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Vampirismo e Licantropia

A Vassoura Atrás da Porta

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Shirlei Massapust

“Nunca convide um vampiro para entrar em sua casa. Isso deixa você sem poder”. Assim os caça-vampiros juvenis interpretados por Janice Fischer e James Jeremias explicam por que toda a profilaxia propria do mitologema do vampiro deixou de funcionar no filme The Lost Boys (1987). Em um de seus poucos ensaios de não-ficção Gedeone Malagoa afirma que, em 1855, “um ferreiro de Exter inventou um trinco de segurança que até hoje nós usamos em casa, para que bruxas e monstros não entrassem”.[1] Segundo Bram Stoker, o mesmo é estranhamente válido contra vampiros que viram vapor de névoa, salvo quando bem-vindos:

He cannot go where he lists; he who is not of nature hás yet to obey some of nature’s laws — why we know not. He may not enter anywhere at the first, unless there be some one of the household who bid him to come; though afterwards he can come as he please.[2]

Ele não tem acesso a todos os lugares aos quais desejaria ir e, mesmo não pertencendo à natureza, deve obedecer a algumas dessas leis naturais… e não sabemos por que motivo. Não lhe será possível jamais entrar em nenhuma moradia, pela primeira vez, se não for convidado por um dos moradores, embora depois disso possa ir e vir à vontade.[3]

O vampiro não precisa ser reconhecido quando convidado, pois, no oitavo capítulo de Drácula (1897), Lucy Westenra realizou um convite bem sucedido a um grande morcego.[4] Trata-se de uma situação diametralmente oposta à da adaptação no filme Nosferatu (1922) de F. W. Murnau onde a ardilosa Ellen Hutter (Greta Schröder) abre a janela para receber, na cama, o velho Conde Orlok (Max Schreck), afim de fazê-lo perder a noção do tempo entretendo-o até a aurora. No primeiro caso o vampiro domina a donzela em estado de sonambulismo hipnótico enquanto, no segundo, a mulher sagaz ludibria e subjuga o vampiro.

Outros artistas trabalharam sobre o mesmo problema. – A solução mais criativa talvez esteja na comédia The Monster Squad (1987) onde Drácula (Duncan Regehr) obriga as pessoas a saírem de um local impenetrável atirando dinamite pela janela!

Conforme anotação de Leonard Wolf, se apenas um habitante da residência convidar o vampiro, não haverá necessidade da anuência de todos.[5] Por isto muitos roteiros destinados ao público infanto-juvenil falam de adultos incrédulos que deixam abertos os seus armários cheios de monstros e convidam vampiros para uma visita doméstica a despeito das súplicas das crianças. Inclusive, o mitologema é ocasionalmente tratado como metáfora da insegurança do menor que tem sua privacidade invadida pela presença de um estranho que tomou sua mãe por mulher e age como se tivesse direito ao pátrio poder sem ser seu progenitor.

Um tratamento inteligente pode ser visto em Fright Night (1985) onde Tom Holland cria uma situação onde a mãe solteira Judy Brewster (Dorothy Fielding) nutre um desejo secreto por seu novo vizinho Jerry Dandrige (Chris Sarandon) mesmo suspeitando que o belo homem seja homossexual. Na primeira oportunidade ela o convida, contra a vontade do filho Charley Brewster (William Ragsdale), sob pretexto de cumprir normas de etiqueta, e Jerry se apressa a aproveitar a oportunidade para coagir Charley, ameaçando matar sua mãe.

No roteiro de Janice Fischer e James Jeremias para The Lost Boys (1987) o discurso do vampiro Max (Edward Herrmann) é ainda mais específico:

I know what you’re thinking, Sam. But you’re wrong. I’m not trying to replace your father or steal your mother away from you. I would just like to be your friend. That’s all.

 

Eu sei o que você está pensando, Sam. Mas você está enganado. Não estou tentando substituir o seu pai ou roubar sua mãe de você. Eu apenas gostaria de ser seu amigo. Só isso.[6]

 

A comédia Mom’s Got a Date With a Vampire (2000) lançada pela Walt Disney Pictures, com direção de Steve Boyum, assimila um contexto pós-moderno, onde as crianças estão mais abertas para mudanças do que os próprios pais e tentam arrumar um namorado para Lynette (Caroline Rhea), mãe divorciada. Todavia, escolhem o cara errado.

Em certas mídias o vampiro só não pode entrar “na casa de Deus” – expressão usada para designar uma igreja católica ou um mosteiro e, muito raramente, a residência de um cristão. – Seriam área de caça lícita todos os bares, motéis e a casa do devasso. Tal como o Morto do Pântano, o vampiro também pode agir como justiceiro anti-herói eliminando humanos “que não merecem viver”.[7] (Se bem que certas publicações voltadas a um público mais adulto repetem teimosamente que apenas o sangue inocente lhe sacia a sede).

Conclusão

Uma simpatia muito conhecida no Brasil manda botar uma vassoura de cabeça para baixo, com a piaçava virada para o alto, atrás da porta dos fundos de uma residência para encurtar a visita de humanos indesejáveis.[8] Isso significa que ninguém pode viver confinado, evitando um problema para sempre. É preciso encarar o inoportuno e enfrentá-lo para fazê-lo sair… O tabu do impedimento teve sua utilidade à época da sua criação e principal difusão, servindo para aumentar o número de situações onde a prática da hipnose malum in se pudesse ser retratada. Mas os tempos e os costumes mudaram, leis aberrantes caducaram, a liberdade sexual e o estado laico prosperaram. Certos artifícios para velar desejos recalcados ou a fé dos excluídos deixaram de ser necessários.

O caráter progressivo da arte não pode mais aceitar dogmas tais como a sugestão de que a falta de convite funcione como um campo de forças invisível que impeça o vampiro ou o padrasto de entrar num local da mesma forma que o vidro interrompe o voo dos insetos. A boa produção artística deve ser, na medida do possível, verossímil e comedida.

Também, como a possibilidade de imaginar saídas engenhosas é limitada, o comércio florescido em torno do mitologema estaria com os dias contados se, em todo momento, o Conde Drácula tivesse de parar para hipnotizar, seduzir, ludibriar ou explodir algo ou alguém enquanto a vítima almejada corre de casa em casa. Enfim, ao longo do tempo os produtores de cinema, editores, etc., perceberam que não fazia sentido limitar os movimentos do antagonista por ser ridícula a hipótese de um vampiro bem educado necessitar de convite enquanto o assaltante comum continua a invadir qualquer domicílio sem permissão.

Notas

[1] GEDEONE. Um Rastro em Linha Reta. Em: Mestres do Terror. São Paulo, D-Arte, 1982, Ano I, nº 4, verso da contracapa.

[2] WOLF, Leonard (ed). The Essential Dracula: The Definitive Annotated Edition of Bram Stoker’s Classic Novel. New York, Plume, 1993, p 290.

[3] STOKER, Bram. Drácula. Trad. Vera M. Renoldi. São Paulo, Abril, 2002, p 236.

[4] WOLF, Leonard (ed). Obra citada, p 126, nota 20 e 290, nota 18.

[5] WOLF, Leonard (ed). Obra citada, p 290, nota 18.

[6] Ao contrário de outros vampiros que mentem o tempo todo, Max foi quase sincero. Ele desejava desposar Lucy (Dianne Wiest) de forma que o casal, os dois filhos dela e os seis filhos dele formassem uma única família. O problema é que ele omitiu o fato de ser vampiro e precisar converter a todos na mesma espécie, além de pelo menos dois dos seus ‘filhos’ terem sido roubados de outras famílias e adotados. Daí o título Garotos Perdidos.

[7]  MIRANDA JR, Décio. O Morto do Pântano, p 7. Em: ZALLA, Rodolfo (ed). Mestres do Terror. São Paulo, D-Arte, 1982, nº 1.

[8] A lógica desta superstição segue o princípio da similitude, já que a vassoura é normalmente usada para varrer o lixo para fora de casa.


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