como se sabe por suas próprias revelações – e falo de mulheres convictas queimadas na fogueira, estimuladas à vingança, ao mal e ao dano, se queriam escapar dos castigos e golpes infligidos pelo demônio, – tais mulheres colaboram com o demônio, e mesmo estando unidas a ele pela profissão na qual desde o começo se entregaram a seu poder livre e voluntariamente. Em relação aos argumentos nos quais se demonstram que certas anciãs possuem conhecimentos ocultos que lhes permitem provocar efeitos extraordinários e com certeza malignos, sem a ajuda do diabo. É preciso entender que retirar um argumento particular de um universal é contrário à razão. E quando, como parece, em todas as Escrituras não se pode encontrar um único caso desses, em que se fale dos feitiços e encantamentos que praticam as velhas, não devemos chegar à conclusão de que nunca foi assim. Mais ainda, a respeito dessas passagens as autoridades deixam em aberto a questão, isto é, com referência ao tema, se os encantamentos têm eficácia sem a colaboração do demônio. Esses feitiços ou fascinações aparentam poder dividir-se em três tipos. Primeiro, os sentidos se enganam, e isso, em verdade, pode ser feito por médios mágicos, ou seja, pelo poder do diabo, se Deus assim permitir. E os sentidos podem ser esclarecidos pelo poder dos anjos bons. Em segundo lugar a fascinação pode ser realizada por certo deslumbramento ou extravio, como quando disse o apóstolo: “Quem vos fascinou?” Gálatas III 1. Em terceiro lugar, determinada fascinação pode exercer-se por meio do olhar, sobre outra pessoa, e pode ser pernicioso e mau. E desta fascinação falaram Avicenna e Al-Gazali; também São Tomás a menciona na parte 1, pergunta 117. Pois diz que a mente de um homem pode ser modificada pela influência de outra. E a influência que se exerce sobre o outro procede com freqüência dos olhos, pois neles se podem concentrar certa influência sutil. Porque os olhos dirigem o olhar a certo objeto sem prestar atenção as outras coisas, mas diante da visão de uma impureza, como por exemplo uma mulher durante seus períodos mensais, os olhos, por assim dizer, atraem alguma impureza. Isso é o que diz Aristóteles em seu livro Sobre o Sonho e a Vigília, e assim, se o espírito de alguém se encontra inflamado de malícia ou cólera como ocorre com freqüência nas velhas, o espírito perturbado olha através de seus olhos, pois seu semblante é muito maligno e danoso, e com freqüência aterrorizam as crianças de tenra idade com extrema impressão. E é possível que muitas vezes isso seja natural, permitido por Deus; mas, por outro lado, pode ser que estes olhares sejam, muitas vezes, inspirados pela malícia do demônio, com quem as velhas bruxas estabeleceram algum contrato secreto.

A próxima questão surge em relação a influência dos corpos celestes, e aqui encontramos três erros muito comuns, mas os explicaremos à medida que apresentarmos outros assuntos. Com respeito aos trabalhos de bruxaria, vemos que algum deles se deve à influência mental sobre outrem, e em alguns casos essa influência pode ser boa, mas o motivo é o que a torna maligna. E existem quatro argumentos principais que devem opor-se contra quem nega que existam bruxas ou operações mágicas que podem agir em conjunção com certos planetas e astros, e que pela malícia dos seres humanos pode se fazer o mal mediante a modelação de imagens, e o uso de encantamentos e desenhos de caracteres misteriosos. Todos os teólogos e filósofos concordam que os corpos celestes são guiados. Dirigidos por certos médiuns espirituais. Mas esses espíritos; são superiores a nossa mente e alma e, portanto, podem influir sobre a mente e o corpo de um homem, de modo que o torne persuadido e orientado a executar algum ato humano. Mas para tentar uma explicação mais plena destes assuntos podemos considerar algumas dificuldades, com cuja análise, chegará à verdade com uma maior clareza. Primeiro, as substâncias espirituais não podem conduzir os corpos a alguma outra forma natural, a não ser que o façam por intermédio de algum agente. Portanto, por maior que seja a influência mental, não pode produzir mudança alguma na mente ou índole de um homem. Mais ainda, várias universidades, em especial a de Paris, condenaram o seguinte artifício: Que um encantador pode lançar um camelo a uma profunda vala apenas lhe dirigindo o olhar. E então se condena o artigo segundo o qual um ser corpóreo deve obedecer a uma substância espiritual, se isso for entendido humildemente, isto é, se a obediência implica em alguma troca ou transformação. Pois em relação a isso, só Deus deve ser obedecido absolutamente. Se levar-mos em conta estes pontos, podemos logo perceber quando a fascinação ou a influência do olhar, de que falamos se torna possível, e em qual sentido não é. Porque não é possível que por meio dos poderes naturais da mente um homem conduza esses poderes com os olhos de maneira tal, que, sem a ação de seu próprio corpo ou de algum outro meio, possa prejudicar o corpo de outro homem. Nem é possível que com os poderes naturais da mente um homem produza alguma transformação segundo sua vontade, e mesmo dirigindo esse poder por intermédio dos olhos, transforme por inteiro o corpo de um homem em quem fixou seu olhar, tal como lhe convêm. Portanto, de nenhuma destas maneiras um homem pode influir sobre outro ou fascina-lo, pois homem algum, só com os poderes naturais de sua mente, possui uma influência tão extraordinária. Em conseqüência, querer demonstrar que os efeitos maléficos podem ser provocados por algum poder natural, isto é, que se trata do poder do demônio; isto está, por certo, bem longe da verdade. Isso não obstante, podemos expor com maior clareza, como é possível que um olhar cuidadoso realize algum dano. Pode ocorrer que quando um homem ou uma mulher olham com firmeza para uma criança, esta, devido a seu poder de visão e a sua imaginação, recebe uma impressão muito sensível e direta. E é freqüente que uma impressão deste tipo venha acompanhada por uma mudança corporal, e como os olhos são os órgãos mais ternos do corpo, são muito passiveis de tais impressões. Portanto, pode acontecer que recebam alguma má impressão e mudem para pior, já que com freqüência os pensamentos da mente ou os movimentos do corpo ficam impressos em especial nos olhos e mostrados por eles. E assim é possível que aconteça que um olhar colérico e maligno, fixado com firmeza numa criança, lhe imprima de tal modo na memória. E é sua imaginação, que se reflete em seu próprio olhar, e então se seguem resultados concretos, como por exemplo, que perca o apetite e não consiga ingerir alimentos, e que piore e fique doente. E às vezes vemos que a visão de um homem doente dos olhos pode fazer que aqueles que o olham se tornem cegos ou debilitados, ainda que grande parte disto, não é, mais que efeito de pura imaginação. Aqui se poderiam apresentar vários outros exemplos do mesmo tipo, mas com vistas à concisão não os analisaremos em detalhes. Tudo isto é confirmado pelos comentaristas do Salmo Qui timent te uidebunt me. Há grande poder nos olhos, e isso aparece inclusive nas coisas naturais. Pois se um lobo vê primeiro um homem, o homem fica mudo. Mais ainda, se um basilisco* vê um homem primeiro, seu olhar é fatal; mas se este o vê antes poderá matá-lo; e a razão do basilisco conseguir matar um homem com o olhar, é que quando o vê, devido a sua cólera seu corpo coloca em movimento um terrível veneno, que pode ser lançado pelos olhos, e com o qual infecta a atmosfera com uma fragrância mortal.

E assim o homem respira o ar infectado, e fica alucinado e morre. Mas quando o animal é visto primeiro pelo homem, e se este desejar matá-lo, se arma com espelhos, e ao basilisco ver-se no espelho lançará seu veneno contra o reflexo, e o veneno voltará ao animal matando-o. Mas não parece claro porque o homem que assim matou o basilisco não morreu também, e só podemos chegar à conclusão de que isso se deve a alguma razão que ainda não entendemos com clareza. (*) Basilisco: Réptil fantástico de oito pernas, segundo alguns em forma de serpente, capaz de matar pelo bafo, pelo contato ou apenas pela visão e segundo outros em forma de serpente com um só olho na fronte. (NT-Pt) Até agora expusemos nossas opiniões sem preconceito algum, nos abstivemos de todo julgamento apressado ou irreflexivo, e não nos desviamos dos ensinamentos e das santas escrituras. Chegamos, pois, à conclusão, de que a verdade católica é a de que, para provocar esses males que constituem o tema da discussão, as bruxas e o demônio sempre trabalham juntos, e no que se refere a estes aspectos, um nada pode fazer sem a ajuda e a colaboração do outro. Já tratamos a respeito desta fascinação. E agora, com referência ao segundo ponto, a saber, o de que o sangue flui de um cadáver na presença do assassino. Segundo Speculum Naturale de Vincent de Beauvais, cap. 13. A ferida, por assim dizer, resulta influenciada pela mente do assassino, e encontra uma atmosfera impregnada de violência e ódio, e quando o assassino se aproxima o sangue acumulase, e brota do cadáver. Pois aparentemente essa atmosfera que foi criada e, por assim dizer, penetrou na ferida devido a presença do assassino, este se perturba e se comove em grande parte, e em conseqüência deste movimento sai o sangue do corpo morto.

Há aqueles que declaram que isso se deve a outras causas, e dizem que o sangramento é a voz do morto gritando através da terra contra o assassino que se encontra presente, e isso é conseqüência da maldição pronunciada contra o primeiro assassino Caim. E a respeito do horror que sente uma pessoa quando passa próxima de um cadáver de um homem assassinado, ainda que não o conheça, é de maneira alguma a proximidade de um corpo morto que causa o horror, isso é psicológico, infecciona o ambiente e transmite à mente um estremecimento de medo. Mas advertimos que todas estas explicações não afetam de maneira alguma a verdade do mal provocado pelas bruxas, já que são todas muito naturais e surgem de causas naturais. Em terceiro lugar, como já dissemos acima, as operações e ritos das bruxas se situa na segunda categoria, a das superstições, chamada Adivinhação; e nesta categoria existem três espécies, mas o argumento não diz respeito a terceira, que corresponde a uma espécie diferente, pois a bruxaria não é só uma adivinhação qualquer, mas uma adivinhação cujas operações se executam mediante invocações expressas e explícitas do demônio; e isso pode ser feito de muitas maneiras, como por exemplo por Nigromancia, Geomancia, Hidromancia, etc. Por onde esta adivinhação que exercem, quando efetuam seus feitiços, deve ser julgada como o cúmulo da perversidade criminosa; ainda que alguns tentassem a considerar por outro ponto de vista? E argumentam que como não conhecemos os poderes ocultos da natureza, pode ser que as bruxas empreguem ou tratem de empregar esses poderes ocultos. Supondo que se utilizassem os poderes naturais das coisas naturais para produzir um efeito natural, isso seria muito correto, como evidente. Ou suponhamos inclusive que se em forma supersticiosa empregam coisas naturais, como por exemplo, mediante a escrita de certos caracteres ou nomes desconhecidos de alguns, e que depois usam essas runas (cartas, pedras, símbolos marcados) para restabelecer a saúde de uma pessoa, ou para engendrar uma amizade, ou com alguma finalidade útil, e em maneira alguma para fazer danos ou prejuízos, digo que é preciso admitir que em tais casos não há invocação direta dos demônios; não obstante, não é possível que tais feitiços se pratiquem sem uma tácita invocação, pela qual se deve considerar que esses encantamentos são totalmente ilegais. E porque estes e muitos outros encantamentos parecidos possam se localizar na terceira categoria a das Superstições, isto é, na ociosa e vã observação do tempo e das estações, isso não é de maneira alguma um argumento pertinente em relação à heresia das bruxas. Mas nesta categoria, da Observação do Tempo e as Estações, há quatro espécies diferentes. Um homem pode usar as observações para adquirir certos conhecimentos; ou dessa maneira tratar de informar-se a respeito dos dias e coisas castas ou nefastas; ou usar palavras e orações sagradas como encantamento, sem relação com seu significado; ou querer e desejar provocar alguma mudança benéfica num corpo. Tudo isso foi amplamente discutido por São Tomás na questão, que pergunta se essas observações são legais, em especial quando se trata de produzir uma mudança benéfica num corpo, a saber, o restabelecimento da saúde de uma pessoa. Mas quando as bruxas observam o tempo e as estações deve se entender que suas práticas correspondem ao segundo tipo de superstição e, portanto, ao que elas se referem, as perguntas pertinentes a essa terceira classe são em todo caso alheias ao assunto. Passamos agora a uma quarta proposição, na medida em que as observações do tipo que analisamos se costumam fazer certos diagramas e imagens, mas pertencem a duas classes diferentes, que diferem por inteiro entre si, que são as Astronômicas e as Nigromanticas. Contudo na nigromancia há sempre uma expressa e especial invocação dos demônios, pois nessa arte implica que houve entre eles um pacto e um expresso contrato. Portanto, consideremos apenas a astrologia. Nesta não há pacto, e consequentemente, não há invocação, salvo quando exista certo tipo de invocação tácita, pois as figuras dos demônios e seus nomes aparecem às vezes em diagramas astrológicos. E uma vez mais, os signos nigromanticos são escritos sob a influência de determinados astros, para compensar a influência e oposições de outros corpos celestes, e imprimi-los, pois os signos e caracteres dessa classe encontram-se com freqüência gravados em anéis, jóias ou algum outro metal precioso, mas os signos mágicos são gravados sem referência alguma à influência dos astros, e com freqüência em qualquer substância, inclusive em substâncias sórdidas e vis, que, quando enterradas em determinados locais, provocam danos, prejuízos e doenças. Porem estamos analisando os diagramas que são traçados em relação aos astros. E estes diagramas e imagens nigromanticos não possuem relação alguma com os corpos celestes. Portanto, sua consideração não tem nada haver com este estudo. Mas, muitas destas imagens utilizadas em ritos supersticiosos não possuem eficácia, isto é, no que se refere a sua fabricação, ainda que seja possível que o material do qual são compostas possuam determinados poderes, contudo, isso não se deve ao fato, de que possam ser fabricadas sob a influência de alguns astros. Porem muitos afirmam que de todo modo é ilegal utilizar, inclusive, imagens como essas. Mas as imagens criadas pelas bruxas não possuem poderes naturais, muito menos o material do qual são formadas; mas modelam essas imagens por ordem do demônio, para que ao fazê-lo possam, por assim dizer, burlar a obra do Criador, e provocar Sua cólera, de modo que, em castigo as maldades delas, Ele permita que muitas pragas caiam sobre a terra. Para piorar sua culpa, satisfazem-se em modelar tais imagens nas estações mais solenes do ano. Com relação ao quinto ponto, São Gregório fala do poder da graça e não do poder da natureza. E já que, como diz São João, nascemos de Deus, o que há de estranho, então, que os filhos de Deus gozem de poderes extraordinários. A respeito do último ponto diremos que uma simples semelhança está fora do assunto, porque a influência da própria mente sobre o próprio corpo é diferente de sua influência sobre outro corpo. Porque, dado que a mente encontra-se unida ao corpo como se este fosse a forma material daquela, e as emoções são um ato do corpo, porem separadas; as emoções podem ser modificadas pela influência da mente, sempre que exista alguma mudança corporal, calor ou frio, ou alguma alteração, inclusive a própria morte. Mas para mudar o corpo não basta um ato da mente em si mesma, salvo que possa haver algum resultado físico que modifique o corpo. Daí as bruxas, sem o exercício de um poder natural, e apenas com a ajuda do diabo, podem provocar efeitos danosos. E os próprios demônios podem fazê-lo apenas mediante a utilização de objetos materiais como instrumento, tais como osso, cabelo, madeira, ferro e toda classe de objetos desse tipo, a respeito desta ação, trataremos em detalhe em outro ponto. E agora a respeito ao teor da Bula de nosso Santíssimo Padre o Papa, analisaremos a origem das bruxas, e como é que nos anos recentes suas obras se multiplicaram tanto entre nós. E deve ter-se em conta que para assim ocorra, têm de coincidir três coisas: o demônio, a bruxa e a permissão de Deus, que tolera, que tais coisas existam. Pois Santo Agostinho diz que a abominação da bruxaria surgiu da pestífera vinculação do gênero humano com o diabo. Portanto é claro que a origem e o aumento dessa heresia nascem desse vínculo de peste, fato que muitos autores confirmam. Devemos em especial observar que esta heresia, a bruxaria, não só difere de todas as outras, mas não apenas, no sentido de um pacto tácito, mas por um definido e expresso com clareza, para blasfêmia do Criador que se esforça ao máximo em profaná-lo e causar danos as Suas criaturas, pois todas as demais simples heresias não fazem um pacto aberto com o demônio, isto é, nenhum pacto tácito ou expresso, ainda que seus erros e incredulidades devam se atribuir de forma direta ao Pai dos erros e das mentiras. Mais ainda, a bruxaria difere de todas as demais artes perniciosas e misteriosas no sentido de que, de todas as superstições, é a mais conflitante, a mais maligna, e a pior, pelo qual deriva seu nome por fazer o mal, e ainda por blasfemar contra a verdadeira fé. (Maleficae dictae, a Maleficiendo, seu a mate de fide sentiendo). Além disso, em especial assinalamos que na prática deste mal abominável são necessários quatro pontos em particular. Primeiro, renunciar de maneira mais profana à fé católica, ou pelo menos negar certos dogmas da fé; segundo, dedicar-se em corpo e alma a todos os males; terceiro, oferecer a Satanás crianças não batizadas; quarto dedicar-se a todo tipo de luxuria carnal com íncubos e súcubos*, e a todo tipo de deleites asquerosos.

Íncubos e Súcubos: Entidades demoníacas desencarnadas íncubos (masculinos) súcubos (femininos). (NT-Pt) Queira Deus pudéssemos supor que nada disso é verdadeiro, e tudo puramente imaginário, e que nossa Santa Mãe, a Igreja, estivesse livre da lepra de tal abominação. Este é o conceito da Sede Apostólica, a única Senhora e Mestra de toda a verdade, esse julgamento, expresso na Bula de nosso Santo Padre o Papa, nos assegura e infundi em nossa consciência que estes delitos e males floresceram entre nós, e não nos atrevemos a nos abster de nossa investigação, sobre eles, a não ser quando colocamos em perigo nossa própria salvação. E, portanto devemos examinar em detalhe a origem e o avanço dessas abominações; haverá muito trabalho, por certo, mas confiamos que cada detalhe será debatido com a maior exatidão e cuidado, por quem ler este livro, pois aqui não haverá nada contrário à razão, nada que difira das palavras das Escrituras e da tradição dos Padres. Agora, bem existem, por certo, duas circunstâncias muito comuns na atualidade, a saber, a vinculação das bruxas com familiares, íncubos e súcubos, e o horrível sacrifício de crianças pequenas. Portanto trataremos em especial destes assuntos, de modo que em primeiro lugar analisaremos a esses mesmos demônios, em segundo às bruxas e seus atos, e em terceiro por final, pesquisaremos porque tolera-se que existam essas coisas. Pois bem, esses demônios atuam devida sua influência sobre a mente do homem, e preferem copular sob a influência de certos astros ao invés de outros, pois parece que em certas ocasiões sua semente engendra e procria crianças com mais facilidade. Portanto, devemos estudar porque os demônios atuam na conjunção de determinados astros, e quais são esses momentos. Há três pontos principais para examinar. Primeiro, se estas abomináveis heresias podem multiplicar-se pelo mundo graças a quem se entrega aos íncubos e súcubos. Segundo, se suas ações não possuem certos poderes extraordinários quando realizadas sob a influência de determinados astros. Terceiro, se esta abominável heresia não e difundida por quem de maneira profana sacrifica crianças a Satã. E mais ainda, quando tenhamos estudado o segundo ponto, e antes de passar ao terceiro, consideraremos a influência dos astros, e qual poder exercem em atos de bruxaria. E com respeito ao primeiro assunto, existem três dificuldades que devem esclarecidas. A primeira é uma consideração geral desses demônios chamados íncubos. A segunda é mais especial, pois devemos perguntar: Como é possível que esses íncubos executem o ato humano da cópula? A terceira também é especial: Como unem-se as bruxas a esses demônios e copulam com eles?


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