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excerto de O Ramo de Ouro
Sir James George Frazer. Trad. Waltensir Dutra.
Por nenhum outro povo o costume de sacrificar o representante humano de um deus parece ter sido observado com a freqüência e a solenidade dos astecas do antigo México. Estamos bem familiarizados com o ritual desses sacrifícios notáveis, pois foi detalhadamente descrito pelos espanhóis que conquistaram o México no século XVI, cuja curiosidade foi naturalmente despertada pela descoberta, nessa longínqua região, de uma religião bárbara e cruel que apresentava tantos pontos curiosos de analogia com a doutrina e o ritual de sua própria igreja. “Escolhem um cativo”, diz o jesuíta Acosta, “que lhes parece bastante bom, e antes de sacrificá-lo aos seus ídolos, dão-lhe o nome do ídolo ao qual ele vai ser sacrificado e o enfeitam de ornamentos semelhantes aos do ídolo, dizendo que ele representa esse ídolo. E durante o tempo que durava essa representação, que era de um ano em certas festas, em outras correspondia a seis meses, e em outras a menos, reverenciavam e adoravam a vítima da mesma maneira que o ídolo propriamente dito; e nesse tempo ele comia, bebia e se divertia. Quando passava pelas ruas, as pessoas prestavam-lhe homenagens, todos lhe traziam esmolas juntamente com crianças e doentes para que os curasse e abençoasse. Deixavam que ele fizesse tudo o que desejasse, apenas o faziam acompanhar por dez ou doze homens para que não fugisse. E ele (com o objetivo de que lhe prestassem reverência quando passasse) por vezes tocava uma pequena flauta, para que as pessoas se preparassem para adorá-lo. Chegado o
Sacrifícios humanos
A vítima asteca, com vestes do deus, toca música e dança antes de ser sacrificada e esquartejada. Kings!orough, Antiquities of Mexico, 1830-1834, Bodleian Library, Oxford.
Vítimas de sacrifícios humanos foram encontradas nos pântanos do norte da Alemanha e da Escandinávia. Este homem de Tollund foi lançado a um pântano com um laço em volta do pescoço, há cerca de dois mil anos. Silkeborg Museum, Dinamarca. momento da festa e estando ele gordo, matavam- no, abriam-no e comiam-no, fazendo dele um sacrifício solene.”
Essa descrição geral do costume pode ser ilustrada agora com exemplos particulares. Assim, na festa chamada de Toxcatl, a maior do ano mexicano, um jovem era anualmente sacrificado personificando Tezcatlipoca, “o deus dos deuses”, depois de ter sido mantido e adorado como a grande divindade em pessoa durante todo um ano. De acordo com o velho franciscano Sahagun, nossa melhor autoridade sobre a religião asteca, o sacrifício do deus humano era celebrado na Páscoa ou uns poucos dias depois, correspondendo, portanto, se ele estiver certo, na data e em caráter, às festas cristãs da morte e da ressurreição do Redentor. Mais exatamente, Frei Sahagun nos diz que o sacrifício era realizado no primeiro dia do quinto mês asteca, que, ainda de acordo com o franciscano, começava no dia 23 ou 24 de abril. Mas, segundo outras autoridades espanholas do século XVI, a festa durava do dia 9 ao dia 19 de maio, e o sacrifício da vítima humana personificando o deus era realizado neste último dia. Qualquer que tenha sido a data exata, sabemos que “a festa não era feita com nenhuma outra finalidade exceto a de pedir chuva, da mesma maneira que nós solenizamos as ladainhas da semana da Ascensão de NOSSO Senhor; e essa festa era sempre em maio, época em que eles mais necessitam de chuva naquelas regiões”.
Nessa festa, o grande deus morria na pessoa de um representante humano e voltava a viver na pessoa de outro, que era destinado a desfrutar da honra fatal de representar a divindade durante um ano e perecer, como todos os seus antecessores, ao seu término. O jovem destinado a essa alta dignidade era cuidadosamente escolhido entre os cativos, com base na sua beleza pessoal. Deveria ter o corpo perfeito, esguio como um junco e reto como um pilar, não ser muito alto nem muito baixo. Se, devido à boa vida, engordasse demais, era obrigado a emagrecer sob uma dieta de água salgada. E para que agisse, em sua elevada posi- ção, com a graça e a dignidade necessárias, era cuidadosamente treinado para comportar-se como um cavalheiro da mais alta linhagem, falar com correção e elegância, tocar flauta, fumar charutos e aspirar o perfume de flores com um ar requintado. Era instalado no templo com todas as honras, servido e homenageado pelos nobres, que lhe levavam carne e o serviam como a um príncipe. O próprio rei se preocupava com que ele estivesse luxuosamente vestido, “pois já o estimava como a um deus”. Penugem de águia lhe era colada à testa e penas de um galo branco eram espetadas em sua cabeleira, que caía até a cintura. Uma coroa de flores semelhantes a milho em pipocas cingia-lhe a fronte e uma guirlanda das mesmas flores passava sobre seus ombros e debaixo das axilas. Ornamentos de ouro pendiam- lhe do nariz, braceletes de ouro adornavam seus braços, guizos de ouro tiniam a cada passo de suas pernas; brincos de turquesa balançavam em suas orelhas e pulseiras da mesma pedra cingiam- lhe os pulsos; colares de conchas envolviam-lhe o pescoço e pendiam sobre seu peito. Ele usava um manto tecido à mão e, sobre o ventre, rica faixa de tecido. Quando essa rara figura toda adornada passeava pelas ruas tocando sua flauta, fumando seu charuto e cheirando um ramalhete, as pessoas que a encontravam prostravam-se à sua frente e faziam-lhe orações com suspiros e lágrimas, tomando o pó do chão com as mãos e colocando-o na boca em sinal da mais profunda humilhação e sujeição. As mulheres se aproximavam com os filhos nos braços, mostrando-os, saudando-o como a um deus. Pois “ele passava por ser Nosso Senhor; as pessoas o reconheciam como o Senhor”. E a todos que assim o adoravam ao passar, ele saudava com gravidade e cortesia. Para que não fugisse, era acompanhado a toda parte por uma guarda de oito pajens em libré real, quatro deles com o alto da cabeça raspado como os escravos palacianos e os outros quatro com os cabelos longos como guerreiros. Se ele conseguisse escapar, o capitão dessa guarda tinha de substituí-lo como representante do deus e morrer em seu lugar. Vinte dias antes do sacrifício, suas roupas eram trocadas, e quatro moças, cuidadosamente preparadas e com os nomes de quatro deusas — a deusa das flores, a deusa do milho novo, a deusa “nossa mãe entre as águas” e a deusa do sal —, lhe eram dadas como noivas, e com elas se casava. Nos cinco últimos dias, eram- lhe prestadas honras divinas. O rei permanecia em seu palácio, enquanto toda a corte acompanhava o deus humano. Banquetes e danças solenes seguiam-se numa sucessão regular e em lugares previamente definidos. No último dia, o jovem, acompanhado de suas mulheres e de seus pajens, embarcava numa canoa coberta com dossel real e era levado, através do lago, para um local em que uma pequena elevação se erguia à beira d’água. Era chamada de “morro da Separação”, porque ali suas mulheres lhe davam o último adeus. Acompanhado então apenas pelos seus pajens, seguia para um pequeno e solitário templo à margem do caminho. Como os templos mexicanos em geral, este tinha a forma de pirâmide, e, à medida em que subia os seus degraus, o jovem ia quebrando, uma a uma, todas as flautas que tocara nos dias de glória. Ao chegar ao alto, era agarrado pelos sacerdotes, que o deitavam de costas num bloco de pedra e lhe abriam o peito, no qual enfiavam as mãos para arrancar-lhe o coração, que ofereciam em sacrifício ao sol. O corpo do deus imolado não era, como os corpos das vítimas comuns, posto a rolar pelas escadas do templo, mas sim transportado até a base, onde sua cabeça era cortada e espetada numa lança. Era esse o fim habitual do homem que personi- ficava o maior deus do panteão mexicano.
Mas ele não era o único homem que desem- penhava o papel de deus e era sacrificado como tal. Várias outras divindades eram cultuadas dessa maneira. Entre elas estava a deusa do milho, Chicomecóatl. Na festa em sua honra, a identificação entre a divindade e a vítima parece ter sido completa. As douradas espigas de milho que a moça a ser sacrificada usava em volta do pescoço, as espigas artificiais que levava nas mãos, a pena verde que lhe era presa ao cabelo, numa imitação (ao que nos dizem) de uma espiga verde de milho, tudo a constituía como personificação do espírito dos grãos. Os comentaristas nos contam, explicitamente, que ela era escolhida como uma jovem que representasse o milho novo que, na época da festa, ainda não havia amadurecido completamente. E ainda, sua identificação com o cereal e a deusa dos grãos era enunciada claramente quando se fazia com que se sentasse em montes de milho e ali recebesse as homenagens e oferendas de sangue de todo o povo, que com isso manifestava sua gratidão pelos benefícios que, em seu caráter de divindade, ela teria proporcionado. Mais uma vez, a prática de decapitá-la num monte de cereais e sementes e de aspergir seu sangue não só sobre a imagem da deusa do milho, mas também sobre montes de milho, pimenta, abóboras, sementes e legumes, pode não ter, aparentemente, outro objetivo senão o de apressar e fortalecer as plantações de cereais e os frutos da terra em geral, impregnando amostras deles com o sangue da própria deusa dos grãos. A analogia com esse sacrifício mexicano, cujo significado parece ser indiscutível, pode reforçar a interpretação que demos aos outros sacrifícios humanos oferecidos em favor das colheitas. Se a jovem mexicana cujo sangue era espargido sobre o milho realmente personificava a deusa do milho, torna-se ainda mais provável que a moça cujo sangue os pawnees também espa- lhavam sobre as sementes personificasse, da mesma forma, o espírito feminino dos grãos; o mesmo pode ter ocorrido com outros seres humanos abatidos por outras raças com a fina- lidade de promover o crescimento das plantações. Finalmente, o último ato do drama sagrado, no qual o corpo da deusa do milho morta era esfolado e sua pele usada, juntamente com todas as suas insígnias sacras, por um homem que dançava frente ao povo com esse sombrio atavio, parece explicar-se melhor pela hipótese de que isso visava a assegurar que a morte divina devia ser seguida imediatamente pela ressurreição divina. Se assim era, podemos deduzir, com alguma probabilidade de êxito, que a prática de imolar um representante humano da divindade era considerada em geral, e talvez mesmo sempre, como meio de perpetuar as energias divinas na plenitude do vigor juvenil, sem a mancha da debilidade e da fragilidade da velhice que as teria maculado se a divindade viesse a morrer de morte natural.
Os ritos descritos nas páginas anteriores bastam para provar que sacrifícios humanos do tipo do que parece ter existido em Arícia foram, na realidade, sistematicamente oferecidos em grande escala por um povo cujo nível cultural não era provavelmente inferior, se é que não chegava a ser nitidamente superior, ao das raças italianas no período arcaico em que se situam as origens do sacerdócio de Arícia. As evidências positivas e indubitáveis do predomínio desses sacrifícios numa parte do mundo podem, razoavelmente, fortalecer a probabilidade de sua existência em lugares onde tais evidências são menores e menos fidedignas. Tomados em conjunto, os fatos que examinamos parecem mostrar que o costume de imolar homens aos quais os seus adoradores consideram como divinos predominou em muitas partes do mundo. Mas, para efeito de coerência da argumentação, é evidentemente desejável provar que o costume de imolar o representante humano de um deus era conhecido e praticado em outros pontos da Itália antiga, além do bosque ariciano. Essa prova, vamos apresentá-la agora.
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