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Sitra Achra

Ausência de espírito: presença de corpo

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“Pode-se dizer que o francês é o produto de uma arte particular de se exprimir, de se mover e de se vestir. Sua lei neste domínio é o ‘gosto’ – uma palavra tomada de empréstimo à mais baixa das funções sensoriais e aplicada aqui a uma tendência do espírito. Com este gosto ele se degusta a si mesmo, à maneira em que preparou, isto é, como um molho saboroso. Incontestavelmente, neste ponto, ele chegou à virtuosidade.”
(Richard Wagner, Beethoven [L&PM, 1987, 97 págs.])

O espírito morreu e o corpo está mais vivo do que nunca. Nietzsche, que entendia a filosofia também como uma justificação para o corpo, se perderia num mundo em que, depois dos avanços da ciência, a metafísica foi enterrada, em definitivo. Se ontem o corpo só podia ser entendido como uma extensão do espírito, hoje o espírito é que só pode ser entendido como uma extensão do corpo. Cada indivíduo deve ser compreendido, apreendido, percebido, em sua dimensão física, aquela, a do corpo. Toda existência, também, se encerra… no corpo. Viver, nos dias de hoje, consiste em administrar o único patrimônio que efetivamente se tem: ou seja, o corpo.

Basta pensar: qual a maior forma de transcendência hoje? O sexo, não o amor – porque o primeiro pode ser racionalizado; o segundo, não. Sexo é “satisfação garantida ou o seu dinheiro de volta”. É “bom mesmo quando é ruim”. E o amor? Justo o contrário: ruim mesmo quando é bom. O amor dá trabalho, o amor cobra, o amor exige. O amor liga no dia seguinte. O amor vira ódio. O sexo, não! O sexo se basta a si próprio, o sexo se justifica, o sexo, bem, está “pronto pra outra”, algumas horas depois. Quem ganha então, nessa disputa, o corpo ou o espírito? O corpo. [Um a zero em cima do espírito.]

Se o corpo do outro (e não o seu espírito) se tornou o nosso maior desafio, o nosso maior mistério, como vencer o enigma (“Devoro-te, devoro-te, devoro-te! Decifra-me, decifra-me, decifra-me!”) da esfinge? Simples: usando “fogo contra fogo”, corpo contra corpo, um corpo contra o outro – o meu corpo contra o seu corpo. Eis que a estética se converte em culto ao próprio corpo! A perfeição escultural, a erradicação do pecado – lipídico, polissacarídeo -, a erudição dos pesos e das medidas, a consagração da atividade física. A beleza que, se não for minha, se não estiver implantada em mim, se não puder ser espelhada de forma narcísica, eu não tenho como apreciar, eu não tenho como sentir, eu não tenho como ser feliz. Fora do corpo não existe vida! (Lembram-se disso?) [Dois a zero em cima do espírito.]

Assim, o prazer só ganha sentido quando parte do corpo e não quando parte do espírito. Audição, visão, tato, paladar e olfato. Sim, os cinco sentidos! A chave para o desfrute do corpo do outro. Um mundo de sensações, um universo de dimensões infinitas! Uma única sensibilidade a ser desenvolvida: a material, a concreta, a real, a do gosto. “Bom gosto” versus “mau gosto”. A linguagem se escraviza aos humores do corpo (expressões proliferam para dar conta da morte do espírito): gostoso, delicioso, saboroso, apetitoso, irresistível! O hedonismo – busca incessante pelo prazer, fuga desesperada da dor – torna-se a única filosofia possível. E a ciência? Só se for a dos exercícios, a dos regimes! A psicologia…? Apenas uma muleta para a aceitação dos estados do corpo (e não do espírito) e das limitações (de novo, do corpo). [Três a zero em cima do espírito.]

Já a tecnologia merece todo um capítulo. Os computadores, por exemplo, não estão aí para armazenar informações de valor – mas, sim, para estender a memória (fraca) do corpo, para acelerar a velocidade de processamento (do sistema nervoso), para materializar-se em espírito (o mesmo que, desligado da tomada, desconectado, desplugado, deixa de existir! Tem fim! É finito!). E os telefones? Para falar mais perto e ouvir mais longe (o som do corpo). E a televisão? Meio de transporte! E o automóvel? Meio de locomoção! E os eletrodomésticos? Manutenção, consertos, reparos! E a internet? O id, o ego e o superego! E… o resto? Corpo! Corpo! Corpo! Corpo! Corpo, corpo, corpo, corpo! [Quatro a zero em cima do espírito.]

E por mais que se fale em “sociedade da informação”, a civilização do espírito tende também a se extinguir. Tudo o que não for palpável, imediato, sensível cai na vala comum do misticismo. Toda abstração é condenável! Todo raciocínio, esquemático (senão merece a lata do lixo)! Toda ambição, ali na esquina (com a profundidade de um pires)! Discutir idéias (e não coisas ou pessoas) é falar grego (a língua dos alienígenas [“Em que mundo você vive?”]). Escrever, então, é tratar com fantasmas do tempo em que ainda se lia (“Quem lê tanta notícia?”).

Enquanto isso, o corpo se estende, infinito. [Infinito a zero em cima do espírito.]

“Um mundo onde só o útil compensa, onde o belo só é vantajoso quando proporciona prazer e [onde] o sublime fica sem resposta.”
(Richard Wagner, Beethoven [L&PM, 1987, 97 págs.])


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