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de Severino Cavalcante (1976).
Excerto de “Feitiços do Catimbó”.
O catimbó praticado no Nordeste é bem diferente do candomblé, do xangô e da umbanda. Não possui, como os cultos acima referidos, uma hierarquia sacerdotal ou uma iniciação. Não há também vestimentas especiais nem instrumentos sagrados, a não ser o maracá, usado pelos mestres, exatamente como o faziam os pajés das tribos brasileiras. O maracá é um objeto sacro, indispensável ao rito da “fumaça”, ou melhor, à sessão coletiva.
Outro objeto importantíssimo é o cachimbo, ou marca, usado pelos Mestres do Além para defumar e trabalhar na magia. O catimbozeiro sopra pelo fornilho, dirigindo o fumo pelo tubo. Este trabalho é chamado, como dissemos anteriormente, de “fumaça”. Qualquer fumaça para o bem, ou fumaça às direitas, deve ser feita às segundas, quartas e sextas. Para o mal, ou fumaça às esquerdas, às terças, quintas e sábados. Aos domingos não é dia de catimbó, pois, afirmam os catimbozeiros, é o dia de descanso dos Mestres dos Reinos Encantados.
O mestre é o chefe do catimbó, sendo o ritual que comumente pratica exatamente igual à feitiçaria primitiva. O catimbó nasceu no século XVI, quando veio da Europa a prática da Magia Negra, trazida pelos colonos portugueses, acostumados a um catolicismo mesclado de crendices e restos de religiões pagãs. O Santo Ofício, na Bahia, no ano de 1591, já denunciava essa prática, chamando os que dela participavam de “filhos do Diabo”, bruxos e feiticeiros. Em Pernambuco, por volta de 1600, também os sacerdotes inquisidores descobriram os catimbozeiros em suas práticas macabras, em suas mesas, com chaves encantadas e cachimbos fumacentos.
Orações fortes, preparação de amuletos, invocações e exorcismos são constantes no bruxedo do sertão. Estudaremos todo o poder desses magos caboclos, desses feiticeiros mulatos, e mostraremos a você, leitor, uma visão estranha do mundo mágico do sertanejo.
As invocações chamam os Mestres do Além para “baixarem” e trazerem cura e boa sorte para os homens. Ao baixar das entidades invocadas, são entoadas as suas “linhas”, ou melodias particulares, características de cada Mestre, e que revelam a sua vida terrena.
Os mestres são famosos e conhecidos. Quando a medicina falha ou o poder aquisitivo dos sertanejos não permite que consultem médicos, lá estão os catimbozeiros, receitando ervas, preceitos, benzendo feridas, rezando e praticando a medicina popular e mágica, que sempre existiu e sempre existirá.
Mestre Carlos é um dos mais famosos. Angélica e Zé Pelintra também. Manicoré, Maria do Balaio, Maria Redonda, e outros formam os deuses, os demônios, os mitos principais. Não há uma mitologia propriamente dita, uma hierarquia divina, mas sim uma mistura de crendices e práticas mágicas.
Reis e Espíritos Feiticeiros
Rei Hêrom é um soberano selvagem. É chamado de curador. Sua característica é que procura doutrinar os assistentes da mesa de catimbó. É católico e apaziguador. Cura especialmente doentes de pele e feridas, e se assemelha a Obaluaê, na essência de sua personalidade mítica. Deve ser um mito nascido pelas histórias medievais, contadas de boca em boca pelos colonos europeus. Suas lendas são como as do Rei Artur e seus cavaleiros andantes.
Mestre Carlos é o rei dos mestres catimbozeiros; é bebedor e só trabalha com sua garrafa ao lado. É popularíssimo, estrábico e ciumento. Quando viveu na Terra, era branco, criado em cidade pobre.
Bom-Florar é um mestre casamenteiro. Ajuda as moças casadoiras. É outro que gosta da cachaça, e trabalha na “mesa” sempre com a garrafa ao lado. É muito querido pelos sertanejos.
Mestre Xaramundi é curador e raizeiro. Procura descobrir a doença e derrubá-la com ervas escolhidas e fumaça de cachimbo.
Anabar é uma cabocla do Rio Negro. Ajuda em casos amorosos e em problemas de família.
Iracema é uma cabocla, rainha da Tanema. É bela, morena e viveu nas tribos brasileiras. É muito amada pela gente da “fumaça” às direitas.
Taruatá é um pajé velho, amazônico e raizeiro famoso. Entre os catimbozeiros afirma-se que cura quase todas as doenças. Suas receitas vamos dar em outro capítulo.
Mestre Pequeno é característico do catimbó de Pernambuco. É curandeiro também. Possui rezas fortes e faz amuletos poderosos.
Mestre Manoel Cadete é rei do Vajucá. Tem toda uma corte de mestres a segui-lo. Possui dons benéficos e curadores.
Mestra Angélica é especialista em doenças femininas, parteira e protetora das mulheres casadas. Muito querida entre as rezadeiras, que a invocam frequentemente.
Manicoré é típico pajé amazônico e curador. Só é chamado para tratar de feridas bravas e doenças difíceis. É um dos mais antigos mestres do catimbó. É amado e respeitado.
Mestre Tupá é indígena e pajé. Apresenta todas as características do indígena brasileiro. O próprio nome indica a origem indígena, pois Tupá é o nome de um dos maiores deuses da mitologia tupi.
Mestre Itapuã é pajé amazônico, guerreiro e vencedor de batalhas mágicas. Trata de casos desesperados e complicados.
Tabatinga é o rei dos feiticeiros. Indígena, sumamente perverso, só é chamado para trabalhos do mal. Usa arco e flecha para matar e aprisionar e, quando chega na sessão, apaga todas as velas. No escuro, a incorporação deste feiticeiro é impressionante. Lembra as bruxarias antigas e as festas de magia negra medievais. Vivendo isolado, na treva, Tabatinga, ao chegar na mesa, dá logo o grito de posse da sessão. Tabatinga só tem um companheiro, chamado José Pereira, que não tem linha e, chegando no catimbó, grita ofensas contra Deus. Quando vivo, José Pereira matou pai, mãe, madrinha, padrinho, mulher e cinco filhos. É um espírito trevoso, mau, e só faz “fumaça às esquerdas”. Temido nos catimbós, quando sentem que ele pode se aproximar, botam trave, isso é, fazem rezas de empecilho, para não deixá-lo incorporar.
Príncipe da Jurema é um feiticeiro seríssimo, amado pelo povo, coroado nas matas e sertões. É benéfico, carinhoso, mas imponente.
Pai Joaquim é preto velho, dizem que veio da Índia e que, quando chega nas sessões, vem dançando alegremente. Trabalha com agulha enfeitiçada nos olhos de morcego. É verdadeiramente um bruxo negro.
Urubatã é pajé, mora no Rio Verde e vive dentro d’água. É um espírito das águas, qual ninfas e nereidas ou netunos. É combatente de feitiço. Suas orações são para quebrar mironga e aliviar contra males nascidos da Magia e da maledicência. É dos mais antigos pajés do catimbó. Urubatã é querido pela gente do sertão e sempre invocado às segundas, quartas e sextas.
Zinho é feiticeiro, só trabalha com cachimbos (marcas) enormes. Tanto trabalha para a direita como para a esquerda. Quando zangado, usa um punhal chamado Satanás e faz magia negra diabólica. Gosta de atrair os espíritos de ciganos ruins para fazer maldade ou para saber o futuro. Não é muito temido, pois amolece com facilidade, dizem os catimbozeiros.
Outros mestres famosos são Luís dos Montes, Antônio Tirano, Malunguinho, Inácio de Oliveira, Faustina, famosa protetora das moças virgens, aclamada pelas donzelas quando sentem o perigo por perto. Ainda temos João Pinavaruçu e As Meninas da Saia Verde, semelhantes aos erês do candomblé e às caboclinhas da umbanda.
Um dos feiticeiros mais aclamados pelos vaqueiros, quando perdem novilhos, ou pelos marginais, quando fogem da polícia, é Tanguri-Pará, mestre caboclo do Rio Madeira.
As Aldeias no Além
Os mestres do espaço habitam reinados no infinito. Doze aldeias fazem um reinado e cada aldeia tem três mestres. Neles, nos reinados infindos, há cidades douradas, florestas verdes e iluminadas, serras cor de prata, onde cantam as jandaias, rios e casas. Os reinados são:
- Vajucá,
- Tigre,
- Canindé,
- Urubá,
- Juremal (concepção semelhante a Jurema ou Macaía, da umbanda),
- Fundo do Mar (como o Aiucá dos candomblés)
- e Josafá (influência bíblica).
Alguns chamam o reinado do Fundo do Mar de Tanema, onde Iracema é a rainha e senhora. Os mais maravilhosos são o do Juremal e Vajucá. A população destes reinados é imprevisível. Caiporas e Sacis moram no Juremal; Iaras, ondinas, Nanã Gie, ninfas caboclas, santas, como Madalena, moram no Fundo do Mar. Feiticeiros e bruxos habitam Canindé; Tigre é morada de raizeiros e perigosos mestres.
Os mestres vivos têm poderes intermináveis, maviosos, mas há uma maneira de perdê-los ou de diminuir estes poderes. Se os mestres praticam sempre o mal, ou são pederastas ou ladrões, vão se tornando sem forças espirituais. Os outros catimbozeiros perdem as forças pela mesma razão, afirma o povo sertanejo. Todos os catimbozeiros têm uma característica: usam uma semente por baixo da pele, espécie de quisto roxo, que marca todos os feiticeiros do sertão. É a pedra fatal dos bruxos portugueses. Impressiona esta marca roxa. Hoje há alguns catimbós que possuem alguns personagens sem este toque mágico, mas, para a maioria, esta marca é imprescindível.
A possessão pelos mestres das aldeias do espaço é bem simples. Não há um aparato, como nos candomblés e na umbanda. E, para que o espírito vá embora, parta para o seu mundo no espaço, no Juremal ou no Fundo do Mar, basta que um mestre chegue perto do possuído e diga, batendo na sua testa: TRUFA RIÁ. Ou então: TRUNFEI! TRUNFÁ! TRUNFÁ RIÁ!
No mundo fantástico dos catimbós, em meio à fumaça dos cachimbos, ao fanatismo, às bebidas fortes, há um filão de esperança, uma ansiosa espera de melhoria, tanto de saúde como de bom agouro. E é esta esperança, este sonho, que faz com que o catimbó não se extinga, não desapareça entre os moradores das casas de sopapo, nos casebres de sapé.
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