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Shirlei Massapust
O Japão é um país onde o mitologema do vampiro foi assimilado e se desenvolveu de um modo bastante peculiar. Nos produtos das franquias JoJo no Kimyō na Bōken (ジョジョの奇妙な冒険), Higanjima (彼岸島), BASTARD!!- Ankoku no Hakaishin (BASTARD!!-暗黒の破壊神) e Hellsing (ヘルシング), os vampiros mais fortes e antigos se mostram capazes de sobreviver à decapitação e até desenvolver asas e/ou tentáculos para a movimentação das cabeças falantes antes da total regeneração corporal. Como um antigo escudo alado ornamentado com cabeça da górgona grega, o vampiro nipônico também se basta enquanto crânio com dentes caninos alongados. Deste modo se aproxima esteticamente da folclórica hitodama (人魂), uma cabeça-fantasma flamejante flutuante com poder de materializar um corpo completo quando quer e bem entende.
Pôster promocional japonês anunciando o filme Bram Stoker’s Dracula (1992) dirigido por Francis Ford Coppola. Este pôster foi criado por Eiko Ishioka e Haruo Takino. Eiko também criou todo o figurino do filme e ganhou um prêmio da academia por seu trabalho.
Outra peculiaridade da arte nipônica seria o imbricamento da atividade vampírica com o fascínio da lua cheia; qualidade que, no ocidente, predomina nos lobisomens.
Xīxuè yāoguǐ (吸血妖鬼)© 2008, Takato Yamamoto.[1]
No primeiro volume da novela ilustrada Kyūketsuki Hunter D (吸血鬼ハンターD, 1983), escrita por Hideyuki Kikuchi, chega um momento em que a nobreza vampírica planeja suas últimas conquistas no ambiente humano. “A lua nasceu redonda. Estranhamente grande e branco, o perturbador disco lunar enviou ondas selvagens de ansiedade nos corações de todos que olhavam para ele”.[2] Tal descrição sugere a localização da lua no perigeu[3] de sua órbita, estando ao mesmo tempo em fase cheia. No texto original todos se sobressaltam com a influência lunar, sejam humanos ou monstros. Já no script do OVA derivado, Kyūketsuki Hunter D (吸血鬼ハンターD, 1985), adaptado por Hiroshi Hirano, traduzido e dublado em idioma inglês por Streamline Pictures (1992), o luar sensivelmente aparece como metáfora do ciclo menstrual:
— Amanhã é a “Lua da Mulher”.
— “Lua da Mulher”?
— É quando a lua vermelha aparece uma vez por mês?
— Os aristocratas detestam morder para sorver sangue nesta noite… porque acreditam que esta lua causa o fluxo de sangue impuro.
Hellsing (ヘルシング) é uma série de romances gráficos escrita e ilustrada pelo mangaká Kouta Hirano. Seu primeiro capítulo foi publicado no gibi antológico Shōnen Gahōsha (株式会社少年画報社), edição do mês de maio de 1997. No mitologema estabelecido por Kouta Hirano os vampiros tem um modo diferente de ver as coisas. Em dado momento Alucard ensina Seras Victoria: “Não tente mirar como fazia antes. Atirar como humana só fará acertar como humana. Atire como se tivesse um terceiro olho na testa”.[4] Seguindo tais instruções ela conseguiu acertar o coração de uma homicida fugitiva há seiscentos quilômetros de distância, correndo numa estrada sem iluminação em noite escura. Seras se impressiona: “Está de noite, mas enxerguei melhor que de dia”.[5]
Aparentemente a visão noturna afeta a forma como os vampiros veem o luar. Nos primeiros quatro quadros que compõem a primeira página o vampiro caçador de vampiros Alucard procrastina em serviço, “admirando a lua”, e se desculpa: “Não pude resistir a essa noite tão linda”. Algumas páginas depois Alucard continua divagando enquanto observa a lua cheia. Ele medita sobre a motivação do inimigo que, sem nenhuma razão aparente, começou a criar ghouls mordendo qualquer pessoa que atravessava seu caminho: “Está realmente uma noite bela e serena. Até entendo a vontade de sugar sangue”.[6]
A referida série de romances gráficos acabou adaptada como animação televisiva, de nome Hellsing (ヘルシング), cujo primeiro episódio estreou na Fugi TV em 10/10/2001. O script adaptado do roteiro por Chiaki J. Konaka omite referências verbais à lua que, entretanto, pode ser vista em sua fase cheia. Alucard confessa: “Que noite perfeita. É o tipo de noite que me dá vontade de beber”.[7] Nesta noite, tanto no gibi quanto no desenho animado, ele acabará por fazer da policial Seras Victoria (セラス・ヴィクトリア) sua nova pupila, ao invés de deixá-la sofrer morte iminente.
A Lua em céu infravermelho visto sob a ótica dos vampiros na cena final do primeiro episódio.
No mitologema estabelecido por Kouta Hirano, se um vampiro morder alguém sexualmente experiente tal pessoa se transforma em um ghoul estupidificado que obedece cegamente às ordens do vampiro que lhe mordeu. Ou seja, vira seu escravo. Mas se um vampiro morder alguém que seja ainda virgem, tal pessoa se transforma em outro vampiro e mantém sua competência cognitiva, apesar de instintivamente inclinar-se a obedecer às ordens do vampiro-mentor.[8] Essa inclinação para a servidão voluntária só cessa quando o vampiro-mentor transforma o vampiro-pupilo em um “puro-sangue” dando-lhe uma amostra do seu próprio sangue para o pupilo beber.[9]
O que acontece se um vampiro atravessar o portal dos mortos?
Nas dependências de todo santuário xintoísta existe uma estrutura em formato de arco chamada torii (鳥居) ou “porta dos mortos”, que marca a transição do mundano para o sagrado. Quando um vivo entra ali ele apenas chega ao outro lado do portal, no mundo material, mas quando o espírito do morto atravessa o torii, ele chega em shinkai (神界) , a terra dos Kami (神). Em 06/08/1945 a cidade Nagasaki foi atingida pela segunda bomba atômica lançada no Japão. Quatro dias depois o fotógrafo Yousuke Yamahata penetrou no ambiente radioativo e registrou imagens da tragédia: Os prédios estavam destruídos e tudo parecia devastado, exceto por um torii que permaneceu intacto, ainda de pé. Algo semelhante voltaria a acontecer em 2011, quando a ocorrência simultânea de um terremoto com tsunami devastou a cidade de Otsuchi, deixando de pé somente o torii do santuário de Kusuchi. Então tais estruturas momentaneamente viraram assunto viral na internet, com muitos questionado por que esses objetos funcionais para o além da vida se revelaram indestrutíveis no momento em que os mortos mais precisavam deles.[10]
Na ficção nipônica este arco inspirador de temor reverencial apareceu em duas narrativas vampirescas. Kōji Matsumoto incluiu um torii quando descreveu a construção de um santuário xintoísta ao redor do cárcere do vampiro Miyabi (雅), no romance gráfico Higanjima (彼岸島); porém Miyabi nunca teve a oportunidade de fazer a travessia porque estava preso no interior do templo. Depois o autor parece ter esquecido daquilo.
A história do jogo contemporâneo Castlevania Aria of Sorrow, lançado pela Konami em 08/05/2003, é ambientada no futuro, ano 2035, quando o estudante Soma Cruz vai ao santuário xintoísta Hakuba Shrine para assistir a um eclipse solar. Ele inocentemente atravessa o portal torii durante o eclipse e não sai do outro lado conforme esperado. Ao invés disso fica preso num castelo em um mundo paralelo até descobrir que lá era sua morada numa encarnação passada, pois ele é Drácula reencarnado. Para reabrir o portal e sair, Soma Cruz tem de desenvolver habilidades vampíricas sugando as almas dos oponentes e vencer o kháos que é menos um monstro do que um estado das coisas representado pela serpente-dragão circundando o entorno do olho que tudo vê.
Vampiros vivendo no interior oco da nossa lua
Em 2019 o geoquímico Qian Yuan e o astrofísico Steven Desch, da Universidade do Arizona (ASU), ressuscitaram e legitimaram uma velha teoria sobre Theia, um planeta que se chocou com a Terra primitiva há 4,5 bilhões de anos. Theia se partiu em três deixando duas partes fundidas à Terra. A terceira parte se transformou em nossa Lua.[11]
Usando um exercício de imaginação e licença poética nós podemos conceber a vida em desespero lá e cá, na ocasião do cataclismo. A teoria da hipótese Siluriana sustenta que, sendo a Terra um planeta formado há aproximadamente 4,6 bilhões de anos, poderiam ter existido civilizações desenvolvidas antes dos humanos modernos.[12] A mangaká Naoko Takeuchi (武内直子) usou o recurso da hipótese Siluriana no romance gráfico Bishōjo Senshi Sailor Moon (美少女戦士セーラームーン)[13] onde, antes dos tempos conhecidos, haveria apenas um reino na Terra e outro em Mare Serenitatis, um topônimo de 674 km de diâmetro visivelmente destacado em nossa lua.
Este reino lunar, chamado Milênio de Prata, prosperava no interior dum domo atmosférico que impedia o escapamento do ar até o dia em que entrou em conflito com a Terra. Uma infinidade de tempo depois a gata extraterrena Luna – que sobreviveu num tanque de animação suspensa – instruiu as Sailor Senshi a esperarem uma noite de lua cheia, data ideal para a abertura de um circulo mágico nas águas da fonte da praça de Jūban Chō; donde elas decolam sem foguete e sem trajes espaciais, usando somente magia para voar até as ruínas do Milênio de Prata em Mare Serenitatis.[14] (Salvo engano, essa cena aparece no episódio 35 da série clássica produzida pela Toei Animation em 1992).
As vezes referências em Bishōjo Senshi Sailor Moon são inesperadamente eruditas. Num momento de tremenda angústia, as lágrimas de Usagi Tsukino se transformam num minério com poderes maravilhosos que pode ressuscitar os mortos e explodir estrelas, chamado maboroshi no ginzuishou (幻の銀水晶).[15] Todavia, foi revelado numa conversa infantil e casual que as peças de joalheria favoritas de Usagi Tsukino são “rubi e pérola”.[16]
A inspiração óbvia foram os livros do mineralogista e joalheiro George Frederick Kunz (1856-1932), que deu nome à kunzita, pedra transformada num personagem antagonista. Ele escreveu: “Devido à beleza casta e moderada das pérolas, não é estranho que poetas de muitos países tenham fundado sua origem nas lágrimas – lágrimas de anjos, de ninfas aquáticas, de pessoas amáveis e devotadas”.[17] Segundo este autor, “a mais comum, bem como a mais desejável normalmente, é a branca, ou melhor, o brilho prateado ou do luar, – ‘la gran Margherita’, como Dante a chama”.[18] E parece que Naoko Takeuchi se deu ao exaustivo trabalho de descobrir aquele verso de La Divina Commedia que descreveria exatamente como haveria de ser o imensurável brilho de sua lágrima lunar.
31. Parev’a a mo che nube no coprisse
lucida, spessa, solida o pulita,quasi adamante che lo sol ferisse.
34. Per entro sè l’eterna margarita
ne recepette, com’acqua recepe
raggio di luce, permanendo unita.31. Parecia que uma nuvem nos cobrisse
lúcida, densa, sólida e polida,
como diamante igual que o Sol ferisse.34. Nossa presença a gema, em si contida
recebeu, assim como água recebe
raio de luz permanecendo unida.[19]
Dante e Beatriz penetram na lua emanado corpos sutis, como se fossem fantasmas. A lua é a pérola (margarita) eterna das regiões paradisíacas (Paraíso, Canto II:34), mas também é o astro onde os italianos contemporâneos de Dante enganosamente viam a imagem de Caim carregando arbustos espinhosos para o fogo do seu sacrifício (Inferno, Canto XX:126 e Paraíso, Canto II:51). Nas obras de Naoko Takeuchi os habitantes da lua não são vampiros, mas tem problemas para enfrentar yōma (妖魔) procedentes doutra dimensão, alguns deles com dentes caninos alongados, todos eles engajados em drenar a “énergie”[20] humana induzindo comportamentos compulsivos até o exaurimento. Pessoas escravizadas pelo trabalho se tornam algo como zumbis inconscientes, oponentes da lua.
Em data posterior surgiu outra obra de ficção combinando a hipótese Siluriana com um conflito entre antigos habitantes da Terra e sua lua. O primeiro romance gráfico produzido pela mangaká Yana Toboso foi o pouco conhecido Rust Blaster (ラストブラスター), uma história de vampiros publicada pela editora Shōnen (少年漫画) em 27/05/2006. Existe uma edição brasileira da PANINI, que também traduziu o sombrio e divertido Black Butler (黒執事), a obra mais famosa desta autora.
Logo na primeira página somos alertados de que “vai começar a noite das luas gêmeas que acontece uma vez a cada mil anos”. A lua range e lentamente começa a se dividir em duas…[21] Para Yana Toboso os primeiros vampiros são alienígenas habitantes duma cidade situada no interior oco da nossa lua. Eles usavam um portal mágico para vir à Terra em busca de sangue humano. “Porém os dampiros, que nasceram durante essa longa história, conspiraram com os humanos para eliminar os vampiros. Eles travaram uma guerra usando uma arma poderosa e selaram o portal do mundo dos humanos[22]”.
Os vampiros presos enlouqueceram de fome e passaram a devorar uns aos outros, caçando os mais fracos. Mil anos depois, no planeta Terra, humanos e vampiros aliados ainda coexistem pacificamente. Para garantir o cumprimento da norma de não sugar sangue alheio, recrutas dum esquadrão especial são treinados num curso, no interior de Gardênia. Lá eles fazem mais fofoca, bagunça e meninice do que qualquer outra coisa. Não é admirável que o inimigo chegue ao abuso de invadir o local para morder “lixos que esqueceram a própria natureza”.[23] Com excessão de Aldred Van Envrio, todos os vampiros terráqueos nasciam com a capacidade de gerar estranhas armas ancestrais, materializadas a partir do nada. Com excessão de Aldred Van Envrio, que prefere passar fome a suportar o sabor azedo, todos eles bebiam sangue artificial. E foi justamente o fraco Aldred Van Envrio o escolhido para combater o cataclismo que ameaçava pôr fim à paz na Terra.
Embora Dante já levantasse a hipótese da lua oca, não é impossível que Yana Toboso haja se inspirado nos mais sérios experimentos científicos da vida real. Entre 1972 e 1977, os sismômetros instalados na Lua pelas missões Apollo registraram terremotos. A Lua foi descrita como “tocando como um sino” durante alguns desses eventos. Esta frase consta num artigo do periódico Popular Science (1970). Quando a Apollo 12 bateu deliberadamente o Estágio de Subida do seu Módulo Lunar na superfície da Lua, foi alegado que a Lua tocou como um sino por uma hora, levando a argumentos de que nosso satélite deve ser oco como um fūrin (風鈴), o sino redondo japonês.
A visão do ocidente sobre mortos-vivos lunáticos
No filme Pirates of the Caribbean: The Curse of the Black Pearl (2003) os astecas lançam uma maldição sobre um grande tesouro que lhes foi tomado à força. Todo aquele que afanar uma peça de ouro e morrer com ela em sua posse permanecerá consciente, morto-vivo, faminto sem poder comer, sedento sem poder beber e sofrendo todas as necessidades até que o sangue do último descendente do conquistador caia sobre o espólio reunido. Neste caso a verdadeira forma esquelética dos amaldiçoados, que geralmente parecem humanos, é feita visível quando exposta ao luar em noites de lua cheia.
Lembro de haver encontrado umas duas referências a vampiros excitados pelo luar, na juventude, enquanto lia algumas centenas de romances gráficos de horror brasileiros garimpados pelo Marquinhos da Gibimania. Ademais, o famoso lobisomem de Gedeone Malagola era um quase vampiro, com título de conde, capa e tudo.
Se um humano fosse ao espaço sem a proteção de um traje espacial o astronauta morreria quase instantaneamente. A perda de pressão e a exposição ao vácuo do espaço impossibilitariam a respiração do astronauta. Mas se o Superman, uma Sailor Senshi ou um poderoso vampiro voador fictício sair da atmosfera terrestre não lhes acontece nada.
Em um dos últimos episódios da telenovela VAMP (15/07/1991 a 08/02/1992)[24] o Conde Vladimir Polanski (Ney Latorraca) levou sua amada Natasha (Cláudia Ohana) para desfrutar a “lua de mel” na lua, onde vampiros podiam falar a despeito da ausência de ar. Ele tinha a intenção de conceber um filho, sem saber que ela já estava grávida de Felipe Rocha (Fábio Assunção). Se protagonista e antagonista se repelem na telenovela, na peça teatral derivada, VAMP (2017), quando Vladimir Polanski entra em luto e negação pela morte da mãe Madrácula (Claudia Netto), a cantora Natasha percebe a fragilidade e humanidade que resta no fundo do coração de seu diabólico patrono. Natasha se apaixona e voluntariamente se dispõe a viver com ele que, agora, necessita de cuidados.
Fora da ficção achamos um exótico amante onírico na lua. Uma “jovem paciente catatônica” consultada por Jung pronunciou uma narrativa onde ela figurava na qualidade de protagonista, tendo vivido na lua. O satélite da Terra era habitado. Enquanto os homens adultos patrulhavam, as mulheres e crianças se escondiam em crateras, temendo serem mortas por um perigoso vampiro, habitante das mais altas montanhas.
A terráquea sonhadora decidiu sacrificar o vilão apunhalando-o em determinada plataforma, numa torre erigida especialmente para isso. Ela aguardou-o durante algumas noites, usando a si mesma como isca. Quando o vampiro a viu, ele voou em sua direção “como um grande pássaro preto” coberto por “vários pares de asas”. Era um homem de beleza sobrenatural, tão fascinante que a terráquea desistiu de matá-lo, preferindo voar com ele para longe. Então a população extraterrena continuou sob ameaça de vampirismo.
Certa vez a paciente alegou haver sido repreendida pelo companheiro onírico, ressentido pela revelação de seu segredo, e foi punida com impedimento de retornar à lua. Então parou de sonhar, conseguiu um emprego de auxiliar de serviços gerais no sanatório, casou, teve sete filhos e sobreviveu incólume a duas guerras mundiais.[25]
Escultura de areia numa praia em Marbella. Foto viralizada na internet em 2009.
No último capítulo da telenovela Mulheres de Areia (01/02/1993-25/09/1993)[26] o deficiente mental Tonho da Lua (Marcos Frota) é igualmente transportado pelo céu, abduzido pelo luar em noite de lua cheia. Não sabemos o que aconteceu depois. Seu habito de esculpir copiosamente uma “namorada de areia” na praia, e rejeitar uma pretendente humana, reflete o equívoco de Natanael no conto Der Sandmann (1817), de Hoffmann. Apaixonado por uma mulher que ele viu por meio de um binóculo, Natanael pretere sua noiva humana e, depois, descobre que “Olympia” é apenas uma boneca!
Freud, na crítica literária Das Unheimliche (1919), conclui que este conto permite uma reflexão sobre a relação entre pulsão escópica e angústia. Muniz Sodré estende o problema a leitores compulsivos de ficção, cinéfilos, jogadores ou quaisquer pessoa que não pode aproveitar seu conhecimento porque sua personalidade é quase totalmente absorvida pelo mundo de fantasia que cria na própria cabeça, de modo que logo esbarra em dificuldades quase incapacitantes sempre que precisa ser uma pessoa sociável.
Em certos casos, porém, os próprios criadores manifestam a sua desconfiança para com o excesso de imaginário – entendido tanto como superexcitação intelectual quanto como descaminho da imaginação ou abuso do inconsciente – na produção artística. Um bom exemplo francês é Balzac, que vituperava contra “a abundância grande demais do princípio criador”, mortal para a execução da obra, em sua opinião. Outro exemplo é o alemão Hoffman, para quem o desbordamento intelectual e imaginativo seria capaz de tornar o homem cego ao mundo natural. Comenta um crítico: “O que faz Natanael perder-se em Der Sandmann é que ele não é mais capaz de distinguir um ser humano vivo de sua cópia artificial (a boneca Olympia).
O realista Balzac e o romântico Hoffmann, duas figuras exponenciais da literatura europeia, movem-se aí no interior de uma temática que reflete as preocupações com os limites entre a vida e a arte, com o desgaste da vitalidade humana em virtude da ssuperabundância de recursos intelectuais ou imaginativos. Hoje o conflito desloca-se para os limites entre a vida “nua” e suas cópias, artificialmente produzidas por uma tecnologia que se estende da manipulação genética à produção de uma realidade virtual mediante dispositivos de informação e comunicação.[27]
Um dado curioso sobre Der Sandmann (1817), de Hoffmann, é a lenda narrada pela babá ao menino: “Trata-se de um homem mau, que aparece para as crianças, quando elas não querem ir dormir, lançando a mão cheia de areia nos olhos delas, de tal modo que os olhos, sangrando, saltam da cabeça; ele os recolhe num saco, levando-os, para a lua minguante, para alimentar suas crias; estas moram num ninho e têm bicos curvos, como as corujas, e, com eles, comem os olhos das criancinhas malcomportadas”.[28]
Notas
[1] YAMAMOTO, Takato. 「吸血妖鬼・Vampire Fairy Demon」 2008年 Acrylic on paper. Acessado em 04/12/2023. URL: <https://www.instagram.com/p/CdqG0MTPj09/>.
[2] KIKUCHI, Hideyuki. Vampire Hunter D: Omnibus book one. Trad. Kevin Leahy. Milwaukie, Dark Horse Books, 2021, p 193-194.
[3] A órbita lunar tem formato elíptico. Isso significa que sua distância em relação à Terra varia até atingir dois limites extremos. Durante o perigeu, a Lua está a aproximadamente 362 mil quilômetros da Terra, enquanto no apogeu a distância é de 405 mil quilômetros.
[4] HIRANO, Kohta. Capítulo 2: Mestre do monstro. Em: HIRANO, Kohta. Hellsing. Trad. Karen Kazumi Hayashida. São Paulo, JBC, 2015, p 61.
[5] HIRANO, Kohta. Capítulo 3: Clube de assassinato. Em: HIRANO, Kohta. Hellsing. Trad. Karen Kazumi Hayashida. São Paulo, JBC, 2015, p 85-87.
[6] HIRANO, Kohta. Capítulo 1: Caçador de Vampiros. Em: HIRANO, Kohta. Hellsing. Trad. Karen Kazumi Hayashida. São Paulo, JBC, 2015, p 5 e 16.
[7] HELLSING. Ep. 1 – O Morto Vivo. URL: <https://www.crunchyroll.com/pt-br/watch/G6JQJ0MXR/the-undead>. Acessado em 03/12/2023.
[8] HIRANO, Kohta. Capítulo 1: Caçador de Vampiros. Em: HIRANO, Kohta. Hellsing. Trad. Karen Kazumi Hayashida. São Paulo, JBC, 2015, p 14.
[9] HIRANO, Kohta. Capítulo 6: Dança das Espadas 3. Em: HIRANO, Kohta. Hellsing. Trad. Karen Kazumi Hayashida. São Paulo, JBC, 2015, p 158.
[10] LOPES, Gilmar. De que material é feito esse arco de Hiroshima? Posto online no E-Farsas em 11/07/2011. URL: <https://www.e-farsas.com/de-que-material-e-feito-esse-arco-de-hiroshima.html>.
[11] RESTOS DO PLANETA QUE FORMOU A LUA ESTARIAM NO INTERIOR DA TERRA. em Em: Tecmundo. Posto online em 30/03/2021 às 20h30. Acessado em 05/12/2023 às 15h50. URL: <<https://www.tecmundo.com.br/ciencia/214732-restos-planeta-formou-lua-interior-terra.htm >.
[12] HIPÓTESE SILURIANA: EXISTIU UMA ANTIGA CIVILIZAÇÃO AVANÇADA NA TERRA? Em: Mega Curioso. URL: <https://www.megacurioso.com.br/ciencia/120478-hipotese-siluriana-existiu-uma-antiga-civilizacao-avancada-na-terra.htm>. Acessado em 05/12/2023 às 16h14.
[13] O romance gráfico Bishōjo Senshi Sailor Moon (美少女戦士セーラームーン) é composto de 52 Atos e dez histórias paralelas, publicados entre fevereiro de 1992 e março de 1997. Foi lançado primeiro na revista mensal Nakayoshi (なかよし) e suas as histórias paralelas na revista RunRun (るんるん), ambas da Kōdansha (株式会社講談), com tiragem de três milhões de exemplares.
[14] TAKEUCHI, Naoko. Ato 10: Lua… Em: TAKEUCHI, Naoko. Sailor Moon. Vol. 2. Trad. Arnaldo Massato Oka. São Paulo, JBC, 2014, p 143 e 150-156.
[15] TAKEUCHI, Naoko. Ato 8: Minako – Sailor V. Em: TAKEUCHI, Naoko. Sailor Moon. Vol. 2. Trad. Arnaldo Massato Oka. São Paulo, JBC, 2014, p 111-114.
[16] TAKEUCHI, Naoko. Ato 1: Usagi – Sailor Moon. Em: TAKEUCHI, Naoko. Sailor Moon. Vol. 1. Trad. Arnaldo Massato Oka. São Paulo, JBC, 2014, p 13.
[17] KUNZ, George Frederick. The Book of the Pearl: Its History, Art, Science and Industry. New York, The Century Co., 1908, p 35. Digitalizado e posto online pelo Project Gutenberg. URL: <https://www.gutenberg.org/ebooks/63299>.
[18] KUNZ, George Frederick. The Book of the Pearl: Its History, Art, Science and Industry. New York, The Century Co., 1908, p 61. Digitalizado e posto online pelo Project Gutenberg. URL: <https://www.gutenberg.org/ebooks/63299>.
[19] ALIGHIERI, Dante. A Divina Comédia: Paraíso. Trad. Italo Eugenio Mauro. São Paulo, Editora 34, 1998, p 20.
[20] TAKEUCHI, Naoko. Ato 1: Usagi – Sailor Moon. Em: TAKEUCHI, Naoko. Pretty Guardian Sailor Moon. Trad. Arnaldo Massato Oka. São Paulo, JBC, 2014, p 15.
[21] TOBOSO, Yana. Rust Blaster. São Paulo, Panini Comics, 2016, p 1.
[22] TOBOSO, Yana. Rust Blaster. São Paulo, Panini Comics, 2016, p 170.
[23] TOBOSO, Yana. Rust Blaster. São Paulo, Panini Comics, 2016, p 172.
[24] A telenovela VAMP, exibida pela TV Globo, teve roteiros escritos por Antônio Calmon, Vinícius Vianna, Lílian Garcia e Thiago Santhiago. Foi dirigida por Jorge Fernando e outros.
[25] JUNG, C. G. (autor) e JAFFE, Aniela (org.) Memories, Dreams, Reflections. Trad. Richard & Clara Winston. E-book, p 160-161. Digitalização: Archieve.org. URL: <https://archive.org/details/MemoriesDreamsReflectionsCarlJung>. Acessada em 16/09/2017 as 16h27.
[26] A telenovela Mulheres de Areia (01/02/1993-25/09/1993), escrita por Ivani Ribeiro, dirigida por Wolf Maya, foi igualmente transmitida pela TV Globo.
[27] SODRÉ, Muniz. Estratégias Sensíveis: afeto, mídia e política. Rio de Janeiro, Mauad X, 2016, p 118-119.
[28] FREUD, Sigmund. O infamiliar [Das Unheimliche] – Edição comemorativa bilíngue (1919-2019) (p. 74). Autêntica Editora. Edição do Kindle. URL: <https://www.amazon.com.br/infamiliar-Das-Unheimliche-comemorativa-1919-2019/dp/8551304860/ref=asc_df_8551304860/>.
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