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JACOB BOEHME
Traduzido e editado por Anônimo
As obras de Jacob Boehme, o “Teósofo Teutônico”, traduzidas para o inglês, foram impressas pela primeira vez na Inglaterra, no século XVII, entre 1644 e 1662. No século seguinte, uma edição completa em quatro volumes grandes foi produzida por alguns discípulos de William Law. Esta edição, concluída no ano de 1781, foi compilada em parte a partir da edição anterior em inglês e em parte a partir de traduções fragmentárias posteriores feitas por Law e outros. Ela não é facilmente acessível ao leitor em geral e, além disso, a maior parte das obras de Boehme não poderia ser recomendada senão àqueles que tivessem o tempo e a capacidade de mergulhar neste mar profundo, em busca das inumeráveis pérolas nobres nela contidas.
A linguagem e o pensamento de Boehme são distantes e estranhos. Ao mergulharmos nos pensamentos de Boehme, necessitamos submetê-los por repetitivos processos de tradução intelectual. É especificamente verídico em relação à obra “Aurora”. No entanto, entre as obras que foram escritas nos últimos cinco anos de sua vida, há algumas que contém uma linguagem de pensamento compreendida mais facilmente contendo, sobretudo, o ensinamento essencial deste humilde Mestre da Ciência Divina. Dentre estas obras, foram selecionadas algumas que podem ser úteis nesta primeira abordagem.
Pareceu-me que, para esse propósito, seria melhor incluir os “Diálogos da Vida Suprassensorial”, incluindo o belo Diálogo chamado, nas Obras Completas, de “O caminho das trevas para a verdadeira iluminação”. No caso destas obras, a tradução utilizada é a do século XVII. Os três primeiros diálogos são uma tradução feita por William Law, um dos maiores mestres da língua inglesa, e encontrada em um manuscrito após sua morte. Essa tradução do alemão original não é exatamente literal, mas sim uma versão livre, ou parafraseada, expandindo e elucidando o pensamento de Boehme, em nenhuma hipótese afastando-se dele. O diálogo chamado “O caminho das trevas para a verdadeira iluminação” foi extraído pelos editores do século XVIII de um livro contendo traduções de certos tratados menores de Boehme, recentemente impressos em Bristol e, como eles dizem, elaborado “em um estilo mais adequado ao gosto e mais adaptado à compreensão dos leitores modernos”. Eu não sei quem foi o tradutor, mas o trabalho foi elaborado com excelência.
É adequado inserir aqui algumas palavras, inicialmente sobre a vida e, posteriormente, sobre as ideias principais de Jacob Boehme[1]. A vida externa de Jacob Boehme era pura simplicidade. Ele nasceu no ano de 1575 em Alt Seidenberg, uma aldeia entre colinas pastorais, perto de Görlitz, na Lusácia, filho de pobres camponeses. Quando criança, ele cuidava dos rebanhos nos campos e depois foi aprendiz de sapateiro, pois não era suficientemente robusto para o trabalho rural. Um dia, quando o mestre e sua esposa estavam fora e ele estava sozinho na casa, um estranho entrou na loja e pediu um par de sapatos. Jacob não tinha autoridade para fechar um acordo e pediu um preço alto pelos sapatos na esperança de que o estranho não os comprasse. Mas o homem pagou o preço e, quando o mesmo saiu em direção à rua, clamou: “Jacob, saia para fora”. Jacob obedeceu ao chamado e, olhando o estranho homem com um olhar bondoso, sério, profundo e penetrante na alma, disse: “Jacob, tu ainda és pequeno, mas chegará o momento em que serás grande e te tornarás outro homem, e o mundo se maravilhará de ti. Portanto, sê piedoso, teme a Deus e reverencia sua Palavra; especialmente lê diligentemente as Sagradas Escrituras, onde encontrarás conforto e instrução, pois terás que suportar muita miséria e pobreza, e sofrer perseguições. Mas sê corajoso e perseverante, pois Deus te ama e É gracioso para contigo.” Dito isso, o estranho apertou sua mão e desapareceu.
Após isso, Jacob tornou-se ainda mais pensativo e sério, e repreendia os outros aprendizes na bancada de trabalho quando falavam levianamente sobre coisas sagradas. Seu mestre não gostava disso e o demitiu, dizendo que não teria um “profeta da casa” para trazer problemas para sua casa. Assim, Jacob foi forçado a sair pelo mundo como um viajante aprendiz e, enquanto vagava naquele tempo de feroz discordâncias religiosas, o mundo lhe parecia uma “Babel”. Ele mesmo era afligido por problemas e dúvidas, mas se apegava à oração e às Escrituras, especialmente às palavras de Lucas 11: “Quanto mais o Pai Celestial dará o Espírito Santo aos que lhe pedirem”. E uma vez, quando foi novamente contratado por um mestre por um certo período de tempo, fora elevado a um estado de paz abençoada, um Sabath da alma, que durou sete dias, durante os quais ele estava, por assim dizer, interiormente rodeado por uma Luz Divina. “O triunfo que havia na minha alma naquele momento não posso contar nem descrever. Só posso compará-lo a uma ressurreição dos mortos”.
Jacob retornou a Görlitz em 1594, tornou-se mestre sapateiro em 1599, casou-se com a filha de um comerciante e teve quatro filhos. No ano de 1600, “sentado um dia em seu quarto, após seu olhar tendo-se debruçando sobre uma bandeja de estanho polido que refletia a luz do sol com um esplendor maravilhoso, entrou em um profundo êxtase interior, parecendo-lhe como se agora pudesse olhar para os princípios e fundamentos mais profundos das coisas. Ele acreditou que era apenas uma fantasia e, para afastá-la de sua mente, saiu para o campo. Mas, no campo, percebeu que contemplava o coração das coisas; as próprias ervas e a grama; a Natureza harmonizava-se com o que ele tinha visto interiormente. Ele não falou sobre isso com ninguém, mas louvou e agradeceu a Deus em silêncio. Continuou na prática honesta de seu ofício, cuidava de seus assuntos domésticos e mantinha boas relações com todos os homens[2]“.
Aos trinta e cinco anos, no ano de 1610, Jacob Boehme percebeu subitamente que tudo o que tinha visto de forma fragmentada estava se formando como um todo coerente, e sentiu um impulso “ardente”, um anseio de escrever isso, como um “Memorial”, não para publicação, mas para que ele mesmo não se esquecesse. Ele o escreveu de manhã cedo antes do trabalho e tarde da noite depois do trabalho. Esta foi s sua “Aurora”.
Um nobre do país, chamado Carl von Endern viu o manuscrito na casa do sapateiro, ficou impressionado e fez algumas cópias. Uma dessas cópias caiu nas mãos do clérigo luterano de Görlitz, o Pastor Primarius Gregorius Richter que, a partir de então, tornou-se um feroz opositor de Boehme. Ele o atacou em sermões, com uma linguagem carregada de insultos selvagens, como um herege do tipo mais perigoso, até que Jacob fosse convocado pelos Magistrados e proibido de escrever qualquer coisa no futuro. Disseram-lhe que, como sapateiro, ele deveria se limitar ao seu próprio ofício. Mas o caso, como geralmente acontece, teve um efeito oposto ao pretendido pelos perseguidores. Isso tornou-o conhecido por pessoas mais instruídas do que ele, que se interessavam pelo assunto e, através de suas conversas com elas, aprendeu um estilo melhor e alguns termos técnicos em latim, que posteriormente foram úteis para expressar seus pensamentos.
Jacob obedeceu por alguns anos à ordem magistral de não escrever nada, porém tal coisa lhe era muito dolorosa, e frequentemente refletia com desânimo sobre a parábola dos talentos e como “aquele único talento que esconder significa a morte” estava depositado com ele sem uso. Por fim, ele não quis mais ficar em silêncio. Ele disse de si mesmo: “Eu havia decidido não fazer nada no futuro, mas ficar em silêncio diante de Deus em obediência e deixar o diabo, com todo o seu exército, me levar. Porém o que ocorreu comigo foi o que ocorre quando uma semente está escondida na terra. Ela cresce em meio a tempestades e ao mau tempo, contra toda razoabilidade. Pois no inverno tudo está morto, e a razão diz: ‘Acabou-se’. Mas a preciosa semente dentro de mim brotou e cresceu verde, esquecendo-se de todas as tempestades, e, em meio a desgraça e ridicularização, floresceu como um lírio.”
Entre o ano de 1619 e sua morte em 1624, aos quarenta e nove anos de idade, ele derramou seus pensamentos acumulados, escrevendo uma série de obras, incluindo aquelas presentes neste volume, que foram algumas de suas últimas obras. Ele tinha mais tempo para escrever porque seu negócio de fabricação de sapatos havia diminuído, talvez devido à questão de sua ortodoxia, contudo alguns amigos forneciam-lhe o necessário para viver. Entretanto, neste período, estava exposto à novos ataques de Gregorius Richter sendo forçado, desta vez, a entrar no exílio. Neste período, foi para a Corte Eleitoral em Dresden, onde o Príncipe mantinha interesses sobre ele, e ocorreu uma conferência entre Boehme, John Gerhard e outros teólogos eminentes. Ao final desta conferência, o Dr. Gerhard disse: “De forma alguma, eu condenaria este homem.” E seu colega Meissner disse: “Meu bom irmão, eu também não. Quem sabe o que está por trás desse homem? Como podemos julgar o que não entendemos? Que Deus converta este homem se ele estiver em erro. Ele é um homem de dons mentais maravilhosamente elevados que no momento não podem ser nem condenados nem aprovados.” Pouco tempo depois, enquanto Jacob estava na casa de um de seus amigos nobres na Silésia, contraiu uma febre. A seu próprio pedido, foi levado de volta a Görlitz, onde esperou pelo seu fim. No domingo, 21 de novembro de 1624, nas primeiras horas, chamou seu filho Tobias e perguntou se ele não ouvia aquela doce e melodiosa música. Como Tobias não ouvia nada, Jacob pediu-lhe para abrir bem a porta para que pudesse ouvir melhor; em seguida, ele perguntou que horas eram e, quando lhe disseram que acabara de bater duas horas, ele disse: “Ainda não é a minha hora; daqui a três horas é a minha hora.” Depois de algum silêncio, ele exclamou: “Ó Tu, Forte Deus de Tsebaoth, liberta-me segundo a tua vontade”, e imediatamente depois: “Tu, Senhor Jesus Cristo Crucificado, tem misericórdia de mim e leva-me contigo para o teu Reino.” Às seis da manhã, ele se despediu subitamente com um sorriso e disse: “Agora parto daqui para o Paraíso” e entregou seu Espírito.
Frankenberg escreve sobre ele: “Sua aparência física era humilde; baixo de estatura, testa baixa, porém têmporas proeminentes, nariz aquilino, barba escassa, olhos cinzentos que brilhavam num azul celestial, voz fraca, porém amável. Era modesto em seu comportamento, humilde na conversa, simples em sua conduta, paciente no sofrimento e de coração bondoso.” Assim como o sapateiro de Görlitz teve, em vida, alguns discípulos entre homens altamente educados, ele sempre teve alguns desde que partiu desta vida. Homens de situações tão diversas como o não-jurado William Law na Inglaterra; St. Martin, o “filósofo desconhecido” da Revolução Francesa; o sincero católico Franz Baader na Alemanha. Martensen, o Bispo protestante da Dinamarca, encontrou nele seu Mestre.
As seleções contidas no presente livro pertencem mais ao lado prático ou ético do ensinamento de Jacob Boehme do que à sua Cosmogonia, ou Visão, como melhor pode-se denominá-la, da natureza de todas as coisas. Acredito que qualquer velho morador de uma cabana, que não tivesse lido nada além da sua Bíblia, mas tivesse vivido a sua vida, entenderia bem o ensinamento geral da maior parte do que está contido nestes Diálogos e acharia todas as palavras de Boehme belas e reconfortantes. Portanto, não é necessário, para o propósito presente, apresentar completamente toda a Visão de Boehme; de certa forma nem teria eu o poder de fazê-lo. Porém, se for apresentado o seu ensinamento geral em relação à natureza da alma humana e sua relação com aquilo que não é ela mesma, poderá ser útil para os leitores que não estão familiarizados com os escritos de Boehme ou de seus discípulos. A Alma, na doutrina de Boehme, é um Ser que possui uma vontade ou desejo, e é auxiliada por um espelho de compreensão ou imaginação. A Vontade ou Desejo é da própria essência da Alma, inseparável de sua existência. Ele diz: “Onde há Desejo, também há Essência ou Ser”. A Alma está sujeita às atrações diversas do Centro da Vida e Luz Divinas, e do Espírito do Mundo. Iluminada pela sua compreensão, ela tem o livre poder de direcionar sua própria vontade e unir-se a isto ou aquilo. “Escolhe bem, tua escolha é breve e ainda assim infinita”.
A Alma é um Fogo mágico derivado ou proveniente de Deus Pai da Essência, “lumen de lumine[3]“, e aprisionada na escuridão. É um intenso e incessante Desejo pela Luz; anseia retornar ao Centro da Luz, de onde originalmente veio, ou seja, ao “coração de Deus”. Desta forma, é um “Fogo de Angústia”, até se tornar um “Fogo de Amor”. É um fogo de angústia enquanto está fechada em si mesma na sua escuridão. É um fogo de amor quando penetra e escapa de sua prisão escura e queima livre e suavemente em união com o Amor Divino. Deus então vem como uma Luz, um Fogo purificador suave para a Alma, e transforma todas as propriedades de desejo, fome, vazio, inquietude e tormento do Vida Natural em uma doçura de descanso e paz. Isso é chamado, nas Escrituras, de “novo nascimento”. Assim, a mesma coisa – o mesmo Fogo – é causa de tormento ou alegria, de acordo com as condições em que se encontra. O homem, que é um microcosmo de todo o Universo, é uma mistura de luz e escuridão. Sua angústia vem do aprisionamento de sua Alma na escuridão (como um simples fogo ardente) e continua até que ela possa irromper e unir-se com aquilo de onde veio e à qual pertence. Boehme diz: “A Escuridão Eterna da Alma é o Inferno, ou seja, uma fonte dolorosa de angústia, que é chamada a Ira de Deus, mas a Luz Eterna na Alma é o Reino dos Céus, onde a angústia feroz da escuridão se transforma em alegria. Pois a mesma natureza de angústia, que, na Escuridão, é causa de tristeza, é, na Luz, causa de alegria exterior e agitada… O Fogo é doloroso e consumidor, mas a Luz é suave, amigável, poderosa e encantadora, uma alegria doce e amável.” O puro deleite, sem traço de dúvida ou medo, esperança ou arrependimento, é o sinal da presença do Amor ou da Luz. Mais uma vez, Boehme diz: “O Fogo na Luz é um fogo de Amor, mas o Fogo na Escuridão é um fogo de Angústia e é doloroso, irritante e cheio de contrariedade.” O fim para o qual todas as coisas tendem é a separação final da luz e das trevas; este é o significado do “último dia”; mas o mundo atual é uma mistura perpétua de luz e escuridão, bem e mal, alegria e angústia. Assim, a Cruz de Jesus é, ao mesmo tempo, a mais alta encarnação do Amor e do Ódio.
É notável que, nesta doutrina de luz e trevas, Boehme foi quase seguido por alguém que, suponho, nunca havia ouvido falar dele, lendo apenas pouco além da Bíblia, trabalhando nas Escrituras com sua própria percepção poderosa e sincera, o herói cristão, Charles Gordon. Em seu pequeno livro chamado “Reflexões na Palestina”, escrito naquele único ano, 1883, de repouso ininterrupto de ação passado na Terra Santa, logo antes de seu último serviço em Khartum, Gordon enfatiza a repetição, como ele chama, tanto na alma individual quanto na história do mundo, de quatro processos constantemente recorrentes: um estado de trevas, uma luz rompendo através das trevas, uma divisão da luz das trevas ou reunião da luz, uma redispersão da luz nas trevas e, em seguida, uma renovação dos quatro processos, sempre em um nível ascendente do bem, direcionado para a eliminação final de toda a luz das trevas.
O fogo deve ter um combustível, algo em que se alimentar. Deve se alimentar ou perecer. Mas o espírito mágico do fogo, a Alma, não pode perecer porque é Essência eterna. Portanto, ela deve se alimentar ou sentir fome. Ela deseja a essência espiritual ou “virtude” para acalmar sua fome ardente. No entanto, durante o período em que está incorporada nesta natureza, ela pode se alimentar tanto do Espírito Divino quanto do Espírito deste Mundo. “Por isso”, diz Boehme, “podemos compreender a causa dessa variedade infinita que existe nas vontades e ações dos homens”. Pois tudo do que a Alma se alimenta e pelo qual sua vida de fogo é inflamada, “de acordo com isso a vida da Alma é conduzida e governada”. Você se torna semelhante ao que você se alimenta. Se a Alma se liberta de sua própria natureza e entra no “fogo de amor de Deus”, ela se alimenta da Essência Divina (a substância ou carne de Cristo), e é isso a que Jesus Cristo se referiu quando falou em se alimentar de seu corpo e quando falou do verdadeiro pão do céu “que dá vida ao mundo” (João 6:33), do qual aquele que come viverá para sempre (João 6:58), ou da “água viva”, da qual quem beber nunca mais terá sede, mas será para ele “uma fonte de água jorrando para a vida eterna” (João 4:13, 14). Essa alimentação não é de forma alguma metafórica, mas tão real e atual quanto a alimentação física.
Boehme diz: “A Essência dessa Vida come a Carne de Cristo e bebe o Seu Sangue… Agora, se a Alma come deste alimento doce, santo e celestial, então ela se inflama com o grande Amor no nome e poder de Jesus, de onde seu fogo de angústia se torna um grande triunfo de alegria e glória[4]“.
Boehme afirmava que o ser humano vive simultaneamente em três mundos: primeiro, no visível e externo mundo elementar do espaço e do tempo (onde o homem “é o Tempo e está no Tempo”); segundo, o “Mundo Eterno das Trevas, o Inferno, o centro da Natureza Eterna, de onde é gerado o fogo da alma, fonte de angústia”; e terceiro, no Mundo Eterno da Luz, o Paraíso, a morada Divina. Os mesmos processos de alimentação e vida ocorrem nos três mundos, de modo que a alimentação física é uma espécie de envoltório exterior da alimentação espiritual.
Se a Alma se acostuma a se alimentar nesta vida do alimento celestial aquele panem de coelo omne delectamentum in se habentem[5], gradualmente se torna de substância completamente celestial, purificada da escuridão e, quando a vida natural se encerra na morte, permanece no céu, onde de fato já está. No entanto, se a Alma se alimenta do Espírito e das Coisas deste Mundo, então, quando, em razão da morte, não pode mais se alimentar delas, ela é deixada na condição de um mero “Desejo angustiado” ou Fome eternamente insatisfeita, operando no vazio, em angústia perpétua. Assim, o Céu e o Inferno não são lugares, mas condições da Alma. Como escreveu Milton, que certamente estudou a tradução de Boehme feita em sua própria época escreveu:
“A mente é o seu próprio lugar, e em si mesma pode criar um Céu do Inferno, um Inferno do Céu.”
Eles estão misturados em toda parte nesta vida, mas quando esta vida se desvanece, a Alma permanece em um dos dois estados os quais trouxe nesta vida. A Alma, após a morte, permanece como um Desejo satisfeito, isto é, um Desejo que não existe mais, mas uma Alegria, ou como um Desejo angustiado. O persa diz:
“O Céu é a visão do Desejo realizado e o Inferno é a sombra de uma Alma em chamas.”
Boehme diz:
“O Céu é o Desejo realizado; o Inferno é uma Alma em chamas, não apenas uma visão ou uma sombra.”
O Céu e o Inferno estão dentro de nós, pois as nossas almas são partes do universo de tudo, em cada parte do qual o Céu e o Inferno estão misturados. As portas do Céu dentro de nós foram fechadas em Adão, mas o Poder de Deus, Cristo em Jesus, abriu pelas suas paixões “as portas fechadas do Paraíso”, ou seja, as portas de nossa “humanidade celestial interior”, e agora o viajante pode, se quiser, passar por elas. Não vivemos espiritualmente por um processo de raciocínio ou pela aceitação de doutrinas pela compreensão, mas pela ação do Desejo em se alimentar do Espírito do Amor, um processo de apropriação, atração e assimilação. A verdadeira oração é como se alimentar, ou talvez ainda mais, como a inspiração inconsciente do ar: ela deve ser constante. Por meio dela, é introduzida a vida celestial de fora para nutrir a mesma vida celestial contida na semente interior. Se um homem se alimenta adequadamente desta forma, a vida infernal e as paixões contidas nele, partes dos poderes das trevas ou as “nossas criaturas”, como diz Boehme, serão mortas pela fome, por falta de seu alimento apropriado. Por outro lado, um homem pode alimentá-las também de fora com seu alimento apropriado através de um desejo mal direcionado, privando assim a vida celestial na Alma.
Assim, a essência do ensinamento de Boehme sobre a Alma encarnada no Homem e revelada por seu corpo é que ela é um Ser eterno e que é fonte de alegria ou angústia conforme esteja, ou não, purificada ou tranquilizada pela comunhão com o Centro da Luz, ou a Fonte da Vida. Ele não contempla, como alguns professores orientais talvez façam, a aniquilação da Vontade da Alma por uma espécie de suicídio espiritual superior; sua existência é para ele a própria condição do bem, tanto quanto do mal; ele contempla sua libertação da prisão escura, contraída e egocêntrica, sua purificação e entrada na plenitude da vida celestial. Esse fogo mágico da alma, assim como o fogo visível, pode arder e destruir, ou pode servir como meio e base de todo o bem. Aqui está o fundamento tanto do bem quanto do mal, no homem e em todas as coisas.
Para compreender isso melhor, é preciso considerar o ensinamento cósmico subjacente à rica profusão de imagens, muitas vezes inconsistentes e conflitantes, em que Jacob Boehme incorpora sua Visão.
O homem caiu na Natureza. Mas a própria Natureza, separada e não preenchida pela Luz Divina, é um auto-tormento, uma mera Carência, um Desejo, uma Fome. A verdadeira distinção entre Deus e a Natureza é que Deus é um Todo Universal, enquanto a Natureza é uma Carência Universal, ou seja, a ser preenchida por Deus. A atração física não é nada mais do que o envoltório exterior desse desejo universal.
A Natureza preenchida por Deus é o Céu ou o Desejo realizado[6]. Sem Deus, é o Inferno, mero Desejo. O Céu é a Presença de Deus: o Inferno é a Sua Ausência. É tão verdadeiro dizer que o Céu está em Deus quanto dizer que Deus está no Céu.
Sem a existência de Deus, não poderia haver Presença nem Ausência, nem Céu nem Inferno. Se a Alma do Homem estivesse completamente dividida e separada da Vida Divina, ela seria, como parte da Natureza, um mero Desejo consciente, faminto e inquieto. Na medida em que está separada, ela participa dessa dor. Pois, “em todo o Universo das Coisas, nada está inquieto, insatisfeito ou impaciente, a não ser que não seja governado pelo Amor, ou porque sua Natureza não alcançou o pleno nascimento do Espírito do Amor. Pois quando isso é feito, toda fome é saciada, e todas as queixas, murmúrios, acusações, ressentimentos, vinganças e lutas são tão completamente suprimidas e superadas quanto a frieza, a densidade e o horror das trevas são suprimidas e superadas pelo rompimento da luz. Se se perguntar por que o Espírito do Amor não pode se desagradar, não pode se decepcionar, não pode reclamar, acusar, ressentir ou murmurar, é porque o Espírito do Amor não deseja nada além de si mesmo, é o seu próprio Bem, pois o Amor é Deus, e aquele que habita em Deus habita no Amor[7].”
A ideia de Boehme sobre os “Anjos caídos” é que eles estão totalmente e irremediavelmente separados da Vida de Deus. Eles são meros Desejos encarnados e desesperados, atormentando-se a si próprios. Eles caíram no inferno dentro de si mesmos, não podem deixar de odiar, ser amargos, invejosos, orgulhosos, irados e inquietos; e, portanto, torturadores dos outros. Eles perderam aquilo que o homem, por mais desviado que esteja, sempre possui: a faculdade de retornar ou se regenerar através da submissão e união com Deus. A centelha da Vida e do Espírito de Deus que está nos Homens, não está nos Anjos caídos. Esperemos que Seres tão completamente perdidos não existam.
Deus está fora da Natureza e, ainda assim, de certa forma, também está Nela, porque há uma vida divina ou virtude na Natureza que, ansiando se reunir com sua fonte, é causa de angústia quando está dividida e de alegria quando está unida. Assim, no mundo exterior, a semente enterrada na terra contém um poder semelhante à virtude do sol. É isso que irrompe da semente, força-se através da escuridão, do aprisionamento, à nutritiva e necessária terra e, por fim, se conseguir superar os obstáculos, expande-se alegremente à luz do sol e se alimenta de seu calor. Aquilo na natureza interior do homem que responde a esse poder ou vida na semente é chamado por Boehme de Vida ou Espírito de Jesus Cristo. O egoísmo ou individualidade, a antiga célula contraindante e restritiva é destruída à medida que essa força expansiva e crescente se desenvolve e irrompe. Boehme diz: “Assim como o Sol no mundo visível governa o Mal e o Bem, e, com sua luz e poder, toda sua essência, está presente em todos os lugares, penetra em cada Ser e se doa por inteiro a cada Ser, permanecendo inteiro, nada de seu ser se afastando disso. Desta forma igualmente se compreende a pessoa e ofício de Cristo, que governa o mundo interior espiritual e penetra na alma, no espírito e no coração do homem fiel. Assim como o Sol atua por meio de uma erva, de modo que a erva se enche da virtude do Sol e, por assim dizer, se converte pelo Sol, de forma que se torna inteiramente da natureza do Sol; assim Cristo reina na vontade resignada ou na Alma e Corpo, sobre todas as inclinações malignas e gera o homem para ser uma nova criatura celestial.” O mesmo ensinamento é expressado de forma eloquente em um trecho de William Law. Ele diz:
“O ser humano possui uma centelha da Luz e do Espírito de Deus, como um dom sobrenatural de Deus dado no nascimento de sua alma criar, gradualmente, um novo nascimento da vida que foi perdida no Paraíso. Essa santa centelha da Natureza Divina dentro dele possui uma tendência natural, forte e quase infinita de buscar a Luz eterna e o Espírito de Deus, de onde ela surgiu. Ela saiu de Deus, participa da Natureza Divina e, portanto, está sempre em um estado de propensão e retorno a Deus. Tudo isso é chamado de respiração, movimento e vivificação do Espírito Santo dentro de nós, que são várias das operações desta centelha de vida, que estão tendem em direção à Deus. Por outro lado, a Divindade, considerada em si mesma e sem a alma do homem, possui uma tendência infinita e inalterável de amor e desejo pela alma do homem, para unir e comunicar suas próprias riquezas e glórias a ela, assim como o Espírito do ar, sem o homem, une e comunica suas riquezas e virtudes ao Espírito do ar que está dentro do homem. Esse amor ou desejo de Deus pela alma do homem é tão grande que ele deu seu Filho unigênito, o esplendor de sua glória, para assumir a natureza humana em seu estado caído, para que, por essa união misteriosa de Deus e Homem, todos os inimigos da alma do homem pudessem ser vencidos, e cada criatura humana pudesse ter o poder de nascer de novo conforme a Imagem de Deus, na qual foi criada inicialmente. O evangelho é a história desse Amor de Deus pelo Homem. Interiormente, ele tem uma semente da Vida Divina inserida no nascimento de sua alma, uma semente que possui todas as riquezas da eternidade em si e está sempre desejando nascer nele e estar viva em Deus. Exteriormente, ele tem Jesus Cristo, que, como um Sol de Justiça, está sempre lançando seus raios vivificantes sobre essa semente interior, para acendê-la e chamá-la para o nascimento, fazendo com essa Semente do Céu no Homem aquilo que o sol no firmamento está sempre fazendo às sementes vegetais na terra.”
“Considere esta questão na seguinte semelhança. Um grão de trigo possui o ar e a luz deste mundo encerrados ou incorporados nele. É o mistério de sua vida, é o poder de seu crescimento. Por meio disso, possui uma contínua e forte tendência de se unir novamente com aquele oceano de luz e ar do qual surgiu. Por outro lado, aquele imenso oceano de luz e ar, tendo sua própria descendência oculta no coração do grão, possui uma contínua e forte tendência de se unir e comunicar com ele novamente. A partir desse desejo de união em ambos os lados, não só a vida vegetal, assim como todas as virtudes e poderes nela contidos emergem. Contudo observe bem que esse desejo de ambos os lados não pode ter seu efeito até que a casca e a parte grosseira do grão entrem em um estado de corrupção e morte; até que isso aconteça, o mistério da vida nela inserido, até então oculto, não pode se manifestar.”
A ação do Sol se dá no agitar e despertar de cada elemento, chamando à atividade seu próprio calor e vida, aprisionados e latentes. Salvo pelo mesmo processo da natureza, trabalhando em uma esfera interior, não pode ocorrer a florescência e o fruto da Alma. O Sol, verdadeiro emblema do Espírito Redentor, auxilia cada força vital a romper seu estado de morte, como o exemplo dos grãos de trigo encontrados em túmulos egípcios posteriormente replantados. Permaneceram neste local por milhares de anos, até entrarem em seu estado mais elevado de vida possível. De fato, nessa escola de sabedoria, a luz natural visível, da qual o Sol é o meio de distribuição para nosso sistema solar (existem outros sóis para outros sistemas planetários), é na verdade uma manifestação externa da luz e calor sobrenaturais internos – não sendo meros símbolos. Discursamos mais genuinamente do que o nosso próprio conhecimento quando discursamos a respeito de um “Dia Celestial”. Toda a Natureza é uma série de “Nascimentos da Deidade. “O mundo exterior”, diz Boehme, “surgiu do mundo espiritual interior, a saber, da Luz e das Trevas”. E seu intérprete inglês diz: “Tudo o que é encantador e arrebatador, sublime e glorioso em espíritos, mentes ou corpos, seja no céu ou na terra, vem do poder da Luz Sobrenatural abrindo suas maravilhas infinitas neles. Nas entranhas do Inferno não encontra-se a miséria, o horror ou a distração, mas sim a ausência de comunicação com a Luz sobrenatural. E se a Luz sobrenatural não derramasse as suas bênçãos no nosso mundo, através da materialidade do Sol, toda a Natureza exterior estaria cheia do horror do inferno.” E, em outro lugar: “Não há mansidão, benevolência ou bondade em anjos, homens ou em qualquer outra criatura, a não ser no local onde a Luz é o Senhor de sua vida. A Luz inicia e conduz a própria vida. Tal vida não se eleva e nem possui alguma glória na ausência da Luz. Os sons não têm suavidade, flores e sementes não têm doçura, plantas e frutos não têm crescimento, senão a manifestação do Mistério da Luz neles.” E assim Boehme ele mesmo diz: “Não há nada que seja criado ou nascido na Natureza que não manifeste sua forma interna externamente; pois o interno trabalha ou se desdobra continuamente rumo à manifestação. Através do poder e das forma deste Mundo podemos compreender como a única Essência se manifestou com o nascimento externo no desejo da semelhança; como ela se manifestou em tantas formas e aparências, que vemos e conhecemos nas estrelas e elementos, assim como nos seres vivos e também nas árvores e ervas.” Desta forma, dentro e fora da Alma do Homem, há uma verídica comunhão entre toda a beleza, doçura e glória.
É essa verdade, não a analogia entre a vida essencial do Homem e a Natureza, mas da unidade em todas as coisas, que agora está se revelando de várias maneiras. Wordsworth, um verdadeiro vidente, deu a ela sua expressão mais elevada na Poesia Inglesa. A ciência moderna tende a confirmar essa unidade.
Deus, então, deve tornar-se Homem, deve haver um nascimento da Vida de Deus na Alma, para que a Alma possa viver sua vida mais elevada. Somente dessa maneira as propriedades selvagens da Natureza podem ser subordinadas e direcionadas para seu uso adequado, e pacificar a sua fome inquieta. Bondade e felicidade podem ser esperadas quando a Vida Divina se une e habita na Vida da Natureza. É a “Palavra enxertada” da Epístola de São Tiago.
A planta não pode cessar seu crescimento em direção ao sol. Se está muito profunda na terra, encontra um obstáculo por estar num solo mais argiloso, ou ressequida pela seca, não atingindo, desta forma, seu objetivo, a culpa não é dela. Mas, no mundo interno espiritual (no qual a planta não habita), a Alma do homem tem essa liberdade – a de poder conscientemente voltar-se para Deus, cujo Espírito e Vida virão ao seu encontro, ou voltar-se para as Coisas deste Mundo. Sobre essa liberdade de escolha é fundamentado o ensinamento moral de Boehme. A Alma é como uma mulher (e todas as nações testemunharam em suas línguas e parábolas este fato) que pode, por livre escolha, submeter e entregar seu corpo à este ou aquele homem. Quando faz a sua escolha, seu poder livre termina. Conforme a sua própria escolha, sua capacidade de vida, será fertilizada pelo bem ou pelo mal; assim será a nova vida que surge dentro dela, e assim será sua alegria ou tristeza futuras.
Num sentido mais profundo o desejo, da centelha de Vida na Alma, de retornar à sua Fonte Original é parte do próprio desejo da Vida Universal pelo seu coração ou centro. Deste desejo, a Atração Universal, lutando contra a resistência, em direção a um centro universal, provou governar o mundo fenomênico ou físico; é apenas o invólucro externo e o ofício visível. Foi dito que Sir Isaac Newton (que foi um leitor diligente das obras de Boehme) “arou com a novilha de Jacob Boehme”. Na verdade, existe apenas uma Religião, aquela fundada nos processos eternos, imutáveis e universais da Natureza real das coisas, e dessa forma, o Cristianismo é, apreendido da forma correta, a suprema Revelação. Isso será melhor compreendido por todos à medida que a Religião se desdobra. Falando corretamente, não há tal coisa como religião sobrenatural; existe apenas uma Religião, a da Natureza. É ofício da religião visível ensinar por meio de sinais e parábolas, incorporando o mistério em símbolos e cobri-lo com as vestimentas da adoração.
O método de expressão de Jacob Boehme é singular. A estrutura de seu próprio pensamento não é facilmente aceita pelos pessoas da contemporaneidade, se for adotada uma visão mais superficial. A teoria evolucionista influencia profundamente todos os campos do pensamento. Agora tendemos a pensar mais na ascensão do Homem a partir da Natureza do que na sua queda Nela, embora talvez não possa haver uma ascensão sem uma queda precedente, assim como não pode haver um retorno sem uma saída precedente. A Evolução pode ser a forma temporal da Atração. Mas tudo isso afeta a forma externa, não a essência da doutrina. Boehme está preocupado com a verdadeira natureza das coisas, além do tempo e do espaço, com seus fatos aparentes e em grande parte enganosos. Ele apela para o conhecimento de cada Alma sobre Si Própria extraindo o seu ensinamento sobre a Natureza Universal do Princípio de que tudo está em tudo (e de nenhuma outra forma podemos aprender as coisas como são em si mesmas). “No Homem (ele diz) reside tudo o que o Sol ilumina ou o que contém no Paraíso, incluindo o Inferno e todas as Profundezas”. Sua Ilíada é a luta entre luz e escuridão, vida e morte, expansão e contração, força centrípeta e centrífuga, calor e frio, amor e ódio, paz e ira, humildade e orgulho, sacrifício próprio e busca de si mesmo, alegria e angústia, repouso e inquietação, em toda a Natureza e na Alma do Homem. Não sabe todo homem, que viveu uma vida plena, a verdade e a realidade de tudo isso? Isso é conhecido de forma mais especial e real por aqueles espíritos ardentes e aventureiros que navegaram em mares distantes do pensamento ou da ação, não apenas percorrendo as margens da tradição, autoridade e regras estabelecidas. Os pecadores conhecem algumas coisas de forma mais vívida do que aqueles que sempre foram bons. Apenas o homem que esteve doente conhece a diferença entre doença e saúde. O pródigo que viajou a um país distante e viveu conforme desejou, compreendeu melhor o significado de paz e amor do que o irmão que sempre ficou em casa.
Esses viajantes, se retornam a tempo, conhecem melhor, ensinados pelas dilacerantes lições da experiência, a diferença entre o Paraíso e o Inferno dentro deles; o Inferno da ira, autotortura, medo, ansiedade, inveja, malícia, má vontade, orgulho, crueldade, paixão sensual, desejo de dominar, e o Paraíso do amor, benevolência, mansidão, humildade, compaixão, paz, alegria, longanimidade.
Eles sabem que o Paraíso e o Inferno podem ser igualmente revelados na Alma. Desde a juventude, sentiram algo em si mesmos lutando, muitas vezes fracamente, contra desejos passionais por riqueza, honra, sucesso e domínio sobre as mentes, afetos e corpos de outrem. Por trás de toda essa agitação e angústia, constantemente insatisfeita em busca daquilo que não satisfaz, têm consciência da existência de uma vida divina que cresce lentamente em direção ao céu, constante e repetidamente frustrada e repelida pelos ataques renovados do Espírito do Mundo, porém de forma alguma destruída por completo. Nos momentos de luta mais feroz contra as paixões rebeldes, sentiram a força da Divina Assistência fluir – se ao menos a tivessem poderosamente invocado, voltando-se para sua fonte como um bebê em direção ao seio de sua mãe, ouviriam o “Paz, aquieta-te” em meio às mais selvagens tempestades espirituais. Sabem que, se foram salvos, não foi por sua própria força ou razão, mas sim por esse poder externo.
Conhecem a impotência, na ação, da simples capacidade reflexiva ou espectadora. Neste significado da palavra “razão”, concordariam com aquele que escreveu: “Seu Coração é o melhor e maior presente de Deus para você; é o mais alto, maior, forte e nobre Poder da sua Natureza; forma toda a sua Vida, seja qual for; todo Mal e todo Bem vêm dele; somente seu Coração tem a chave da Vida e da Morte; faz tudo o que quer; a Razão é apenas seu brinquedo; e seja no Tempo ou na Eternidade, só pode ser um mero Espectador das maravilhas da felicidade ou das formas de miséria, nas quais a atuação correta ou incorreta do Coração está envolvida.”
William Law observa que Jesus Cristo, embora possuísse toda a sabedoria, oferece apenas um pequeno número de ensinamentos à humanidade, “enquanto cada professor moral escreve volumes sobre cada virtude individual.” E, acrescenta ele, porque nosso Senhor “sabia o que eles não sabem, que nossa doença toda reside no fato de que a Vontade de nossa Mente está voltada para este Mundo, e que nada pode nos aliviar ou nos corrigir, exceto a mudança da Vontade de nossa Mente e o Desejo de nossos Corações para Deus. E é por isso que ele nos chama a uma negação total de nós mesmos e da vida deste Mundo, à fé nele como o Parteiro de um novo nascimento e à vida em nós.” Nessa única raiz de toda a questão, Jacob Boehme insistia, expressando uma verdade de mil formas e por meio de imagens, que para ele não são simples imagens, mas o mesmo processo em outras esferas. Todo o seu ensinamento prático e moral reforça a direção correta do Desejo. Mali mores sunt mali amores[8], disse alguém que também viu a verdade; o profundo Agostinho. A fome da Alma deve ser voltada para a fonte da alegria eterna. Tudo o que é bom e belo na natureza ou no coração humano flui desta fonte. O Desejo é tudo na Natureza; opera tudo. O Paraíso é a Natureza preenchida pela Vida divina, que foi atraída pelo Desejo.
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