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Thelema

Sobre a Ortodoxia Thelêmica

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Texto de Rodney Orpheus. Traduzido por Caio Ferreira Peres.

Utilizada a tradução de Vitor Cei para os versos dos Livros Sagrados de Thelema publicada no ano de 2018 pela Madras Editora.

Nota do autor: este ensaio pressupõe uma familiaridade rudimentar com a literatura e terminologia Thelêmica. Como tal, não se destina ao público em geral, mas àqueles que têm alguma pequena experiência em magia Thelêmica, ou que foram iniciados em uma Ordem mágica Thelêmica, mesmo em nível básico. Espero que esses leitores considerem-no valioso.

– Rodney Orpheus, Setembro 2013 e.v.

Nos últimos anos, comecei a notar o surgimento de um fenômeno ao qual me referi como o movimento “Thelema Séria”, devido ao fato de seus promulgadores frequentemente se descreverem como “Thelemitas sérios”, em oposição a todos os outros Thelemitas que presumivelmente não são “sérios”. Essa “alterização” dos Thelemitas por meio do uso da marca “sério” vem ocorrendo desde pelo menos a década de 1980, quando o então líder da A.A., Marcelo Motta, usava frequentemente o termo “estudantes sérios de Thelema” em suas obras, a fim de diferenciar a si mesmo e seu grupo de outros Thelemitas, supostamente inferiores, e muito de seu uso atual ainda pode ser rastreado até a falsa dicotomia estabelecida naquela época.

Então, o que diferencia um Thelemita Sério de todos os outros Thelemitas não sérios? Acho que a maioria dos Thelemitas Sérios diria que é o fato de eles adotarem uma posição muito ortodoxa e fundamentalista sobre Thelema, apelando diretamente para os escritos de Aleister Crowley; e a forte rejeição de qualquer coisa contraditória a isso, especialmente pontos de vista de outras religiões anteriores. Já vi até mesmo Thelemitas sérios argumentarem que outros Thelemitas não podem ser aceitos como Thelemitas “adequados” dentro da comunidade, a menos que façam uma declaração pública específica de repúdio às “religiões escravagistas”. Ironicamente, é claro, esse mecanismo de usar a pressão social e da comunidade para forçar as pessoas a se “converterem” ou serem condenadas ao ostracismo é exatamente o mesmo mecanismo usado pelos próprios fundamentalistas das religiões escravagistas; e não acho que seja coincidência que esses fundamentalistas thelêmicos modernos pareçam compartilhar a mesma patologia. E também parecem possuir uma incapacidade semelhante de perceber a ironia.

Assim, os Thelemitas sérios tentam criar um “grupo interno” (aqueles que concordam com sua interpretação e metodologia supostamente “ortodoxa”) e um “grupo externo” de Outros que não são como eles (que são implicitamente inferiores) – sim, exatamente como no Ensino Médio.

Não acho que seja necessário Sigmund Freud para descobrir que esse tipo de “alteridade” basicamente surge de uma tentativa por parte do perpetrador de afirmar que ele é, de alguma forma, “melhor” ou “mais dedicado” do que aqueles que não possuem o cobiçado título de Thelemita Sério; e que, portanto, o detentor de tal título ganha mais prestígio e capital social do que aqueles que não são Sérios. É notável que a maioria dos promulgadores dessa alteridade geralmente não são os principais escritores thelêmicos ou de alto escalão na OTO, nem são “novatos” que não possuem capital social; em vez disso, são em grande parte oriundos do meio do grupo ou de pequenas organizações marginais e, portanto, altamente motivados a disputar uma posição na hierarquia social da subcultura. Também é notável o fato de que quase todos eles são homens – isso é assunto para um ensaio, mas basta dizer que, por enquanto, provavelmente há um “macho alfa” acontecendo em algum lugar.

Voltemos nossa atenção para os métodos e argumentos reais usados no movimento dos Thelemitas Sérios, que, à primeira vista, parecem ter uma boa base lógica e teológica, apesar de serem motivados pela psicologia mencionada acima.

A primeira questão com a qual nos deparamos é: como alguém pode ser um Thelemita não sério? Aceitar a Lei de Thelema, mesmo em sua forma mais simples, requer uma rejeição quase total das normas sociais, políticas e religiosas históricas, e a assunção de total responsabilidade por suas próprias ações – como isso pode ser algo que não seja “sério”? A resposta, para o Thelemita Sério, é que alguns Thelemitas estão “fazendo errado”, ou pelo menos, não estão fazendo certo o suficiente.

Para dar um exemplo da lógica do Thelemita Sério – recentemente, essa velha e velha questão voltou a aparecer em alguns fóruns da Internet: Thelema é uma religião? Agora, uma criança de dez anos poderia responder a isso em poucos segundos, simplesmente procurando a palavra “religião” em um dicionário (a resposta correta é “sim”, a propósito, e a maioria dos leitores do tópico sensatamente se perguntou por que alguém pensaria de forma diferente), mas nãooooo…. diz o Thelemita Sério:

“Não é uma religião, porque o Profeta assim o diz”.

(Parafraseio diversas variações dessa resposta).

Agora, nenhuma dessas pessoas parecia ver a contradição inerente à declaração anterior. Espero que a maioria dos meus leitores consiga, já que parece bastante óbvio: uma vez que você tem um Profeta, você inerentemente tem uma religião, já que um Profeta é um funcionário dentro de um sistema religioso. Ironicamente, é claro, o fato de que os Thelemitas Sérios não podiam aceitar Thelema como uma religião era devido à sua própria crença religiosa na Palavra do Profeta,

(Como um aparte, devo acrescentar que referir-se a Aleister Crowley como “O Profeta” parece ser outra marca de identificação comum do Thelemita Sério, presumo que seja porque isso mostra que eles entendem a profundidade de Seu pensamento e Sua importância religiosa mais do que o resto de nós, pobres Thelemitas não sérios e sem instrução).

Mas o argumento deles, à primeira vista, parece ter mérito: ele apela para uma figura de comando cuja autoridade é absoluta nessas coisas. O problema é que ele está simplesmente errado, como nosso filho de dez anos, sem dúvida, ainda está tentando nos dizer. Portanto, parece haver um problema com a autoridade invocada. Isso nos deixa em um dilema. Isso significa que temos que rejeitar Aleister Crowley completamente ou que temos que seguir o Único Caminho Verdadeiro, Sério e Ortodoxo, apesar de ele estar errado? Nenhum dos dois parece fazer sentido.

Acredito que foi meu amigo e respeitado colega, Sabazius X°, que declarou “Nossa Thelema é a Thelema de Aleister Crowley”, uma frase que tem sido amplamente citada por Thelemitas Sérios como um chamado à ação para seu movimento. Deixando de lado as questões do contexto do discurso de Sabazius, isso parece bastante razoável como lema, e é frequentemente seguido pela declaração de que “Todas as questões da Lei devem ser decididas apenas por recursos aos meus escritos, cada um por si mesmo” feita por Aleister Crowley. Ok, agora temos a Nova Ortodoxia Thelêmica em vigor: se Crowley disse, isso conta como verdade, então tudo o que tenho a fazer é citar Crowley e isso prova que sou um Thelemita Sério e que sou verdadeiramente ortodoxo. Uma posição teológica inatacável, como se poderia pensar.

No entanto, há quatro problemas com essa teoria:

  1. Crowley escreveu uma enorme quantidade de coisas.
  2. Como qualquer pessoa inteligente, Crowley mudou de ideia sobre as coisas ao longo do tempo, várias vezes.
  3. As citações de Crowley são frequentemente tiradas do contexto, ou acidental ou deliberadamente mal compreendidas ou ofuscadas.
  4. Aleister Crowley nunca disse isso em primeiro lugar.

Espere… O quê?

Ok, vamos ver isso na ordem inversa.

O Thelemita Sério grita: “Aha! Ele também disse isso – está no Comentário ao Livro da Lei! Seu argumento é inválido!”

Só que ele não disse. O Comentário ao Livro da Lei não é de Aleister Crowley. É de Ankh-f-n-khonsu.

Agora, isso nos leva às águas teológicas turvas do Teorema das Múltiplas Personalidades Mágicas de Aleister Crowley. Esse teorema postula que Crowley tinha várias identidades mágicas diferentes, dependendo da função mágica que estava desempenhando no momento, e cada uma delas emanava de diferentes camadas de consciência mágica. Por exemplo, temos:

  • Aleister Crowley: poeta e escritor de ficção
  • To Mega Therion: o Logos do Aeon
  • V.V.V.V.V.: um Chefe Secreto de Além do Véu
  • Ankh-f-n-khonsu: o escriba do Livro da Lei
  • …e muito mais…

Essa separação das personalidades de Crowley é mencionada em muitos lugares nos Livros Sagrados de Thelema, sendo um exemplo o próprio Livro da Lei, onde o homem Aleister Crowley é mencionado na segunda pessoa (“Ó profeta! Tu tens má vontade de aprender estes escritos. Eu vejo que tu odeias a mão & a pena”), enquanto Ankh-f-n-khonsu é mencionado na terceira pessoa (“Isto que tu escreves é o triplo livro da Lei. Meu escriba Ankh-af-na-khonsu, o sacerdote dos príncipes, não mudará este livro em uma só letra; mas, para que não haja tolice, ele comentará a partir da sabedoria de Ra-Hoor-Khu-it”). O Profeta é Aleister Crowley, mas o Escriba é Ankh-f-n-khonsu. (Você pode ler mais sobre isso nos Commentaries to Liber LXV de Crowley, mas, por enquanto, considere isso como um dogma thelêmico estabelecido. Escreverei outro ensaio detalhando esse assunto em outro momento).

O próprio fato de termos “Livros Sagrados”, em primeiro lugar, baseia-se nesse teorema das Personalidades Mágicas Múltiplas, pois para ser um Livro Sagrado, ou documento de Classe A, como também são conhecidos, o livro é descrito como tendo sido escrito além da consciência humana e, portanto, não está sujeito à falibilidade humana. Esse é o próprio fundamento da noção de um Livro “Sagrado” em primeiro lugar. E como O Comentário ao Livro da Lei é um Livro Sagrado de Classe A, ele não pode ter sido escrito por Aleister Crowley, o homem e poeta (já que suas obras são falíveis), mas teve de ser escrito por Ankh-f-n-knhonsu (cujas obras são presumivelmente sobre-humanas). Portanto, quando Ankh-f-n-Khonsu diz: “Todas as questões da Lei devem ser decididas apenas por recursos aos meus escritos, cada um por si mesmo”, isso restringe a apenas duas coisas: o Livro da Lei e o próprio Comentário. Nenhum dos demais trabalhos de Crowley conta, já que nenhum deles foi escrito por Ankh-f-n-khonsu. Mesmo os outros Livros Sagrados não contam quando se trata de questões da Lei, já que eles foram escritos, em sua maioria, por outra persona mágica, V.V.V.V.V.

Tudo isso se baseia na suposição de que o teorema teológico anterior seja verdadeiro e que os Livros Sagrados Thelêmicos tenham sido escritos e/ou inspirados e/ou ditados por Deuses, Anjos e Adeptos Ascendidos. Mas e se isso não for verdade? E se realmente foi Aleister Crowley, o homem que escreveu essas coisas, e não algum tipo de consciência trans-humana? Esse é um argumento bastante justo, mas se você aceitar esse argumento, então você derruba todo o edifício dos “Livros Sagrados de Classe A” – porque se eles não foram escritos por algum tipo de entidade sobre-humana, então são apenas coisas escritas por algum inglês de classe alta há cem anos, e podemos pegá-los ou deixá-los como quisermos. Não há meio termo aqui: ou é uma grande coisa mágica ou não é uma grande coisa mágica. Faça sua escolha. Se você escolher a porta número 1, então os Livros Sagrados são sagrados, e o resto é apenas algo variável, mas interessante, que você pode aceitar ou não; ou você escolhe a porta número 2, onde tudo é apenas algo variável, mas interessante, que você pode aceitar ou não. De qualquer forma, você não pode pregar que uma nota distorcida que Crowley escreveu em seu diário às 3h da manhã, enquanto passava a noite toda acordado tomando cocaína, tem a força de um imperativo teológico que todos os Thelemitas Sérios devem seguir ou serão rejeitados.

“Aha! Mas espere, há um meio termo”, diz nosso Thelemita Sério. “O Livro da Lei foi ditado por Aiwass, e Aleister Crowley foi escolhido para comentá-lo, portanto, devemos seguir sua interpretação do texto conforme consta em seus Comentários, já que o Livro da Lei diz que ele foi escolhido especialmente para fazer isso.”

Novamente, isso parece muito lógico e razoável à primeira vista. Mas vamos voltar ao texto real do Livro da Lei…

“Meu escriba Ankh-af-na-khonsu, o sacerdote dos príncipes, não mudará este livro em uma só letra; mas, para que não haja tolice, ele comentará a partir da sabedoria de Ra-Hoor-Khu-it.” – Liber Legis I, 36

“Mas e o trabalho do comentário? Isso é fácil; e Hadit ardendo em teu coração fará tua pena ágil e segura.” – Liber Legis III, 40:

Portanto, Crowley (ou, para ser mais exato, Ankh-af-na-khonsu) foi certamente instruído a comentar. Crowley presumiu que deveria escrever um comentário extenso sobre o livro e tentou várias vezes, sendo cada vez um processo longo e difícil. O que não foi nada animador, pois o Capítulo III do Livro da Lei dizia que deveria ser fácil e rápido. Para complicar ainda mais as coisas, Crowley disse que levou dez anos para entender o primeiro capítulo do Livro da Lei, dez anos para entender o segundo capítulo e ainda não entendia o terceiro capítulo. E como ele escreveu seus longos comentários vinte anos após a escrita do Livro da Lei, então, por sua própria admissão, ele estava comentando pelo menos um capítulo que nem mesmo ele entendia. Mais tarde, Crowley escreveu em suas Confissões:

“Eu estupidamente supunha que este Comentário fosse uma exposição erudita do Livro, uma elucidação de suas obscuridades e uma demonstração de sua origem praeterhumana. Finalmente entendi que essa ideia é absurda. O Comentário deve ser uma interpretação do Livro inteligível para as mentes mais simples e tão prática quanto os Dez Mandamentos”.

Também é importante observar que o Livro da Lei ordenava que o Comentário fosse feito “pela sabedoria de Ra-Hoor-Khuit”, ou seja, que fosse divinamente inspirado, um documento de Classe A. Os comentários originais de Crowley certamente não eram divinamente inspirados, eles eram “uma exposição acadêmica”, o que não era o que se pedia no Livro da Lei. Portanto, é definitivamente errôneo supor que os longos comentários de Crowley são algum tipo de interpretação divinamente ordenada e especialmente correta do Livro da Lei. Somente o Comentário assinado Anhk-f-n-khonsu pode ser considerado como tal. Portanto, em resumo, não, não há uma terceira via. Você pode escolher a porta nº 1 ou a porta nº 2, conforme descrito acima, e essa é toda a escolha que você tem.

Voltando aos nossos quatro problemas originais, vamos examinar o número 3: puro mal-entendido. Não faz muito tempo, houve uma tempestade em uma xícara de chá sobre se uma determinada palavra no Livro da Lei era “matar” ou “preencher”[1]. Thelemitas Sérios estavam revoltados com isso.

“Não mude nem mesmo o estilo de uma letra no Liber AL vel Legis!”, eles trovejaram. “Liber AL deve permanecer como estava no manuscrito original!”

Oh, como eu ri. O medidor de ironia estava correndo o risco de se sobrecarregar, pois um a um os Thelemitas sérios aceitaram o grito. Nenhum deles parecia perceber que, no manuscrito original, o Livro da Lei era chamado de “Liber L” e não “Liber AL“. O “A” extra foi acrescentado muitos anos depois por sugestão de C. S. Jones.

“Na primeira edição, este Livro é chamado de L. L é a letra sagrada na Sagrada Tabela de Doze Dobras que forma o triângulo que estabiliza o Universo. Ver “Liber 418”. L é a letra de Libra, Equilíbrio e ‘Justiça’ no Tarô. Esse título provavelmente deveria ser “AL”, “El”, pois o ‘L’ foi ouvido pela Voz de Aiwaz, não visto. “AL” é o verdadeiro nome do Livro, pois essas letras, e seu número 31, formam a Chave Mestra de seus Mistérios.” – Aleister Crowley, O Novo Comentário, ca. 1921

Os Thelemitas Sérios aceitaram uma mudança no Livro da Lei durante anos e nem sequer notaram. Mas há um problema mais profundo: uma autoridade supostamente inatacável diz “Não mude nada” (o Livro da Lei); e outra autoridade supostamente inatacável (Aleister Crowley) vai em frente e o muda… quem está certo? Bem, o Thelemita Sério diz que Aleister Crowley é o Profeta, então ele (e somente ele) tem permissão para mudar. É justo. Exceto…

“Não muda nem mesmo o estilo de uma letra; pois contempla! Tu, ó profeta, não verás todos estes mistérios aí ocultos.” Liber Legis I, 54

Aleister Crowley, O Profeta, é diretamente instruído a não mudar isso. Essa instrução foi direcionada especificamente a ele, e ele a ignorou. Ops.

A lição aqui: até mesmo os especialistas podem errar. E, às vezes, eles estão apenas consertando as coisas à medida que avançam, como o resto de nós.

Quanto ao ponto número 2 de minha lista: que Crowley mudou de ideia. Há inúmeros exemplos disso em seus escritos: às vezes porque sua opinião mudou à medida que ele envelhecia, às vezes porque ele simplesmente esqueceu o que havia dito anos antes. No entanto, os Thelemitas Sérios consideram cada declaração que ele fez como A Palavra do Profeta. E frequentemente preferem citar declarações feitas por ele em seus primeiros trabalhos em vez de declarações feitas por ele em seus trabalhos posteriores. Acho muito razoável que as declarações posteriores tenham precedência, pois se ele mudou de ideia sobre algo, provavelmente foi porque aprendeu mais sobre o assunto ou teve experiências que lhe mostraram que seus pensamentos iniciais sobre o assunto estavam incorretos.

Essa é uma faceta tão importante de sua escrita que estou francamente surpreso por ter sido, até onde sei, o primeiro estudioso de Crowley a apontá-la em meu Grimoire of Aleister Crowley. Todos os outros parecem ter considerado cada declaração de Crowley como “sua opinião” sobre o assunto, independentemente do contexto ou da idade. Seus escritos sobre mulheres são um exemplo perfeito disso. Seus pontos de vista variam da mais absoluta adoração ao mais absoluto desprezo, e tudo mais – e geralmente são um reflexo não de suas convicções religiosas sobre o assunto, mas do fato de ele mesmo estar em um relacionamento feliz com uma mulher na época. Um exemplo perfeito disso pode ser encontrado em Liber Aleph, escrito enquanto Crowley estava com o coração partido por ter sido rejeitado em um caso de amor e, sem surpresa, repleto de declarações que são variações floridas de “aquela vadia sem alma”. Isso implica que devemos então acreditar que todas as mulheres não têm alma? Thelemitas Sérios provavelmente argumentariam que sim.

E quanto ao nosso primeiro problema: o fato de Crowley ter escrito muitas coisas. Sim, ele realmente escreveu. Tenho prateleiras e mais prateleiras de seus livros em casa. Livros sagrados, livros sobre Magia, yoga e Tarô, comentários e diários…

“Espere… O quê?” (diz o próprio Aleister Crowley). “Que diabos você está fazendo com meus diários? E onde você conseguiu esses comentários sobre o Livro da Lei? Não era para você estar lendo isso!”

E, de fato, é assim. Crowley nunca pretendeu que metade desse material fosse lido, muito menos que fosse usado como uma espécie de critério da Ortodoxia Thelêmica. Seus diários são apenas isso: seus pensamentos e experimentos particulares, úteis como registro científico ou acadêmico, mas nunca, jamais, com a intenção de serem tratados como “A Palavra do Profeta”. O mesmo ocorre com seus longos comentários sobre o Livro da Lei. Ele escreveu um monte deles, mas nunca publicou um sequer. Por quê? Porque não estava satisfeito com o fato de serem usados como escritura. Ele autorizou seu amigo e colega membro da O.T.O., Louis Wilkinson, a editá-los para leitura popular em uma edição chamada The Law is for All. Como Wilkinson escreveu na introdução de sua edição:

“O objetivo do Comentário sobre o Livro da Lei é guiar o leitor pelo caminho da descoberta de sua própria verdadeira vontade, de acordo com a qual, e somente de acordo com a qual, ele pode pensar e agir corretamente. É por isso que “Faz o que tu queres há de ser o todo da Lei”. Somente assim lhe será mostrado seu próprio pensamento e vida verdadeiros.”

Então, basicamente, “Notas do penhasco”, não as Escrituras Sagradas. Isso não quer dizer que parte do que ele escreveu nestes longos comentários não seja valioso – muito pelo contrário, há muita sabedoria neles. Mas também há uma tonelada de lixo lá, como o próprio Crowley admite. Frequentemente vejo pessoas novas em Thelema perguntarem qual é a melhor coisa para ler para um novato, e os Thelemitas Sérios sempre dizem algo como: “Oh, você deveria ler todos os Comentários de Crowley sobre o Livro da Lei, e não apenas aquela versão editada publicada como The Law is for All, porque é importante ver todas as palavras do Profeta.” Quão irônico então é que o próprio “O Profeta” tenha pensado que essa era uma ideia terrível.

Não só isso, Crowley escreveu tantas outras coisas em tantos momentos diferentes, e sob tantas influências de drogas, bebida e sofrimento emocional, que se você gastar tempo suficiente vasculhando tudo isso você encontrará uma citação de Crowley que apoia praticamente qualquer ponto de vista que você quiser. Quer provar que Crowley era anti-racista? Fácil, “Todo homem e toda mulher é uma estrela”. Quer provar que ele era racista? Igualmente fácil, há muitas declarações racistas em vários livros e diários. Por exemplo, visto que minha esposa é eurasiana, nenhum de nós ficaria particularmente feliz em ouvir alguém citar a visão de Crowley dos eurasianos como vira-latas mestiços, sem força de vontade e fibra moral, muito menos se espera que tomemos isso como algum tipo de Evangelho Thelêmico Ortodoxo. (veja o conto Not Good Enough em The Scrutinies of Simon Iff para essa jóia de iluminação em particular). Não me importa o quanto ele era Profeta, você ainda levará um soco na cara se falar assim com minha esposa.

Numa nota associada, também notei recentemente alguns Thelemitas Sérios insistindo que, uma vez que Aleister Crowley é o Profeta, então suas idéias sobre política também devem fazer parte da Thelema Ortodoxa. Agora, Crowley nasceu em uma família inglesa de classe média alta, nouveau riche, no auge do Império Britânico sob a Rainha Vitória, e foi educado como tal, com todos os privilégios, mitologia política e ignorância geral do resto do mundo que vem junto com isso; portanto, não é de surpreender que suas reflexões políticas tendem a refletir esse ambiente sócio-político. É improvável que ele fosse capaz de compreender a situação dos cidadãos comuns das Ilhas Britânicas naquela época, muito menos dos de outras nações. Não só isso, muitos dos seus pontos de vista foram desenvolvidos antes de o Livro da Lei ser escrito e às vezes levava muitos anos, ou mesmo décadas, para atualizar os seus pontos de vista políticos para corresponderem. Ele também fingiu livremente adotar pontos de vista políticos com os quais não se importava – por exemplo, durante a Primeira Guerra Mundial ele escreveu uma extensa retórica política supostamente a favor do nacionalismo alemão e irlandês, embora não se importasse nem um pouco com nenhum deles, simplesmente para encobrir o fato de que ele estava na verdade trabalhando como espião para os Serviços de Inteligência Britânicos. No entanto, isso não impediu que os Thelemitas modernos do século 21 adotassem suas idéias um tanto atrasadas como “sabedoria política esclarecida”, frequentemente com resultados Monty Pythonescos…

“Devemos seguir os ensinamentos políticos do Profeta!”

“Mas e o racismo dele? Certamente você não pode sugerir que deveríamos ser racistas?”

“Bem, não, o racismo não, mas todo o resto deve ser seguido!”

“Mas e o sexismo dele? Não deveríamos tratar as mulheres igualmente agora?”

“Bem, obviamente não o racismo e o sexismo, mas fora isso, tudo o que ele diz sobre política está correto!”

“Mas e quanto a…”

Você já entendeu a questão agora, tenho certeza.

Então, onde isso nos deixa, Thelemitas não sérios? O que é então a “Ortodoxia Thelêmica”? Ora, isso nos deixa de volta numa posição muito simples, como o irmão Wilkinson apontou: que Faz o que queres há de ser o todo da Lei.

“Ah, mais uma vez!” diz o Thelemita Sério, “você sabe que isso não deve ser interpretado como uma licença para fazer o que quiser! Os Thelemitas Sérios sabem que o que isso realmente significa é que vocês são constrangidos a fazer a sua Verdadeira Vontade, conforme declarada pelo seu Sagrado Anjo Guardião!” (ou alguma outra interpretação metafísica complexa).

Agora deixando de lado por que qualquer pessoa inteligente aceitaria o conceito de um “Sagrado Anjo Guardião ” como uma coisa real em vez de uma metáfora absurda, que parte de “…o todo da Lei” vocês não estão entendendo aqui? Essa coisa de “todo da Lei” significa exatamente o que diz: que ninguém mais pode adicionar seus próprios adendos, interpretações ou exigências à Lei. É sobre a sua Vontade, e isso é tudo que existe.

Quando eu digo a você: “Faz o que tu queres há de ser o todo da Lei”, estou literalmente dizendo “Você pode fazer o que quer do seu jeito e eu não posso lhe dizer o que deveria ser”. O Livro da Lei até nos diz isso de duas maneiras diferentes, caso não tenhamos entendido na primeira vez:

“Não há lei além de fazer o que quiseres”.

Você não pode adicionar mais coisas a isso. Todas essas coisas que Thelemitas Sérios continuam lhe contando sobre a interpretação certa e errada disso? Tudo o que eles estão nos mostrando é que nem sequer entenderam aquelas onze palavras básicas de uma sílaba cada: Faz o que queres há de ser o todo da Lei.

Assim, a verdadeira “Thelema Ortodoxa” é simples e completamente individual. A única maneira pela qual vocês podem realmente seguir “a Thelema de Aleister Crowley” é cada um de vocês aceitá-la e torná-la sua própria Thelema, e viver a sua vida à sua maneira. Essa é a única Thelema “ortodoxa” que existe ou pode existir. É todo o resto que está sendo pregado para você que não é ortodoxo. Todas aquelas coisas que lhe contaram sobre qual é ou deveria ser a sua Verdadeira Vontade, ou como não é realmente a sua Vontade que conta, mas a Vontade de algum poder superior? Isso é “heresia” aí mesmo. O termo “Verdadeira Vontade” nem mesmo está no Livro da Lei (ou no Comentário). O Livro da Lei apenas fala sobre a Vontade Pura – a maneira como você caminha no mundo, o Dao-De, como os taoístas o chamam, o fluxo natural entre você e o universo.

Isso é o que é a verdadeira “Thelema Ortodoxa”: é nas ações que você realiza e na vida que você leva, não nas palavras de Crowley que você regurgita.

Nota do autor: No fim de semana antes de escrever este ensaio, atuei como Sacerdote na Missa Gnóstica da O.T.O., onde me disseram depois que a nossa missa foi “muito ortodoxa”. Isso significa que pode haver Missas Gnósticas não ortodoxas? Sim, é claro que existe, porque a Missa Gnóstica é um ritual cujo texto de execução está claramente escrito e cujas regras e missão mais amplas são reguladas pela Igreja Católica Gnóstica. Portanto, este ensaio não quer dizer que não podemos ou não devemos ser “ortodoxos” em nossa práxis de tecnologia mágica – acredito firmemente que existe uma maneira certa (e muitas maneiras erradas) de realizar nossos rituais, mas nossas vidas individuais e as decisões são nossas e devem ser sempre nossas. Não vamos confundir a nossa crença religiosa com a nossa práxis religiosa. E sim, há um outro artigo sobre esse paradoxo a ser escrito também.

Nota do Tradutor

[1] No original, “kill” e “fill” respectivamente, referente à canção contida no verso 37 do terceiro capítulo do Livro da Lei.

Bibliografia

Crowley, A., 1996. Commentaries on the Holy Books and Other Papers: The Equinox v.4, No.1. Red Wheel/Weiser.

Crowley, A., 1991. Liber Aleph vel CXI: The Book of Wisdom or Folly. S. Weiser, York Beach, Me.

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Crowley, A., 1996. The Law Is for All: The Authorized Popular Commentary of Liber Al Vel Legis sub figura CCXX, the Book of the Law. Thelema Media.

Crowley, A., 2004. The Book of the Law, Centennial Ed. ed. Red Wheel/Weiser.

Crowley, A., Desti, M., Waddell, L., 2004. Magick : Liber ABA, Book Four, Parts I-IV. S. Weiser, York Beach, Me.

Crowley, A., 2012. The Simon Iff stories and other works. Wordsworth, Ware.

Orpheus, R., 2011. Grimoire of Aleister Crowley. Abrahadabra Press.

Spence, R.B., 2008. Secret Agent 666: Aleister Crowley, British Intelligence and the Occult. Feral House, Los Angeles, Calif.

Link para o original: https://thelemicunion.com/on-thelemic-orthodoxy/


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